domingo, março 08, 2020

Chega de virus!

Sei que, a alguns, isto pode parecer algo estranho, mas, desde há dias, deixei praticamente de ver, ouvir ou ler notícias sobre o coronovirus. Não assisto às reportagens na televisão sobre o surto, não leio artigos de jornais sobre o tema, não abro links na net, resisto à avalanche de estatísticas sobre doentes e mortos e coisas assim. Recuso, em absoluto, deixar-me tomar por este ambiente monotemático.

Assim, adoto as medidas básicas de higiene, evito contactos físicos desnecessários e restrinjo ao mínimo a ida a lugares com grande público. E logo se verá! 

Andar de manhã à noite a falar do assunto não resolve rigorosamente nada e só aumenta a paranóia. As pessoas que me são próximas já sabem: comigo, não contam para conversas sobre o coronovirus!

Diálogo, precisa-se

Vou dizer isto da forma mais simpática que consigo: ou o discurso oficial do PS é capaz de encontrar um registo dialogante,sem laivos de arrogância e isento de conversa “de cátedra”, ou o seu governo, a prazo curto, vai passar a ter mais problemas. E mais não digo, está bem?

Mulheres

Não quero diluir o charme social que se tornou hábito na comemoração do dia internacional da mulher, com flores e brindes, mas lembro que a data radica numa coragem extraordinária, contra discriminações e preconceitos, que, muitas décadas depois, estão longe de erradicados.

Responsabilidade

É uma obrigação de cada cidadão português responsável não apenas respeitar, mas igualmente apoiar e propagar de forma empenhada as restrições que a atual situação sanitária justifica, nomeadamente em matéria de visitas a unidades públicas e observância de regimes de quarentena.

A nova semiologia

Tem alguma (relativa) graça o variado modo como as pessoas se saúdam socialmente, nos dias que correm: há os que gesticulam à distância, os que tocam punhos ou cotovelos, os que abraçam sem beijar até aos afetuosos crónicos impenitentes. A semiologia tem aqui um novo capítulo.

João Vieira


A casa-museu é pequena, mas muito digna. João Vieira, um pintor de que gosto muito, merece bem a homenagem que a sua terra natal, Vidago, há poucos meses lhe fez, criando um espaço em sua memória, graças à pertinácia do seu filho, Manuel João Vieira.

Em setembro, por insuperável impedimento pessoal, não pude aceitar o simpático convite do Manuel João para estar na inauguração deste museu. Ontem, tive imenso gosto em passar por lá.

Meses antes da sua morte, em 2009, João Vieira tinha tido a amabilidade de me desafiar para comissário internacional da iniciativa “Sinais Douro”, um projecto que há muito acalentava, destinado a dar projecção a algumas belíssimas ermidas da zona duriense, associando-lhes trabalhos pictóricos de artistas estrangeiros convidados.

sábado, março 07, 2020

Um ponto final


Como já deve ter dado conta quem por aqui me lê, sou um “viciado” em restaurantes. Numa certa cidade do país, cujo nome não interessa, existe, desde há uns anos, não muitos, um restaurante, não excessivamente simpático como espaço mas com ambiente e serviço aceitáveis, num lugar conveniente, porque muito bem situado. Sem exceção, todos os meus amigos e conhecidos que são frequentadores do local me dizem bem dele. Fui lá, julgo ter a conta bem feita, umas cinco vezes, a primeira já aí há uns seis anos. No final das refeições, nunca de lá saí plenamente satisfeito. Às vezes, foi assim-assim, outras vezes, foi mesmo mau. Por que continuei a teimar? Não porque seja masoquista, mas porque esses amigos e conhecidos me iam dizendo, de cada vez que referia essa nova má experiência, que devia ter sido um “azar”. E assim fui dando o benefício da dúvida ao restaurante. Agora, acabou! Eu e quantos me acompanhavam numa refeição muito recente comemos francamente mal. Portanto, ponto final. Qual é o restaurante? Sei lá! Já o esqueci, de vez...

O remédio


Quando, como frequentemente me acontece, me “passo” com a nossa televisão, tenho um remédio quase infalível: mudar para a RTP 2. Obrigado, Teresa Paixão!

Há noites assim!


À escolha

A propósito de um artigo que ontem publiquei no “Jornal de Negócios”, onde critiquei a política de Israel, já houve quem me acusasse de anti-semitismo. Confesso que já estava à espera...

Quem não sabe distinguir a diferença entre anti-sionismo e anti-semitismo só tem três hipóteses: ou é parvo ou é ignorante ou está de má fé. Esses, façam o favor de escolher!

Casa de Sezim


É uma das mais deslumbrantes casas de Turismo de Habitação do país, situada perto de Guimarães. 

Passei ontem por lá para recordar aquele espaço magnífico e para degustar o excelente verde branco que ali se adquire.

A quem tiver uns minutos livres, aconselho vivamente que vejam o “Visita Guiada” que Paula Moura Pinheiro lhe dedicou: ver aqui.

Alibi

O argumento de que o deputado mais notório da extrema-direita parlamentar não pode ser deixado a falar “à solta”, sem escrutínio nem contraditório, está a ser um excelente alibi para, cada vez mais, alguns lhe darem um generoso tempo de antena. Os amigos são para as ocasiões...

Sem coronovirus

Numa certa altura de 2019, a Sky News criou uma serviço noticioso “Brexit free”, em que poupava os seus utentes à constante avalanche de notícias sobre o Brexit. Esse noticiário foi um êxito. 

Por estes dias, e porque não tenho uma curiosidade sobre toda a especulação em torno da doença, apetecia-me imenso ver telejornais “coronovirus free”.

Política senior

Tenho idade suficiente para poder dizer isto sem suscitar suspeitas de ”jeunisme”: é um pouco estranho que, num tempo em que as carreiras se fazem cada vez mais cedo na vida, em que pessoas na casa dos 30 e 40 anos assumem imensas responsabilidades, o cenário político americano esteja “nas mãos” de gente bem acima dos 70 anos.

sexta-feira, março 06, 2020

Gestão de crises


Acaba de ser publicada uma obra coletiva, que envolve os (então) 28 países da União Europeia, sobre o modo como a Europa se organiza, no tocante à sua intervenção na gestão de crises internacionais, focando, em especial, as mais notórias insuficiências que é possível detetar nessa ação.

A convite da Fundação Bertelsmann e do Center for European Policy Studies, tive o gosto de ser o representante português no grupo de trabalho, que, durante o ano de 2019, em Bruxelas, organizou reuniões sobre o tema, das quais resultaram os trabalhos agora publicados.

A contribuição portuguesa para este volume muito deve à Dra. Patrícia Magalhães Ferreira, uma reputada especialista que convidei para esta tarefa e que comigo figura como co-autora deste trabalho.

Essa gente


Há muitos anos, em Israel, visitei um “kibutz”. Na ocasião, a primeira impressão que tive foi a de devia haver poucas coisas mais parecidas com o “ideal” da sociedade comunista do que essas comunidades onde os bens materiais tinham uma importância muito limitada, em que o dinheiro físico era de um valor quase instrumental, onde a partilha de tudo, até a educação coletiva dos filhos, era a regra. Tratava-se de uma economia de mera subsistência, suportada por uma forte cultura religiosa, com as técnicas requintadas de preservação da água a dar o toque de contemporaneidade àquele vida de recorte quase primário.

