quinta-feira, dezembro 27, 2018

A Europa que aí vem

2019 será ano de eleições europeias, um sufrágio que não costuma ser muito mobilizador. Afirmar que estas eleições são, a grande distância, as mais importantes desde a criação daquela instituição soará, para muitos, como uma “boutade” retórica. E, no entanto, é pura verdade.

O Parlamento é a instituição comunitária que, ao longo do tempo, mais mudou. Desde os longínquos dias em que era integrado por deputados indicados pelos parlamentos nacionais até ao momento de hoje, o areópago, que continua a viver numa patética “navette” mensal entre Bruxelas e Estrasburgo, tem vindo a ganhar poder decisório e espaço de afirmação no processo político. O seu papel no crescente número de decisões em que os ministros (por lá diz-se “o Conselho”) votam por maioria qualificada torna-o hoje um mercado apetecível para os lóbis e, no plano político, uma importante câmara de ressonância para as grandes temáticas, não apenas europeias como globais.

Por muitos anos, o Parlamento Europeu foi uma “academia” de europeísmo. Pode afirmar-se com segurança que o Parlamento era, em geral, bastante mais europeísta do que o padrão médio de vontades que se refletia no Conselho de Ministros – quer face ao aprofundamento das políticas, quer no estímulo aos alargamentos. Nos últimos anos, isso mudou. Em vários Estados, as eleições para o Parlamento não se fazem já sob a bandeira do proselitismo europeísta, que curiosamente por cá ainda impera. As forças eurocéticas têm vindo a ganhar um crescente poder, com alguns deputados a carrear para o Parlamento uma agenda abertamente anti-europeia.

Dir-se-á que, se essa vier a ser a vontade democrática, há que cumpri-la. É verdade, se tudo o que essas vozes renitentes disserem se enquadrar dentro dos princípios que os tratados preveem. Mas, cada vez mais, as coisas apontam noutra direção.

O que se torna preocupante é que, como se viu nos debates sobre os refugiados, e continua a observar-se nos temas migratórios, o próximo Parlamento Europeu venha a reforçar correntes representativas das derivas fortemente xenófobas e autoritárias, que já marcam o quotidiano de alguns Estados onde, na ordem interna, se verificam hoje verdadeiros atentados aos princípios do Estado de direito, da separação de poderes, da independência dos media. Aí já não estaremos a falar de legítimas divergências doutrinárias, mas de desafio aos princípios e valores que todos os países se obrigaram a cumprir aquando da sua adesão ao “clube”.

Porém, as grandes questões que a Europa de 2019 vai enfrentar não se esgotam nas eleições europeias. Salientaria as duas que acho essenciais.

Desde logo, o Brexit. Estamos a dias de perceber se há ou não razões fortes para começar a preparar a União para um cenário de não-acordo. O tempo que passou desde o trauma provocado pelo referendo, com a magnitude dos estudos de impacto entretanto feitos, poderá ter ajudado a tornar o divórcio mais “natural” junto dos mercados, mas diz quem sabe que, em certos setores, subsistem grandes pontos de interrogação sobre os reais efeitos de uma rutura. 

Mas o Brexit será muito mais do que isso. Representará, pela primeira vez, um recuo assumido no processo integrador, uma Europa sem um Estado com a dimensão e influência do Reino Unido, uma nova relação de forças, agora exclusivamente nas mãos de poderes continentais. O Brexit é uma péssima notícia, mas tudo indica que será uma realidade e, como se costuma dizer, o que tem de ser tem muita força.

Mas isto não esgota a agenda de preocupações que, no próximo ano, a Europa terá sobre a mesa. Diria que uma questão vital para a sobrevivência da zona euro, num eventual cenário de crise, continua por resolver em termos satisfatórios: refiro-me ao completamento da União Bancária onde, muito claramente, prevalecem divergências fruto de visões muito afastadas sobre os mecanismos de responsabilidade solidária. As iniciativas do presidente Macron nesse domínio, que iam no sentido de uma diferente arquitetura institucional para a zona euro, não colheram o acordo alemão – e nós sabemos o que isso significa para o futuro de qualquer proposta europeia.

A Europa que aí vem tem, como é sabido, muitos outros problemas. Mas, ao pé dos que referi, eles são de importância secundária, por muito relevantes que possam parecer, se vistos isoladamente. 

Talvez devamos terminar de forma tradicional: desejando muito simplesmente à Europa um feliz ano novo.  

