segunda-feira, dezembro 31, 2018

O chá do doutor Andrade


Não me lembro do seu primeiro nome. De família, era Sales de Andrade. Para nós, durante muitos anos, era apenas o doutor Andrade. Embora mais novo, era um grande amigo do meu avô, com quem tinha uma relação que vinha dos tempos comuns na magistratura. Visitava-nos em Vila Real, algumas vezes ao ano.

O doutor Andrade era de origem indiana, vivia em Lisboa, vestia-se com uma elegância britânica e conduzia uma bela Citroën, modelo “arrastadeira”, junto à qual figuro, impante, em algumas fotografias de infância. Era um homem muito educado, marcando alguma distância, com quem o meu pai me contava ter tido um dia uma conversa muito interessante, com ele muito traumatizado psicologicamente, depois da entrada violenta das tropas indianas no Estado da Índia, no início dos anos 60.

Não obstante ter mais alguns anos, o doutor Andrade terá andado a fazer “rapapé” a uma tia minha, irmã da minha mãe, que parece que nunca lhe ligou peva. Essa desilusão não impediu que se mantivesse sempre próximo da nossa família, com a qual, em vários anos, vinha passar o Natal e o Ano Novo. No que me toca, tenho dele na memória os presentes que me trazia e a sua maneira de falar, com um sotaque à época estranho para mim. 

Como indiano que era, o doutor Andrade gostava muito de chá. Não tenho ideia qual era o tipo de chá que, à época, era servido lá por casa, mas imagino que não fosse de uma particular qualidade. Um dia, uma empregada trouxe um chá pedido pelo doutor Andrade. Ele tomou-o, em silêncio. A minha mãe contava sempre que, olhando-o, teve um pressentimento de que a qualidade do chá talvez não estivesse à altura de quem era originário do Industão, zona riquíssima no produto. E perguntou-lhe. O doutor Andrade, com a confiança que a amizade que tinha com a nossa família permitia, foi sincero: “Não está mau de todo!”, o que, apesar de tudo, sossegou a minha progenitora. Mas apenas por um segundo, porque ele logo acrescentou: “Já tomei chá bem pior!”

Há pouco, ao beber um magnífico Royal Blend, “the mother of all teas”, da minha “colheita” anual nas prateleiras do Fortnum & Mason, olhando a paisagem de fundo de Vila Real (de que ofereço a imagem), um cenário natural idêntico àquele que se desfrutava da sala de estar do meu avô, onde o doutor Andrade se sentava nesses anos 50 e 60 do século que já lá vai, perguntei-me se o chá que agora estava a tomar estaria, finalmente, à altura da exigência do doutor Andrade, o nosso simpático visitante solitário dos Natais e das festas de Fim de Ano, em outros tempos. E não tive a certeza, mas poder afirmar não ter certezas é o arrogante privilégio da idade da sabedoria. E por aqui me fico.

3 comentários:

Carlos Falcão disse...

Mais uma narrativa das suas ricas vivências pessoais.
Lia de um só folgo!

Envio-lhe votos dum Novo Ano 2019 cheio de boa saúde e que as suas realizações pessoais continuem a estar presentes na sua vida.
C.Falcao

Luís Lavoura disse...

um magnífico Royal Blend, “the mother of all teas”, da minha “colheita” anual nas prateleiras do Fortnum & Mason

O Francisco é um aristocrata disfarçado de socialista.

Francisco Seixas da Costa disse...

Ó Luis Lavoura! Prefere Lipton ou Tetley ?

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