A visita era “política” e tinha muito a ver com a propaganda israelita ao seu modelo de sociedade, de que os “kibutz” eram símbolos exemplares. O grupo de portugueses envolvido na visita, onde não havia nenhum crente no judaísmo, achou graça ao exercício mas, ao que pressenti, permaneceu sempre um pouco descrente na capacidade de sustentacão futura daquele tipo de “engenharia” social. Consta-me, aliás, que o mundo dos “kibutz”, nos dias de hoje, é já muito diferente, sendo pouco apelativo para as novas gerações, mobilizadas por agendas de interesses bem diversas.

Mas voltemos à nossa visita. Para chegar ao “kibutz”, verdejante e erigido como um bem guardado oásis em terra inóspita, tínhamos atravessado zonas que, vim a saber, em resposta à minha curiosidade, eram pequenos aldeamentos árabes, com um grau de visível pobreza. Fixei a cara dessas pessoas, que olhavam, com um ar tenso, as viaturas israelitas que nos transportavam.

No “kibutz”, para nossa surpresa, também se falava português. Eram alguns judeus que tinham migrado do Brasil para a “terra prometida”, ali misturados com outras nacionalidades. O nosso principal interlocutor, simpático e falador, fez-nos uma descrição verdadeiramente entusiástica das virtualidades do modelo: da troca de produtos que faziam com outros “kibutz”, da venda dos frutos da exploração nos mercados de Tel-Aviv, utilizando depois o resultado coletivo dessas vendas para compra de outros bens essenciais, nas raras saídas para fora do “kibutz”. “Se não fosse uma heresia dizê-lo, eu afirmaria que vivemos no paraíso, onde nada nos falta”, disse-nos, com um largo sorriso.

Acho que nenhum dos visitantes ficou seduzido pela hipótese de algum dia vir a viver num “falanstério” similar, mas por todos perpassou uma imensa admiração por quem o fazia, desprendido dos bens materiais. A similitude com um convento terá surgido de imediato na nossa cabeça.

Confesso que, sem o menor sentido provocatório, fiz então uma pergunta, num tom neutro, mais para encher conversa do que por real interesse: “Também trocam produtos com as aldeias árabes por que passámos, que vimos no caminho para cá?”

Num segundo, o ambiente mudou por completo. Os acompanhantes israelitas olharam para mim como se eu tivesse dito um insulto. O judeu brasileiro “fechou” a cara e nunca mais esqueci a frase simples, mas bem sintomática, com que me respondeu: “Essa gente, para nós, não existe!” E mudou de conversa.

As pessoas com quem eu ia creio que ficaram tão chocadas como eu. Acho que os próprios funcionários israelitas se surpreenderam com a crueldade do comentário do habitante do “kibutz”. E, naquele instante, grande parte da simpatia genuína que, nos minutos anteriores, se tinha gerado, desvaneceu-se. A visita terminou com alguma rapidez.

Quando, há dias, vi que o mandato de Benjamin Netanyahu foi renovado, que o seu projeto de um “grande Israel” tem hoje o apoio claro da maior potência internacional, à revelia de resoluções do Conselho de Segurança da ONU que os próprios EUA aprovaram, que o caminho do Estado israelita vai no sentido evidente de um sistema de “apartheid”, dei comigo a pensar que o judeu brasileiro com quem me cruzei, há umas décadas, nesse “kibutz” perdido no “West Bank”, se acaso ainda for vivo, deve estar hoje feliz. Mas lembrei-me muito “dessa gente”.

quarta-feira, março 04, 2020

Quem é?


Uma confiança essencial


“Bolas! Até na justiça! Isto vai bonito, vai!” Não foi necessário olhar para a televisão daquele café de estrada, na Beira interior, na tarde de segunda-feira, para perceber que o tema dos comentários era a notícia da demissão de um magistrado de um tribunal superior, num escândalo a que só o cronovirus ajuda a disfarçar a amplitude. “Aquilo é como na política, pá! São todos iguais!”, ouvi logo ao meu lado, no balcão. As vozes que emanavam daquelas samarras ressoavam uma desencantada unanimidade. “É como os árbitros! Cada um é pior que o outro!”, sentenciava um terceiro.

Mais do que em qualquer época recente de que me consigo lembrar, parece instalada, no sentimento comum, uma distância, quando não uma acrimónia, muito pouco saudável entre os cidadãos e as estruturas institucionais do Estado e dos corpos socialmente relevantes.

Se não acreditam no que escrevi, façam o teste: ao ouvirem comentários negativos sobre figuras políticas, sobre os partidos ou o parlamento, sobre grandes empresas ou outras entidades coletivas, experimentem tentar um discurso abertamente contraditório. Logo verão a reação! Logo “verão”, não, logo veriam, porque tenho o pressentimento de que a maioria das pessoas que me lê já não estará disponível, com sinceridade, para ensaiar esse discurso. Constato que muito rara é hoje a personalidade pública ou instituição que preserva um prestígio que, face a qualquer súbita acusação ou desconfiança, suscite um automático e maioritário benefício de defesa.

A estabilidade das democracias pressupõe a existência de um grau mínimo de confiança entre a generalidade dos cidadãos e as instituições representativas do poder dos Estados, para além de, pelo menos, alguma neutralidade no tocante à aceitabilidade de outras forças relevantes no respetivo tecido social.

A minha percepção, que concedo possa ser impressionista, é de que, com todos os seus defeitos, eventuais manipulações e desvios corporativos, a máquina da justiça se mantinha, até há bem pouco tempo, imune a suspeitas genéricas de corrupção ou tráfico de influências – salvo casos pontuais bem identificados. O que, nos últimos meses, tem vindo a passar-se num dos nossos tribunais superiores é, assim, muito grave. Todos esperamos que se trate de episódios bem isolados, a que possa ser posto cobro, com rapidez e transparência. É que se os cidadãos se sentirem tentados a duvidar da ética dos órgãos da sua justiça estaremos perante a perda de uma confiança essencial que sustenta o sistema democrático.

Constança Cunha e Sá


Cruzei-me algumas vezes com Constança Cunha e Sá em programas por ela moderados na TVI. Em várias algumas outras ocasiões, com pena minha, não pude aceitar convites que me formulou.

Sempre considerei que o seu jornalismo era feito com um imenso equilíbrio, assente numa experiência muito rica sobre a realidade política portuguesa. Com a sua saída, a TVI perde uma voz com grande credibilidade jornalística.

terça-feira, março 03, 2020

11 de março e outras histórias


Há meses, a RTP pediu-me um depoimento sobre os acontecimentos do dia 11 de março de 1975. Na conversa, vieram à baila outros temas desse tempo. Aqui ficam extratos desse dialogo.

Não percam, amanhã, 4 de março!


Brasil

Desde que saí do Brasil, fui-me habituando a alimentar regulares discordâncias com amigos que por lá criei. Alguns com posições diametralmente opostas, note-se. Aquele país entrou numa “guerra de trincheiras” da qual me recuso a ser parte.

Vem isto a propósito da atribuição, pelo município de Paris, de uma distinção ao antigo presidente Lula. 

Há amigos meus indignados com o que consideram ser uma provocação, uma atitude desajustada face a um cidadão cuja precária liberdade, de que atualmente usufrui, não pode fazer esquecer que ele foi já condenado em justiça e sobre ele impendem ainda outras acusações.

Outros amigos, porém, exultam, por estas horas, ao verem como que implicitamente reconhecido pelo mundo que Lula está a ser sujeito, no seu país, a um processo condenatório completamente enviesado, por motivos puramente políticos, sob um corpo de provas frágil e muito pouco credível.

(Já imagino o que virá “por aí”, em termos de comentários indignados!).

