domingo, julho 16, 2017

Do ódio

Há momentos em que o ódio é legítimo? Há situações em que o sentimento de estarmos a ser atingidos, de forma arbitrária, nos leva a ser possuídos por uma imparável vontade de vingança. Toda a tolerância que ao longo de uma vida ensaiamos, com racionalidade, é, num segundo, ultrapassada por um estado de revolta profunda contra aquilo que nos rompe a linearidade da vida, o nosso bem-estar, que nos subverte os sonhos, tornados pesadelos. Sei que não devia, talvez, estar a partilhar aqui a intimidade de um sobressalto exclusivamente pessoal, de uma animosidade como aquela que me tomou, que violentou decisivamente a minha calma. Ontem, fora de Lisboa, na escuridão silenciosa de uma noite de verão, tomei uma atitude que hoje posso reconhecer ter tido o seu quê de violenta. Estou arrependido? Não estou. Quem por aqui me acompanha, creio que compreenderá. Sou uma pessoa pacífica, julgo que equilibrada, não extremista. Mas o que é demais, a partir de certo ponto, não se pode aceitar, a legítima defesa perante a agressão é, a meu ver, uma resposta adequada. Teve algo de sangrento? Teve. Acesa a luz, lá estava ela, expectante, quase provocatória, a melga. Na fúria, no ódio com que a esparramei na parede branca descobri uma outra face de mim. Foi bonito? Não, não foi. Mas se tivessem sido objeto por quase uma hora de mordidelas, eu queria vê-los no meu lugar!

sábado, julho 15, 2017

Século XXI?

Ontem, por um mero acaso, surgiu-me no Twitter uma entrevista, a uma televisão canadiana, do lider checheno, em que este profere algumas opiniões "medievais" àcerca do tratamento dado aos homossexuais naquela República russa.

Ainda não estava refeito do primarismo que transparecia daquela entrevista quando vi alguns extratos de declarações do professor Gentil Martins, nas quais este distinto cirurgião profere opiniões que colocam a homossexualidade ao nível das doenças e perversões.

Há dias em que parece ser legítimo desconfiar que há setores do mundo que ainda não entraram no século XXI. 

sexta-feira, julho 14, 2017

Perpexidade

Não gostei de ouvir o primeiro-ministro dizer o que disse na quarta-feira na Assembleia da República sobre a Altice/PT/MEO.

Não gostei, desde logo, porque não acho correto que, daquela tribuna, se singularizem empresas, da forma como isso foi feito, com todo o efeito potencial que tal pode ter na atitude dos mercados. Achei isso bastante imprudente da parte de António Costa. (A quem estranhar que eu escreva isto, lembraria que nunca condiciono a liberdade da minha opinião às simpatias políticas).

O que se passou, contudo, só confirma algo que já se ia sabendo: que a Altice se está a comportar em Portugal de uma forma altamente agressiva, numa estratégia empresarial que está a colocar em causa muitos postos de trabalho. Esta atitude hostil da empresa só nos pode suscitar grande perplexidade. 

Essa perplexidade aumenta muito ao saber-se que a Altice está prestes a adquirir a Mediacapital, proprietária da TVI e da Rádio Comercial. Acho muito estranho, confesso, que a expansão de um grupo, em tão larga e significativa escala, seja feita sem um diálogo, prévio e sereno, com os poderes públicos. 

Portugal é uma economia de mercado, aberta, com regras cujo cumprimento compete à regulação fiscalizar. Depois disso, há os tribunais. Será assim? É, mas nós sabemos que o bom senso exigiria que entre a empresa e o Estado as coisas se estivessem a processar de outra forma. E essa é a razão da minha grande perplexidade.

Américo Amorim


No tempo que antecedeu o surgimento dos "capitães de abril", a imprensa costumava designar homens como Américo Amorim, que ontem morreu, como "capitães da indústria". Esses eram também os dias em que ao qualificativo de “capitalista” não eram dadas conotações ideológicas e em que o termo “empresário” era exclusivamente dedicado aos produtores do Parque Mayer e ofícios correlativos.

