Eu tinha entrado por concurso público para as Necessidades em 1975. Há já uns anos que saíra do Instituto de Ciências Sociais e Políticas (até ao 25 de Abril, de "Ciências Sociais e Política Ultramarina"), cuja última cadeira do curso, depois de muitas atribulações, tinha terminado escassos meses depois da Revolução.
Um dia, constou-me que no ISCSP havia sido criada uma nova licenciatura em Ciências Sociais e Políticas. Eram dois anos "complementares", com 15 cadeiras, um curso novo, com matérias muito interessantes.
O trabalho no MNE era pesado, mas achei graça, embora não precisasse disso rigorosamente para nada, tentar fazer também esse novo curso. Inscrevi-me como "voluntário" e, entre 1977 e 1978, por puro diletantismo, concluí essa licenciatura. Porque utilizei o chamado "regime militar", podendo, julgo que durante dois ou três anos, solicitar exames quando me considerasse preparado (mesmo que ainda não tivesse sido dada uma única aula de algumas das cadeiras, o que acontecia com todas as do segundo ano do curso), creio ter sido a primeira pessoa a concluir o novo curso.
Não foi fácil compatibilizar a profissão com o estudo e conclusão das disciplinas, mas quando se tem 30 anos parece que tudo é possível. Acresce que eu tinha, na altura, uma outra atividade profissional na Ciesa-NCK, um pouco "clandestina" e à margem do MNE, que me arredondava as contas.
O novo ISCSP tinha, entretanto, por qualquer razão, saído do velho e magnífico Palácio Burnay, na Junqueira. Dividia-se entre duas instalações do ISCEF (agora ISEG), no velho Quelhas e na rua de Buenos Aires.
Num desses dias, em que tinha marcado um exame, comigo a ser dispensado do MNE para poder fazer a prova, entrei no edifício do Quelhas e dei de caras com o Salgueiro Maia (sim, esse mesmo !) que por ali também andava a acabar uma licenciatura, creio que em Antropologia. Conheciamo-nos das "guerras" do MFA, três anos antes. "Escusas de te apressar! Parece que há uma greve", disse-me. Eu não fazia a mais pequena ideia do tempo académico que se vivia no ISCSP, mas, claro, se havia uma greve associativa decretada, haveria que respeitá-la. Logo eu que, durante anos, tinha andado bem envolvido na agitação académica! E preparei-me para regressar ao MNE, onde tinha muita coisa para fazer.
Íamos ambos de saída por um corredor, à conversa, quando surgiu o Augusto M. Seabra. O Salgueiro Maia sabia que ele era uma das figuras do associativismo universitário no ISCSP. Eu conhecia-o muito vagamente do MES e o seu mundo era - e iria continuar a ser, para sempre - muito distante do meu. O Maia perguntou-lhe se se confirmava a greve aos exames. "Vocês são "voluntários"? Vêm para os exames? Não, para vocês não há greve, foi feita uma exceção. A greve é só às aulas".
Olhei para o Salgueiro Maia e ambos voltámos a encarar o Seabra: "Tens a certeza que isso é assim? Era só o que faltava nós os dois virmos a ser acusados de ser "fura-greves"! ". O Seabra riu-se: "Não! Foi feita uma exceção para quem trabalha. Podem fazer os vossos exames à vontade. Ninguém vos vai acusar de ser contra-revolucionários! Ninguém vai dizer isso do Salgueiro Maia!" Rimos os três e lá fomos os dois fazer umas provas escritas, sei lá bem de quê!
Desde essa data, há mais de 45 anos, só voltei a "ver" o Augusto M. Seabra por escrito. Tinha a consciência de que era um ecletico e severo crítico cultural, que quem me merecia respeito especializado sempre qualificava por genial, com forte propensão para a polémica. Morreu agora e o modo como convocou imensos elogios confirma que o país perdeu alguém de grande qualidade.
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