Não sou brasileiro, não sou juíz, mas acompanho com alguma atenção o que se passa naquele país. Por isso, apenas quero dizer uma coisa, bem simples: não tenho a certeza de que Lula não seja culpado de alguma coisa, mas tenho a convicção (que, valha ela o que valer, é a minha e por isso aqui a deixo) de que a sua culpabilidade é bem menor do que a diabolização que dele querem fazer.

segunda-feira, março 02, 2020

Diz que é uma espécie de desilusão...

Há semanas, um amigo dizia-me que, às vezes, ao ler-me, ficava chocado com o facto de, à revelia do que lhe parecia ser a coerência essencial daquilo que entendia serem as minhas ideias, políticas e não só, se confrontar, com alguma surpresa, com posições que abertamente contrariavam essa lógica, o que lhe suscitava intimamente uma reação do género: “Então este tipo, com quem tantas vezes estou de acordo, sai-me agora com uma destas!?” Uma espécie de uma desilusão...

Não o esclareci sobre se, na realidade, essa minha atitude tinha mais a ver com um displicente desinteresse em sustentar a coerência ou, muito mais, com uma forma provocatória de estar na vida, uma espécie de assumido “estar-me-nas-tintas”. Ou se acumulava, até com algum gozo.

De uma coisa, porém, tenho absoluta certeza: um amigo define-se pelo facto de continuar a sê-lo, mesmo depois de constatar que está em completo desacordo com o que dizemos, ainda que em coisas que tidas por ele como essenciais. O resto, já aprendi: no melhor cenário, são amigos de ocasião, no pior, amigos da onça.

domingo, março 01, 2020

Brevemente, num Afeganistão perto de si...

Os EUA são peritos em intervir em países alheios, mas a História prova a sua inabilidade para montarem “exit strategies” minimamente sustentáveis. Na maior parte das vezes, “deitam dinheiro” sobre os problemas que criaram, quase sempre na forma de créditos para as suas empresas. Foi um “filme” que já se viu no Iraque, e que vai ser realizado, pela enésima vez, no Afeganistão.

O destino da comenda

Anos 50 ou 60. O secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, depois de muitas insistências e empenhos de terceiros, lá se tinha dignado receber aquele diplomata. 

Era um homem apagado, a quem nunca tinha sido atribuída a chefia de qualquer missão, que jamais tinha podido ouvir alguém chamá-lo de embaixador, que rodara entre alguns postos de segunda linha, sem grandes queixas de ninguém mas também sem um lustro minimamente notório. 

Curiosamente, quer ele quer o secretário-geral tinham entrado para as Necessidades no mesmo ano, mas os seus destinos não podiam ter sido mais díspares. O chefe da carreira, que é aquilo que todo o secretário-geral é, tinha tido um percurso profissional fulgurante, com alguns postos daquilo que, na linguagem mordaz da casa, se chama a ”linha Elisabeth Arden”: Nova Iorque, Londres, Paris, Roma... O seu modesto colega de entrada apenas chegara a ministro plenipotenciário de segunda classe, vulgo “ministro de segunda”, e jazia, prestes a chegar à reforma, numa obscura repartição, onde vulgarmente ia parar quem estava destinado ao esquecimento.

O gabinete do secretário-geral era, ou parecia, imenso. Estava situado no chamado terceiro andar do palácio. Quem não estivesse habituado à linguagem da casa diria que aquele era o primeiro andar do edifício das Necessidades, situado imediatamente após o piso da entrada, a quem acede pelo largo do Rilvas. Mas não, as contas, por lá, não se fazem assim - e não me obriguem a explicar agora porquê.

Escrevi que o gabinete “era”, porque, desde há bem mais de três décadas, a birra de um ministro, num assomo de poder, determinou a saída do secretário-geral desse espaço tido por nobre, enviando-o para outro andar - mais abaixo, claro. Onde hoje está e, por sinal, dignamente instalado o chefe da carreira.

Entrava-se para esse antigo gabinete do secretário-geral por uma porta envidraçada a fosco, bordeada a cortinados de veludo verde. A secretária onde se sentava o poderoso embaixador estava situada ao fundo. Os escassos segundos que demorava a travessia da sala atapetada, a caminho da pessoa que encarnava o topo funcional da casa, pareciam, para alguns funcionários que eram ali convocados, uma eternidade, que pontuava a distância hierárquica que esse percurso simbolizava. Lá chegados, havia uma cadeira, sempre colocada ligeiramente de lado, arredondada nos braços e nas costas, com palhinha. 

O nosso homem, que tinha dado entrada na sala por indicação do chefe de gabinete, instalado na antecâmara, aproximou-se da mesa do poder corporativo e, atento e venerador, ali ficou de pé, expectante. O secretário-geral, a custo, levantou os olhos para o velho colega, com quem não falava havia décadas, e, com um ar indiferente, disse: “Ah! És tu!”. Sem lhe estender a mão, apontou para a cadeira: “Senta-te!”. Passaram uns segundos e, com um suspiro e a condescendência de quem não estava disposto a perder muito do seu tempo, atirou: “Então diz lá ao que vens!”

O diplomata tinha ensaiado um discurso que começou a debitar. A sua carreira estava a chegar ao fim, preparava-se para regressar definitivamente a casa, sem que alguma vez a casa tivesse tido para com ele um reconhecimento mínimo, depois dos mais de quarenta anos que dedicara ao serviço público. Nunca pudera dar o gosto à família de ter recebido, por parte do Estado que servira, um gesto de apreço pelo seu trabalho, passado algumas vezes em lugares bem penosos, porque o seu fora o caminho das pedras.

O secretário-geral, sobranceiro, com um palpável e sobranceiro sentimento de distância humana. Era conhecido por ser uma figura autoritária, que utilizara o poder para algumas “vendettas” e não poucos gestos de arbítrio, à revelia do ministro, que lhe entregara a gestão da casa. Notava-se que começava a perder a paciência para toda aquela ladaínha, e já não o escondia, ora remirando papéis sobre a mesa, ora esboçando um esgar desagradado. Olhava o interlocutor por cima das lentes dos óculos, que usava para o despacho que se vira obrigado a interromper para aquela indesejada audiência. A certa altura, visivelmente cansado das lamúrias do colega, que mal reconhecia profissionalmente como tal, exclamou: “Mas então é uma condecoração que tu queres, é isso?”. O outro tartamudeou algo que não contrariava esse entendimento do secretário-geral. 

Este, impaciente e quase irritado, abriu uma gaveta da sua secretária, remexeu umas coisas por lá e fez sair uma pequena caixa côr-de-vinho que fez cair à frente do diplomata: “Pronto! Pega lá! Leva esta!”

A condecoração era um grau baixo de uma ordem criada pela Polónia depois da recuperação da independência do império austro-húngaro, após a Grande Guerra. Era atribuída, por esses tempos, com uma generosidade quantitativa que a desqualificava pelo mundo, pelo chamado governo polaco no exílio, em Londres, a quem desse mostras oficiais de apoiar a sua luta contra o regime comunista que passara a reinar em Varsóvia. A ordem honorífica chamava-se “Polonia restituta”.

O nosso homem olhou a caixa, intrigado, não reconhecendo, na águia dourada gravada na tampa, nenhum sinal identificativo de uma qualquer comenda portuguesa, que era o seu objetivo natural, nesse final de carreira. E perguntou, já tenso: “O que é isto?” O secretário-geral, displicente, respondeu-lhe: “É a “Polonia restituta”. É o que se pode arranjar...”.