13 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

O Tratado de Maastricht, em 1992, deu a cidadania europeia a qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-membro. No entanto, o tempo ensinou-nos que este poder político do cidadão é quase nulo. A taxa de participação nas eleições europeias diminui de forma constante: menos de 43%, em França, em 2004.
Sabemos bem que estas eleições europeias servem principalmente aos partidos políticos, para reforçar a sua posição política nacional. Aliás, estas eleições também são utilizadas para fornecer algumas sinecuras ou tribunas para funcionários carentes de circunscrição eleitoral ou de eleitores.
Se, por demagogia ou por engano pode acontecer que me peçam a minha opinião, recordo amargamente que no passado ela não foi tida em conta.
No exemplo mais recente e escandaloso, do “não” maioritário dos franceses e holandeses no referendo sobre o Tratado Constitucional Europeu (TCE) em 2005 não levou a uma verdadeira renegociação do Tratado: pelo contrário, os responsáveis da EU, fizeram-nos engolir um texto essencialmente idêntico, com outro nome, de Tratado de Lisboa, apenas com algumas modificações simbólicas, mas evitando desta vez de o submeter ao referendo.
Esse é o poder político do cidadão europeu. A tal ponto que alguns até duvidam do sufrágio universal como princípio da democracia europeia.
No entanto, a última negação da democracia – a vontade de fazer re votar – os irlandeses sobre o Tratado de Lisboa, até que o aceitem, não é nada glorioso. Não é assim que vejo a democracia.
As próximas eleições europeias proporcionam-nos uma boa oportunidade para garantir que todos nós, os cidadãos da União Europeia, finalmente exerceremos o poder que nos deve vir por lei.

m. malheiros disse...

Concordo com o seu comentário.Acrescentaria as tensões mas fronteiras: Ucrânia, Bósnia, Kosovo, Sérvia....a adiada Turquia e o Mediterrâneo.

Mas, com todo o respeito por diferente opinião, o mais importante é a construção da cidadania europeia que está em causa, que compreende a liberdade de circulação , a igualdade de tratamento, os direitos sociais e muito mais....

É um progresso que é preciso defender

m.malheiro



Anónimo disse...

Lido em parte.

Despacho:


Texto muito denso para se ler de um folego.

As ideias políticas teem evoluido nestes últimos anos a uma velocidade muito grande.
A geração que fez a Europa já não é a mesma que integra o Parlamento Europeu.
O tempo muda muita coisa. A Europa não se pode ficar apenas como uma recordação. Tem de se actualizar em função das suas populações. Os sonhos que se prometeram eram utupias que foram dificeis de cumprir.

O deferimento será dado quando fizer uma análise mais demorada ao texto.

[A aguardar o desaparecimento dos "vapors" do Natal ]

Anónimo disse...

O título do post devia ser: "A Europa que aí chega."

aamgvieira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
aamgvieira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Ao anónimo das 10,49
Utupia ?
É o novo acordo ortográfico ? Costumava ser escrito com “ o “, utopia ...

Joaquim de Freitas disse...

Do Sr. aamgvieira , 27 de Dezembro de 2018 às 23:11
« Nenhum país em que os comunistas e associados e derivados governaram, as populações prosperaram e tiveram futuro.

A esquerda gasta sempre o que os privados pouparam.”

Seria interessante de ler quem são os “comunistas e associados e derivados,” e os países onde dirigem.
Por outro lado, seria muito interessante também saber quem são esses privados que pouparam, e onde investiram as suas poupanças.

Quando me falam das poupanças, pergunto quem, entre aqueles que trabalham, auferindo os salários e pensões que conhecemos, conseguem hoje poupar, para que a “esquerda” gaste …

Num país e num regime económico capitalista, onde os meios de produção continuam nas mãos dos mesmos desde sempre, não vejo como aquela maioria imensa que produz as riquezas, pode poupar, quando o que ganham chega apenas e nem sempre para sobreviver.

Não foi um daqueles que simbolizou o sistema capitalista português, Belmiro de Azevedo, que disse um dia que a economia só pode funcionar bem se os salários forem os mais baixos possíveis? Isto é, se a miséria for o parâmetro de ajustamento da economia…

Quando leio tais comentários, penso sempre nos velhos tempos do salazarismo, em que Portugal tinha uma moeda forte, tinha toneladas de ouro, o que significava que “se poupava muto”, porque não se investia em nada que servisse para o futuro dos Portugueses. Foi o que provocou a hemorragia de milhões de cidadãos para o estrangeiro. E Portugal, de tão pobre que era, com uma moeda forte e toneladas de ouro, lá estava na cauda da Europa…

A lei económica fundamental do capitalismo continua a ser a realização do lucro. Enquanto esta regra é respeitada, a democracia burguesa continua a operar sem muito obstáculo. Por vezes, os escravos modernos que são os trabalhadores vêem mesmo seu destino melhorar. Mas assim que a crise do sistema se instala, ou seja, quando a taxa de lucro diminui, a austeridade e a repressão aparecem.

Cada crise económica cria o seu próprio poder político, um poder capaz de se adaptar, de uma forma ou de outra, à nova situação. A crise deve ser ultrapassada, custe o que custar.