Não tocando na caixa, o diplomata pôs-se de pé, afastou a cadeira, ficou hirto e, num assomo de dignidade, que terá vingado uma vida de humilhação e de forçada modéstia, teve uma reação sobre a qual, passados que são todos estes anos, a doutrina da casa ainda hoje se devide. 

Há uma escola, que creio maioritária, segundo a qual, cavalgando a sonoridade da última sílaba da designação da distinção polaca, o nosso homem terá mandado o secretário-geral de volta para a senhora, com suposta vida pública menos prestigiante, que o teria gerado. 

Outra corrente alimenta, contudo, a versão de que o diplomata poderá ter sugerido ao secretário-geral que viesse a introduzir a condecoração num orifício natural que a contenção tradicionalmente usada neste espaço me não permite explicitar, com a crueza lexical que consta terá sido utilizada.

Tirando esta pontual divergência sobre o destino recomendado para a comenda, contradição que, passados todos estes anos, se torna difícil de sanar, a única coisa que me é possível atestar, porque faz parte da irrefragável tradição oral do venerável palácio das Necessidades, é que a veracidade do episódio que acabo de relatar se situa acima de qualquer dúvida.

sábado, fevereiro 29, 2020

Dúvida angustiante

Sempre me coloquei esta (seriíssima) questão: alguém que tenha nascido a 29 de fevereiro sente-se bem, durante ciclos de três anos, a festejar o aniversário a 1 de março? E tem lata para soprar velas e receber presentes numa data que todos sabem que é falsa?

Guiné-Bissau


Foi a primeira colónia portuguesa a declarar independência, em 1973, ainda a ditadura por cá imperava. Era o tempo da ligação política Guiné-Cabo Verde, que se perdeu com o tempo e com o peso das realidades. Hoje, Cabo Verde é um Estado democraticamente exemplar, onde a alternância política se processa com serenidade, fruto do voto nas urnas. Uma outra “alternância” existe também na Guiné-Bissau, a que é marcada pelos sucessivos golpes de Estado, com a imponência das fardas a surgir ciclicamente por detrás de uma classe política onde há conhecidos caciques sustentados pela corrupção, pelo narco-tráfico, títeres de uma desbragada ingerência externa, que mantém o país seu refém. A Guiné-Bissau é hoje uma realidade muito triste no mundo da lusofonia.

Previsão

Não me perguntem como sei isto, mas quer-me parecer que o primeiro caso de cronovírus em Portugal só vai aparecer lá para março.

Higiene

Em França, a direita democrática manteve quase sempre uma barreira “higiénica” no tocante ao convívio público com a extrema-direita. Por cá, a Europa vai ser discutida, daqui a dias, com gente do PSD lado-a-lado com o deputado do Chega. Depois queixem-se!

Lado a lado


Aqui vai mais uma contra o “ar do tempo”: neste tempo de incensamento do cronista Vasco Pulido Valente, talvez fizesse bem a muita gente ler (e comparar com) o que escreveu Nuno Brederode Santos.

Baixar a guarda

No boxe, “baixar a guarda” significa facilitar o ataque do adversário. Quase sempre, isso acontece involuntariamente. Desta vez, faço-o em toda a consciência, ao deixar aqui escritas duas coisas, “com toda a frontalidade” (para citar o “clássico” Paulo Bento):

- aprecio muito coragem da ministra da Saúde, tendo-a por uma pessoa dedicada e competente, que está a desempenhar com grande seriedade uma tarefa muito difícil, em especial na conjuntura em que a exerce. Pode, aqui ou ali, ter tido uma declaração pública menos feliz, mas até no reconhecimento dos seus erros tem demonstrado a sua grande honestidade. (“Disclaimer”: Não conheço nem sou amigo da ministra Marta Temido)

- é uma evidência que Vitalino Canas é, de entre os políticos portugueses, uma das pessoas academicamente melhor preparadas para poder ser um excelente juiz do Tribunal Constitucional. Considerar como um “capitis diminutio” o facto de ele ter exercido cargos político-partidários é um reflexo de cariz populista, tipo “conversa de taxista”, como se a passagem por esse tipo de funções públicas, para pessoas honestas e probas, como nunca ninguém o acusou de não ser, significasse perda da sua independência pessoal e legitimasse o lançamento irresponsável de um manto de suspeição. A leitura enviesada e jocosamente chicaneira daquilo que ele disse sobre o facto de se ter preparado durante quatro décadas para o exercício de funções desse tipo é a prova do nível por que se arrasta o debate político. (”Disclaimer”: Fui colega de governo de VC, com quem tenho relações cordiais mas não de proximidade).

E, agora, façam favor...

Têvês

A agenda noticiosa das televisões portuguesas (sublinho, portuguesas) tem um “template” fixo: futebol, “tempos de antena” (presidencial, governamental, partidário, sindical), desastres, escândalos & tudo o que corre mal. É fácil, é barato e dá milhões de visualizações. E o país gosta assim.

Capas

O “Expresso” de hoje traz uma manchete que, em tempos idos, o jornalismo de referência denunciaria como alarmista. Estou certo que era isso que faria o “Expresso”.

sexta-feira, fevereiro 28, 2020

Risco do coronavirus


Percentagem de risco de morte, por grupo etário, se uma pessoa for infetada.

O destino


O que nos últimos dois dias se passou com as equipas portuguesas envolvidas nas competições europeias consagra uma tendência que, ano após ano, dá ideia de se acentuar. Parece hoje evidente que o futebol português, a nível de clubes, revela uma capacidade cada vez mais limitada de afirmação no plano internacional. Os clubes nacionais - mais uns do que outros, naturalmente - tendem a “cair” cedo nas provas onde intervêm e começam a afastar-se inexoravelmente de “potências” de países como a Alemanha, a Inglaterra, a Espanha, a Itália ou a França. Portugal continua a ter excelentes condições para “produzir” magníficos jogadores, mas o poder económico dos seus clubes, mesmo os mais poderosos, revela-se incapaz de os “segurar”. Assim, com alguma arte e organização, o nosso país poderá continuar a ter seleções nacionais competitivas, constituídas com os melhores dos seus jogadores que atuam no estrangeiro, mas o destino parece apontar inexoravelmente para que, cada vez mais, os clubes portugueses venham a ficar distantes do grandes troféus europeus. É pena, mas é assim!

Marquem nas vossas agendas!


quinta-feira, fevereiro 27, 2020

Tristeza

Há pouco, deparei, ali no Facebook, com uma troca acrimoniosa de comentários entre duas pessoas com quem tive o gosto de trabalhar num determinado posto diplomático.

Por essa época, essas pessoas mantinham entre si um esplêndido relacionamento pessoal, que muito ajudava ao convívio, são e descontraído, que sempre imperou naquela embaixada.

O que é que mudou? A política. Gente de esquerda contra gente de direita? Nada disso! Curiosamente, ambos de esquerda! (Ainda por cima simpatizantes doentios da mesma cor futebolística!)

Ao longo da vida, satisfaz-me muito constatar que nunca me zanguei com ninguém das minhas relações por motivos políticos. O contrário já não é verdade: houve amigos, muito poucos, é certo, que se foram afastando por divergências de opinião que eles terão considerado impeditivas da sustentação da normalidade da nossa relação anterior.

É triste? É, mas é a vida.

quarta-feira, fevereiro 26, 2020

Extremos


As expressões “extrema direita” e “extrema esquerda” têm duas similitudes. A primeira é semântica: em ambas, existe a palavra “extrema”. A segunda é que o passado em que essas correntes tiveram origem foi marcado por sinistras ditaduras - de um lado o fascismo e o nazismo, do outro os regimes comunistas, que resultaram num desastre totalitário. As similitudes acabam aí, pelo que é hoje profundamente desonesto procurar equiparar os dois conceitos.

A extrema direita é xenófoba, racista, discriminatória e promotora de políticas de ódio, obsessivamente securitária, cavalgando um sinistro nacionalismo.

A extrema esquerda, chamemos-lhe assim por facilidade, pelo contrário, defende políticas de igualdade e integração social, é anti-racista e anti-xenófoba e tem uma agenda política basicamente humanista - embora eu discorde do seu anti-europeísmo, do radicalismo simplista de muitas das suas receitas e ache irrealistas grande parte das suas propostas, por muito generosas que possam parecer.

Mas eu não esqueço nunca quem esteve do lado certo na 2ª Guerra Mundial, tendo tido um papel fundamental para a derrota do mais odiento projeto político que se conhece - o nazi-fascismo. E também me lembro bem de que, por cá, quando se tratou de ajudar a derrubar o projeto de fascismo saloio, mas criminoso, de Salazar, bem como lutar contra o colonialismo, essa esquerda foi essencial e, por virtude da sua luta corajosa, pagou um elevado preço, sofrendo o que nenhuma outra força de esquerda então sofreu.

Se é verdade que, nos anos de 1974/75 – vai para meio século! -, parte dessa esquerda foi tentada a uma deriva de populismo autoritário, é também uma evidência que a democraticidade da sua postura no sistema político tem sido, desde então, inquestionável. A sua participação na “geringonça” foi o reconhecimento natural desse seu pleno estatuto democrático.

Por isso, não votando eu nos partidos de Jerónimo de Sousa ou de Catarina Martins, de que muitas coisas me separam, deixo expresso que tenho consideração política (e, por sinal, também pessoal) por essas figuras e pelas formações que dirigem. E, como é óbvio, não tenho a menor consideração por quem titula políticas de extrema-direita, bem como por quem tende a desculpabilizá-las e por quem vier a prestar-se a estender-lhes a mão.

Há muito que me apetecia deixar isto bem claro. Seria porventura mais cómodo não o fazer, mas começo a estar cansado da fraude que é a recorrente tentativa de equiparar duas realidades que não se podem comparar.

terça-feira, fevereiro 25, 2020

Ansiedade

Estarei enganado ou deteto em algumas das nossas televisões uma espécie de ávida expetativa pelo primeiro caso de virus positivo em Portugal? Mas deve ser só impressão minha...

Pesar

Não confundo nunca as fronteiras da política com as relações pessoais. A grande perda que Pedro Passos Coelho acaba de sofrer, com a morte da sua mulher, somada ao desaparecimento, não há muito, do seu pai - pessoa por quem eu tinha estima e consideração -, configura para ele um tempo que imagino bem difícil. Deixo-lhe um abraço vila-realense de solidariedade e de pesar.

José Cutileiro


José Cutileiro escreve como poucos. O seu português de lei, culto e preciso, mas não gongórico, somado a um apurado sentido de observação, de onde ele parte para uma análise fina e percutante, torna a leitura dos seus livros um grande prazer. Acresce que a vida deu a Cutileiro a oportunidade de cruzar terras e gentes muito diversas, sabendo ele extrair disso notas inteligentes e divertidas.

Este seu novo livro, agora editado pela Dom Quixote, é uma colagem de textos curtos, muito diversos entre si, que podem ser digeridos autonomamente, o que transmite uma grande leveza à leitura, estendendo o prazer pelo tempo. Tenho apreciado bastante este “Inventário” e já estou com pena por estar a acabá-lo.

Eu gosto das palavras


Eu gosto das palavras e do canto
E dos ecos que trazem à lembrança,
Dessas canções de frança e aragança
Que são só sons que cobrem, como um manto,

O que têm que cobrir, porque, entretanto,
Já há, profissional, uma ordenança
A recolher em fichas, sem parança,
O tom, o cheiro, o muco, do seu pranto

Que cante, e dance, e viva, e morra, e vibre,
Que se desdobre em nervos e minutos,
E seja para sempre eterno e livre

O grito que se ergueu irresoluto
Desse sítio onde o corpo se coíbe
E súbito triunfa do seu luto.

Manuel Resende

segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Daniel de Matos


Daniel de Matos é o médico que acompanhou os últimos quatro presidentes da República. No “Público” de ontem, Maria João Avillez traçou-lhe um interessante retrato humano, que vale a pena ser lido. Nele se descobre um homem sereno e de bem com a vida. Quem o conhece, sabe-o um profissional de grande qualidade, com uma lendária capacidade de diagnóstico. E sabe algo mais: a sua simpatia, o seu proverbial humor e boa disposição, meio caminho andado para a confiança que transmite.

USA

Era excelente ver Bernie Sanders no lugar de Trump na Casa Branca. Pergunto-me é se o facto dele poder vir a ser o candidato democrático não acabará por ajudar a que Trump permaneça no lugar por mais quatro anos. Logo veremos...

E se tentassem fazer jornalismo?

Será demais pedir à comunicação social portuguesa, em especial às televisões, que, perante a expectável extensão a Portugal do vírus, adote uma postura contida e não alarmista, deixando-se de bitaites e de especialistas paroquiais e dando relevo aos conselhos oficiais?

domingo, fevereiro 23, 2020

Palavras

Se a jornalista Ana Leal provar, sem sombra de dúvida, que o primeiro-ministro telefonou para a TVI a pedir a sua demissão, trata-se de um caso gravíssimo, que não pode passar sem sérias consequências políticas. Se não provar, a gravidade é idêntica e, de facto, é uma razão para ser demitida.

O país

Na consequência de corridas com automóveis, feitas de madrugada, bem acima dos 200 km/h, morreram anteontem quatro jovens na 2ª circular. 

Ontem, em ”homenagem” às vítimas, amigos juntaram-se com carros no local do acidente, impedindo o trânsito, obrigando à intervenção da polícia.

Está tudo doido?

Festival


A cançoneta apresentada num estilo muito La La Land foi a que mais me agradou no Festival da Canção, não obstante ter uma letra a armar ao intelectual, com um “name dropping” algo pretensioso. 

Confesso que percebo muito pouco destas coisas, em que sou um assumido “achista”. Pergunto-me, contudo, se aquilo é um estilo para a Eurovisão. Alguns dirão, com razão: também a balada do Sobral não era...

sábado, fevereiro 22, 2020

“Les miens”



Ontem, a propósito da morte de Jean Daniel, citei por aqui o título de um seu livro. Hoje, olhando os mortos “notáveis” que este fim de semana nos trouxe, lembrei-me de outra obra desse jornalista (ou deveria dizer escritor?).

Há quem se queixe de que este meu espaço se converte às vezes num excessivo registo obituário. E quem diz isso, sem o dizer, é porque acha isso chato. Aceito o remoque mas a verdade é essa mesmo: cada vez tenho mais mortos conhecidos.

E há também quem entenda que “faltam” por aqui alguns mortos, que deixo “escapar” gente e que, numa espécie de hierarquia de destaque obrigatório de quantos se vão, isso deveria justificar uma nota.

Ora isto não é um órgão de comunicação social, ou melhor, isto é apenas um órgão de “comoção” pessoal. Por aqui vou notando algumas pessoas cuja saída da cena da vida me toca, umas vezes pela relação ou contacto que possa ter tido com eles, outras vezes pelo que representam na minha memória afetiva (e a afetividade tem dois sentidos, pelo que isso não significa necessariamente que deles goste). Outras vezes, essas notas surgem apenas “porque sim”. Tentar descortinar uma qualquer lógica definitiva na escolha do que aqui deixo escrito é, podem crer, um esforço vão.