Nacionalismo, fascismo, nazismo, extrema-direita,... todas estas formas políticas de dominação burguesa não substituem, evidentemente, o capitalismo e não procuram ultrapassá-lo. Pelo contrário, procuram salvá-lo e fortalecê-lo.

A sua missão essencial é manter, custe o que custar, a acumulação de capital e garantir a concentração de riqueza nas mesmas mãos. Eles são, na análise final, apenas regimes brutais por trás dos quais os interesses da classe dominante estão escondidos.

E podem contar com “soldados” dedicados que , mesmo pertencendo à “massa” dos sacrificados do sistema continuam a admirá-lo. Como nos tempos da outra senhora !

Anónimo disse...

@ Sr. De Freitas.

Há muito tempo que não lia um texto tão carregado de lingua marxista-leninista como este de 28 Dez 2018. Saúdades dos anos 70 em Portugal mas.... tudo isso acabou ou está para acabar.
A malta agora quer coisas diferentes. Querem um mundo diferemte. Querem descobrir a felicidade e até o prazer, não como lhes foi apresentado para consumo antes.

Anónimo disse...

@ anónimo de 27dez2018 23:34

LOL. Mas percebeu do se tratava ou não. Porque se não, posso-lhe fazer um desenho.

vitor disse...

"A esquerda gasta sempre o que os privados pouparam".

Ainda embrenhados numa recessão mundial que provou isso mesmo. Se a ignorância pagasse imposto...

Joaquim de Freitas disse...

Estamos no Natal e o caro Anónimo de 28 de Dezembro de 2018 às 13:24, tem a caridade de me avisar que o meu texto é marxista-leninista.

Porque o capitalismo finalmente, não resolveu os problemas que afectam desde sempre a sociedade humana, é possível que insensivelmente as ideias de marxismo e leninismo continuem a agitar as consciências.

“Quando se constata que, “a economia liberal é "uma economia de exclusão", "uma economia que mata", que “o facto que uma pessoa idosa reduzida a viver na rua morreu de frio não é uma informação, enquanto que a queda de dois pontos na Bolsa é uma." Essa é a exclusão. »

“Que grandes massas de pessoas, "são excluídas, marginalizadas, por causa da lei da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso devora o fraco." Não é a lei do mercado ele mesmo que é culpada, mas a sua hegemonia.
De facto um sistema que nega a primazia do ser humano.”

“A economia mundial derivou. Ultrapassou os mecanismos tradicionais da exploração e da opressão. Criou uma "cultura du desperdício, do descartável": "Os seres humanos são bens de consumo que podem ser utilizados e depois lançados para o lixo." O trabalhador não é apenas "explorado", condenado à periferia da existência", mas reduzido ao estado de "desperdício". Faz parte dos "restos", das “sobras”.Eventualmente, podem servir para votar e dar assim um lustro de democracia à sociedade capitalista…

“A crise financeira que estamos a atravessar faz-nos esquecer que tem, na sua origem, uma profunda crise antropológica: a negação da primazia do ser humano! Criamos novos ídolos. A adoração do bezerro de ouro antigo encontrou uma versão nova e implacável no fetichismo do dinheiro e na ditadura da economia sem rosto. A crise mundial que afecta a finança e a economia manifesta os seus próprios desequilíbrios e, acima de tudo, a grave ausência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano a uma de suas necessidades: o consumo. . Não ao dinheiro que governa em vez de servir.”

“Mais de um século atrás, em 1891, alguém deplorou a concentração, nas mãos de uma minoria minúscula, de todas as rendas da indústria e do comércio. Ele criticou a existência de "um pequeno número de pessoas ricas e opulentas que impõem um jugo servil sobre a infinidade infinita de proletários".

Voilà, Caro Anónimo. Deixe-me só informá-lo que o texto acima não é da minha autoria. Quem o escreveu, vem da América Latina, que conhece melhor que ninguém os desequilíbrios económicos e disparidades sociais deste continente, onde as situações de extrema pobreza e de extrema riqueza coabitam, em regimes, pela maior parte capitalistas e profundamente anti marxistas-leninistas.

O autor deste texto chama-se Jorge Mário Bergoglio, conhecido sob o nome de Papa Francisco. O ultimo paragrafo, começando: “ Mais de um século atrás, em 1891 …“pertence a outro Papa, Leon XIII

vitor disse...

Realmente, vê-se os franceses na rua completamente exauridos, um dos povos europeus que melhor vivia ainda há pouco tempo e o problema é o comunismo?! Deve ser o comunismo da Goldman Sachs.

Carlos Antunes

Há uns anos, escrevi por aqui mais ou menos isto: "Guardo (...) um almoço magnífico com o Carlos Antunes, organizado pelo António Dias,...