O título do outro livro de Jean Daniel de que agora me lembrei é “Les Miens” e resume, em geral, o sentido das notas obituárias que aqui publico. Mas, aviso!, nem sempre!

(E a fotografia? Não tem nada a ver com isto, ou melhor, tem a ver com o facto de eu estar agora sentado num banco do Jardim da Parada, em frente da estátua da Maria da Fonte, uma figura do século XIX, período que, desde sempre, me habituei a ver refém de uma historiografia oportunista, com agendas que se projetam nos interesses políticos do tempo presente. E mais não digo, porque vou comer um pastel de nata à Aloma, para animar os meus açúcares)

Regresso à escola

 
Regressei ontem à minha escola, ao Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Fui convidado para ali fazer a conferência de abertura de um ciclo de doutoramentos em Ciência Política e Relações Internacionais.

Na ocasião, o presidente do ISCSP ofereceu-me um livro sobre a longa história daquela casa, em que acabo de verificar que surjo, numa fotografia de 1968, engravatado e de colete, com um ar de muito bem comportado, algo que, à época, estava longe de ser.

“Contumaz agitador académico” foi a expressão com que fui brindado num processo disciplinar que me valeu, dois anos mais tarde, uma suspensão de seis meses. Em duas das três eleições para os corpos diretivos da Associação Académica em que fui eleito pelo voto livre dos meus colegas, a longa mão do Ministério da Educação Nacional (tempos de Hermano Saraiva mas também de Veiga Simão) viria a determinar também a minha “não homologação”, pelo que não pude vir a exercer esses cargos.

Ganhei por essa época um cadastro e até alguma fama de “troublemaker”, coisa um pouco desajustada para quem, como eu, não estava então ligado a qualquer atividade política ou partidária e apenas me limitava a lutar pelos direitos dos estudantes. Aliás, devia ser curioso comparar a nossa agenda revindicativa desses tempos com as preocupações das estruturas associativas de hoje.

Questão de fusos


O episódio passou-se há mais de três décadas.

Estávamos num hotel de uma capital africana, integrados na comitiva de um membro do governo português. Nessa manhã, íamos partir para o palácio presidencial, onde o chefe de Estado receberia o nosso dignitário. Toda a delegação estava já no hall, pronta para embarcar nos carros. Toda, não! Faltava o nosso embaixador acreditado nesse país, que vivia no hotel, enquanto a residência oficial portuguesa não terminasse as obras que, sob o seu exigente critério, há meses prosseguiam.

Com o tempo a escassear, via-se que o nervosismo começava a apoderar-se no nosso governante, pessoa que os anos futuros mostrariam ser pouco dada a absorver com bonomia as contrariedades que a vida a todos traz.

Tomei a iniciativa de telefonar para o quarto do embaixador. Expliquei-lhe que estava tudo "em pulgas", já com algum atraso, pelo que era urgente que descesse. Como se tivesse à sua frente todo o tempo do mundo, e ignorando olimpicamente a minha observação de que o nosso político estava a ficar furioso, disse-me com a sua proverbial, mas muito simpática, displicência: "Tenham calma! Aqui ninguém chega a horas..."

Cinco minutos depois, desembarcou do elevador, sorridente, aproximando-se da nervosa comitiva. O governante não resistiu e, entre o ácido e o irónico, lançou-lhe:

- Então, embaixador?! Não acordou? Não tinha despertador?

O diplomata, homem há muito conhecido por olhar para as minudências do tempo com a serenidade de quem tem outras prioridades na vida, respondeu-lhe, sem perder o sorriso, quase sarcástico:

- Sabe, até acordei muito cedo. Foi esse, aliás, o problema! Tão cedo era que voltei a deitar-me e, olhe!, adormeci...

E já caminhando para a porta, comentou, comandando a mudança da conversa:

- Belo dia, não acha?

Entre as nossas gargalhadas abafadas e a fúria oficial do chefe da delegação, lá fomos para o palácio. Ainda por lá esperámos um bom bocado, é verdade.

sexta-feira, fevereiro 21, 2020

Mesas


A “Visão” desta semana traz um pequeno mas interessante guia de restaurantes, um pouco por todo o país.

Nenhuma listagem destas, como é sabido, é consensual, mas sempre pode ajudar bastante a quem anda por Portugal de viagem.

Foram pedidas cinco sugestões a três pessoas: à chefe Justa Nobre, ao cantor António Zambujo e a mim.

Em rigor, não se trata de “os meus restaurantes preferidos”, embora neles se incluam mesas que assim podem ser qualificadas.

Optei por indicar nomes de cinco restaurantes situados em localidades pouco comuns ao gastrófilo não iniciado, tal como Moreira de Cónegos, Valhelhas, Avelãs do Caminho, Praia d’El Rei e Vaiamonte.

Quem quiser saber mais, compre a “Visão”! É um belo número

Jean Daniel


Hoje, dia da morte de Jean Daniel, aos 99 anos, fundador do “Nouvel Observateur”, os jornalistas deveriam sentir-se felizes pela bela definição que, um dia, deles deu: os impacientes da História.

Joaquim Pina Moura


Morreu-me um amigo. Morreu Joaquim Pina Moura. Tinha 67 anos e estava doente, há muito tempo.

Conheci-o em 1995, quando ambos trabalhámos com António Guterres. Criámos, de imediato, uma magnífica relação pessoal, sempre divertida, recheada de humor e de crescente cumplicidade. Posso dizer que foi das pessoas com quem acabei por ter uma maior empatia, dentro dos dois governos a que pertencemos. Com uma inteligência fulgurante, rápida e arguta, apanhava o essencial num instante, sabendo transformar logo uma ideia numa proposta realista e com sentido. Ia “a todas”, sabia de tudo. Era um “mouro” de trabalho, uma figura em quem Guterres tinha uma extrema e justificada confiança, nele delegando imensas tarefas. Lembro-me das suas chamadas telefónicas pela noite dentro, ainda como secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, quando alguns problemas europeus “apertavam”, sempre, mas sempre!, atuando com uma insuperável delicadeza para comigo.

Os obituários das próximas horas recolherão, com toda a certeza, o seu histórico afastamento do PCP, de que se tornou num dos mais famosos críticos, após aí ter sido uma “estrela”, em forte ascensão. Nesse percurso, a partir de certa altura, foi-se aproximando de António Guterres, tendo estado no centro da operação “Estados Gerais”, que catapultou o PS para o governo, entronizando Guterres como primeiro-ministro. Durante todo esse tempo, colaborou fortemente com o PS, mesmo sem ser ainda militante do partido. Atribui-se a Jaime Gama, com quem Pina Moura tinha uma excelente relação e uma visível admiração mútua, uma graça que ficou memorável nas hostes socialistas. Reza a “lenda” que, um dia, numa conversa nesse ano de 1995, com Pina Moura presente, Gama terá dito a Guterres que era importante ele entrar para o PS. E descreveu a forma como isso aconteceria: “Um dia, o Joaquim Pina Moura decide aderir ao PS. Vai ao largo do Rato, toca à campaínha e quem é que, do lado de dentro, lhe abre a porta? O Joaquim Pina Moura!”

Lembro-me agora do jantar que ele organizou, com o João Lima Pimentel, assessor diplomático do primeiro-ministro, e para o qual me convidou, no “Vela Latina”, para explorar a ideia, congeminada por ambos, da candidatura de António Guterres à presidência da Comissão Europeia. Pouco dado a ousadias, achei a iniciativa “louca” e sem pés para andar, mas, meses depois, verifiquei que era ele, e o João Lima Pimentel, quem afinal tinha razão - e eu não. O apoio a Guterres, por parte de vários líderes europeus, começou a ser esmagador e a discreta campanha de imprensa e de contactos que o Joaquim e o João tinham engendrado - o chamado “Plano Alfa “, como então foi ironicamente crismado, de que há mesmo um registo “gráfico” - foi de vento em popa. Guterres só não foi presidente da Comissão Europeia porque não quis. Foi ele próprio quem pôs fim à ideia, por razões que um dia serão devidamente explicadas, numa reunião a quatro, na Áustria, numa noite de 1999, com o Joaquim, o João e eu. Lembro-me de mim e do Joaquim Pina Moura, já então ministro da Economia, depois do jantar, a “digerir” a nossa frustração, passeando pelo Graben, na noite fria de Viena.

Tenho muitas recordações do Joaquim Pina Moura. Todas boas. A nossa última e longa conversa acabou por ser em Paris, há já quase uma década, num jantar muito simpático e, como sempre acontecia quando nos juntávamos, bem divertido. Depois do meu regresso a Portugal, a sua progressiva doença forçou o nosso afastamento, com grande pena minha. 

Deixo um grande abraço de pesar a toda a família, em especial à Herculana, uma “mulher-coragem”, de uma lealdade inquebrantável, em especial no sofrimento que para todos foram os últimos anos.

quinta-feira, fevereiro 20, 2020

Falai no mal...

Às vezes, pergunto-me se as pessoas que passam o tempo a falar do deputado de extrema-direita, cujo nome agora me escapa, apenas querem obter “visitas” à sua pala ou se, lá no fundo, não se importam de lhe fazer o jogo. É que não vislumbro uma terceira opção.

Um Pol Pot de trazer por casa

Chegou um dia a Paris, nesse início da segunda década do século XXI, com aquele ar “jeuniste” arrogante que caraterizava alguns de uma geração política a quem a “troika” tinha dado asas para poder exercer o seu liberalismo sem pudor. Não era ainda membro do governo.

No encontro na embaixada, com entidades francesas, desenvolveu uma curiosa teoria. As grandes cidades portuguesas estavam cheias de gente, em especial “velha”, cujos meios de vida, agravados à época pelos cortes nas reformas, eram muito limitados, pelo que se tornavam quase incompatíveis, não apenas com as rendas que lhes eram pedidas, cuja liberalização iria ajudar à “festa”, mas com os próprios preços dos bens e serviços.

“Essa gente é, em geral, oriunda da província e devia a ela regressar, porque teriam aí uma vida mais compatível com os seus recursos. Não digo que para isso seja necessário recorrer a medidas constrangentes, mas o mesmo resultado podia ser obtido por um “mix” de métodos administrativos”.

Os interlocutores franceses estavam siderados, calados de espanto. Eu, embaixador daquela figura, estava interiormente furibundo. E envergonhado. A certa altura, não me contive: “No Cambodja, já experimentaram isso”. O homem, que acumulava a palermice ideológica com o ser um ignorante da História, olhou para mim e inquiriu: “Com políticas públicas?”

Quem lhe respondeu foram as gargalhadas de dois ou três dos franceses sentados naquele pequeno almoço de trabalho. Sabia lá ele quem tinha sido o Pol Pot e as suas celeradas medidas de migrações forçadas para os campos!

Tenho contado este episódio muitas vezes e já me aconteceu cruzar-me com a personagem.

Mal eu sabia, ao ler hoje uma resposta do Chega a uma pergunta, que a teorização de medidas similares continua por aí. Como o fascismo.


quarta-feira, fevereiro 19, 2020

Dietas

O mendigo para a finaça: “Estou sem comer há dois dias!” Resposta da gordaça, entre dietas: “Quem me dera ter a sua força de vontade!”

A morte, sem dramas

Gostei de ler, há pouco: a morte é um dia como os outros. Só que acaba mais cedo

Bolsonaro


O presidente brasileiro dá, a cada dia, sinais de crescente desequilíbrio emocional e de uma imensa dificuldade em viver sob a pressão crítica que a vida democrática implica. Os ataques à dignidade das mulheres, sob a capa de reação à imprensa, atingiram agora níveis inimagináveis. Até onde isto levará o Brasil?

Contra o vento


Vivemos num país de emoções: fortes, definitivas e superlativas. Com fervor quase militante, esgaravatamos o quotidiano para encontrar razões para nos mantermos em estado fervente, sempre escandalizados com “eles”, auto-flagelatórios com tudo “isto”. Se um país corrente, comum, tão igual como os outros, com defeitos e virtudes, ameaça emergir no horizonte, saltamos logo da trincheira: ou somos os melhores do mundo ou somos a escória e a vergonha da vizinhança. Ai de quem nos insulte chamando-nos normais!

Nunca Portugal viveu melhor, em toda a sua História, nunca a generalidade dos seus cidadãos, em média, teve uma vida tão confortável, em matéria de direitos, de segurança, de rendimentos ou de bem-estar. E, no entanto, se olharmos alguns títulos e o caráter façanhudo de certas pantalhas televisivas, dá ideia que o país está a caminho dos níveis de Aleppo. O nosso serviço público de saúde é notado como um dos mais eficazes do mundo, mas são as suas falhas, que sempre existiram, mas eram aturadas em silêncio, que agora fazem a notícia. Quando as estatísticas de segurança interna esmagam a boataria dos números falsos da criminalidade, não há quem não lembre que teve uma prima vítima de esticão na mala de mão, como se pudesse passar pela cabeça de alguém haver o menor orgulho em sermos o terceiro país mais seguro do mundo. Passámos décadas a gastar milhões para trazer turistas de fora, para atenuar a conversa dos comerciantes de que “isto este ano está pior do que no ano passado”. Um dia, os turistas vieram: “São demais! Lá se vai a nossa identidade! Invadem-nos a cidade!”.

E então, a corrupção? Não temos? Claro que temos, como temos o combate à corrupção, cada vez mais eficaz, o que a torna mais visível, infelizmente nunca tão eficaz que consiga erradicá-la por completo. Mas ninguém tem a coragem de dizer, alto e bom som, que os níveis de corrupção em Portugal estão perfeitamente na média dos países com o nosso grau de desenvolvimento. Espera aí! Mas a estatísticas não dizem que estamos no “topo”? Não dá jeito ler bem, não é? É que confundir deliberadamente corrupção efetiva com “perceção de corrupção”, que é o que tem sido alegado, é muito confortável para o achismo da “conversa de taxista” e vai muito com o ar do tempo e o discurso tremendista dos indignados profissionais.

É bom ser português. Tenho a ideia de que, nos dias de hoje, há muita gente que, pensando isso intimamente, teme dizê-lo alto, de tão policiado que anda pelos profissionais do pessimismo.

terça-feira, fevereiro 18, 2020

O comissário mistério

No lançamento de um livro de Carlos Moedas (evento a que não fui, apenas por impossibilidade absoluta de agenda, dada a simpatia que tenho pelo autor), Pedro Passos Coelho revelou que o nome de Maria Luís Albuquerque foi equacionado por si para Comissário a indicar por Portugal, ainda antes do de Moedas. Mas disse mais: que Jean-Claude Junker lhe sugeriu um outro nome, que o então PM não aceitou. Quem seria?

segunda-feira, fevereiro 17, 2020

O racismo no Estado Novo

O tema Marega trouxe por aí a peregrina ideia de que no tempo da ditadura é que era bom: não havia racismo, brancos e pretos viviam num mundo ideal de entendimento, o Portugal pluricontinental e plurirracial era, assim, “outra loiça”. Só faltou trazerem “o preto da Casa Africana” para o atestar. No fundo, subliminarmente, fica a ideia: a democracia é que estragou tudo isso!

Salazar, na sua bondade integradora, até tinha “eleito” uma deputada negra, para além dos indianos regularmente exibidos pelo regime. Mais do que isso: a ditadura nomeou mesmo um negro como Secretário de Educação de Angola, Pinheiro da Silva, que veio a tornar-se Procurador à Câmara Corporativa. Ah! Se o 25 de abril não tivesse aparecido!

É claro que, pelo meio, houve a guerra do Ultramar (para quem achava que aquilo eram possessões portuguesas) ou guerra colonial (para quem sabia que aquilo eram colónias) ou guerra de África (para quem pretende disfarçar-se por detrás dos eufemismos). Mas isso são “fait divers”, somados a mais de 10 mil mortos, só do lado “de cá”... porque os pretos mortos fazem parte de uma outra contabilidade, que nunca foi a “nossa”.

Um dia, na “metrópole”, nesse ambiente de consabida igualdade que prevalecia entre os diferentes coloridos humanos, sempre em amena convivência, teve lugar uma altercação entre dois políticos do regime: o já referido Pinheiro da Silva e o deputado salazarista Júlio Evangelista. Este último terá dito algo tido por insultuoso, o que levou Pinheiro da Silva a avançar para ele. O verniz do convívio multirracial estalou na frase de Júlio Evangelista, que a pequena história, com maior ou menor rigor, acolheu: “Alto lá! Preto não bate em branco!”

Uma questão de decência


Já se percebeu que a sociedade portuguesa só reage e atua sob pressão do escândalo. O caso Marega é uma extraordinária ocasião para suscitar um saudável movimento nacional contra o racismo, com impacto nas escolas, na comunicação social, em toda a sociedade. Importante, contudo, é evitar que o tema se torne refém de agendas políticas e de oportunismos. Lutar contra o racismo é apenas uma questão de decência.

Tozé Martinho


Não gosto de saber que há gente que morre com esta idade.

domingo, fevereiro 16, 2020

Marega


Marega foi um homem de coragem. Não apenas ao querer abandonar o campo, quando alvo de insultos racistas, mas especialmente ao levar o seu ato até ao fim, não obstante as pressões que sofreu.

Combater abertamente o racismo é um imperativo, se queremos continuar a ser um país decente.

CGTP

A nova líder da CGTP, vem agora a saber-se, nunca trabalhou numa empresa. Mas foi assalariada... da própria CGTP, o que constituiu, em toda a sua vida, o seu único emprego. Confesso que tenho alguma curiosidade em saber quantas ações reivindicativas, quantas greves, promoveu contra o seu patronato.

Da Opinião à Cotovia


A Cotovia é uma editora ousada. Há meses, com a Imprensa Nacional, meteu-se na esplêndida aventura de editar as crónicas de Nuno Brederode Santos, uma iniciativa que, nada garantindo à partida vir a ser um êxito editorial, antes pelo contrário, mostra uma saudável responsabilidade cultural. Se já tinha uma simpatia pelo seu catálogo, ganhei, nesse momento, um maior respeito pela linha orientadora da ação da Cotovia.

Leio agora que a editora vai sair do espaço que ocupava, num edifício de montras largas, entre a rua Nova da Trindade e as Escadinhas do Duque. Passa a vender on-line e, claro, abandona o centro de Lisboa, uma zona da cidade que está cada vez menos amiga dos livros. (Há dias, andei pela rua da Misericórdia, ali perto, e constatei que, através das portas dos antigos alfarrabistas que conheci, se acede hoje a um mundo de comes-e-bebes quase só dedicado a turistas. Cada tempo tem os seus usos e a nostalgia não é para aqui chamada.)

A Cotovia sai de um lugar que, noutros tempos, conheci muito bem. Entre 1971 e 1980, aí funcionou a Opinião, uma aventura livreira e não só - era uma galeria de arte, vendia discos e havia um simpático bar no último dos quatro pisos.

Foi em finais de 1971 que comecei a trabalhar, não muito longe, no Calhariz, e a Opinião, criada logo em dezembro desse ano, era para mim e alguns amigos um lugar regular de pouso, ao final da tarde.

No bar, onde tenho na memória o vício de tomar Cuba Libre (bem à moda, por essa época), cruzei então várias figuras de uma certa intelectualidade lisboeta, alguma que tinha estado ligada à criação da Opinião e que, politicamente, andava dentro ou nas franjas do clandestino PCP.

Algum pessoal dos jornais vespertinos do Bairro Alto andava bastante por ali, com o “República” como vizinho. Foi na Opinião que o jornalista Carlos Albino adquiriu o disco que iria servir de senha do 25 de abril. Ali conheci Batista-Bastos, que trabalhava no “Diário Popular“, uma das figuras mais marcantes dessas tertúlias improvisadas, em fins de tarde agradáveis, que me atenuavam as horas de contabilidade que passava na minha atividade bancária.

A atividade da casa testava então as margens, cada vez mais estreitas, da “abertura” marcelista. Recordo bem uma conversa tida na Opinião com o historiador A.H. de Oliveira Marques o qual, a propósito da edição da sua História de Portugal, no dia em que foi ali lançada, me referiu uma conversa que havia tido com o próprio Marcelo Caetano, que o estimulara pessoalmente no empreendimento.

Às vezes, saíamos da Opinião em grupo, para espetáculos teatrais, sob a mão orientadora de Carlos Porto, o crítico de teatro do Diário de Lisboa, cuja mulher, Teresa, trabalhava na livraria, lado a lado com um amigo cujo nome agora me escapa, que antecedeu a chegada do Hipólito Clemente, que se tornaria na “cara” da Opinião até ao seu encerramento. Essas noites acabavam, em conversas e jantaradas, na Ribadoura, na Portugália e até no restaurante das bombas de gasolina da Rotunda da Encarnação. Não havia por li nenhuma particular boémia ou aventura, apenas um espírito de convívio e partilha cultural que, para o miúdo recém-entrado na casa do 20 que eu então era, constituia uma “porta” interessante para uma cidade que por essa via se lhe abria.

Depois, a tropa e a vida diplomática foram-me distanciando desse convívio, mas voltei sempre, regularmente, à Opinião, para saber de “novidades” livrescas, contando com a cumplicidade do Hipólito Clemente, que ali oficiou na segunda metade dos anos 70, para conseguir obter alguns livros menos “fáceis”.

Quando, em 1979, fui viver para a Noruega, combinei com ele as minhas regulares encomendas de “coisas” que fossem saindo e que a flexibilidade da utilização da mala diplomática me fazia chegar a Oslo, juntamente com os jornais. O acordo não durou muito tempo. A Opinião fechou no ano seguinte, sem hipótese de empréstimos bancários, porque, como dizia o Hipólito (e a Isabel dos Santos seguramente confirma), “a banca só empresta a quem o tem”.

Agora, nem Opinião nem Cotovia. Resta a curiosidade de saber que ramo de negócio irá ocupar o edifício. Há uns anos, recordo-me daquele espaço ter sido ocupado por uma atividade ligada a produtos eróticos. A cultura tem muitas formas...

Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...