Amorim faz parte de uma nova geração de criadores de riqueza que o período pós-25 de abril trouxe à ribalta. Durante anos, os expoentes dessa geração tiveram de defrontar o preconceito social de representarem o "dinheiro novo", face ao "dinheiro velho" das famílias que, à sombra do condicionamento industrial, tinham prosperado durante a ditadura, ao lado ou em aliança com o capital financeiro que adubou o Estado Novo. Os factos, contudo, vieram a não dar lustro, por aí além, aos alegados brasões históricos.

O mundo começou por conhecer Américo Amorim a partir do seu notável império da cortiça. Mas essa foi apenas a base a partir da qual criou um conjunto heterogéneo de investimentos, numa multiplicidade de áreas que tiveram o sucesso como marca comum.

Falei poucas vezes com Américo Amorim. A primeira em Londres, há mais de um quarto de século, quando aceitou ser nosso convidado numa palestra. Recordo o seu entusiasmo sorridente, que se somava àquele sentido de "saber ver antes dos outros" que, com os anos, fui descobrindo ser a qualidade comum - e distintiva da vulgaridade dos empreendedores - a certas figuras do mundo empresarial privado. A última vez que conversámos foi há poucos anos, quando o vi envolvido, com empenho solidário, numa louvável e discreta iniciativa de generosidade social, a que fui convidado a dar uma modesta colaboração.

Dizer que, na economia portuguesa, fazem falta homens como Américo Amorim pode parecer um lugar comum. É para mim muito evidente que fazem falta, entre nós, muitos mais criadores de riqueza e de emprego, que Portugal necessita de um tecido empresarial com forte dimensão, para poder competir internacionalmente. As PME têm aí um papel insubstituível, nomeadamente na diversificação (produtiva e geográfica) da exportação, mas sem empresas grandes e sólidas, projetadas para o exterior, a economia portuguesa não passará nunca da cepa torta. Isto é, nunca sairemos do estatuto em que há muito permanecemos (e que sei não ser agradável recordar): ser o país mais pobre da Europa ocidental.

Nos dias de hoje, Américo Amorim era o homem mais rico desse país pobre - e imagino que deva ser esse o mote para alguns especuladores da palavra, que sabem ser essa a forma mais eficaz de alimentar a medíocre cultura de inveja dominante.

quinta-feira, julho 13, 2017

Assuntos europeus



Perdoar-se-me-á que mantenha uma atenção particular sobre a pasta dos Assuntos Europeus. Afinal, ocupei aquele gabinete por mais de cinco anos, dediquei boa parte da minha carreira diplomática àqueles temas, continuo a tê-los como o meu principal "fond de commerce" de interesses.

Por razões que desconheço, mas que respeito, sai dos Assuntos Europeus Margarida Marques. Tanto quanto me foi dado observar, foi uma excelente secretária de Estado: conhecedora dos dossiês, com visão estratégica, neste tempo muito mais exigente na área europeia do que alguns curiosos da "espuma dos dias" políticos podem julgar. Tenho a imodéstia de assumir que só digo isto de algumas escassas pessoas, entre todos os meus sucessores no cargo.

Em sua substituição, assume funções Ana Paula Zacarias, uma excelente diplomata. Tal como Margarida Marques, é uma pessoa conhecedora dos meandros bruxelenses, com uma carreira brilhante no Serviço Europeu de Ação Externa. O primeiro-ministro e o MNE ganham uma colaboradora de "primeira água", a quem desejo o maior sucesso.

Ontem, em outro post, referia por aqui que as mulheres dominam nos assuntos europeus, em Portugal. Nos casos que referi, acumulam: são mulheres e muito competentes. O país continua muito bem servido na pasta dos Assuntos Europeus. E bem precisa!


quarta-feira, julho 12, 2017

Lula


Tenho uma forte estima pessoal por Lula da Silva. Como embaixador de Portugal no Brasil, e depois disso, devo-lhe algumas atenções, que não esqueço. Como cidadão português, sinto-me grato pelas muitas atitudes que dele testemunhei, abertamente favoráveis ao reforço das relações com Portugal, muitas vezes à revelia de certos setores oficiais brasileiros. Além disso, e no plano político, conservo um imenso apreço pelas medidas que Lula tomou em favor das pessoas mais desprotegidas do Brasil, que mudaram, para bem melhor, a vida de muitos milhões de brasileiros.

Lula da Silva acaba de ser condenado, em primeira instância, por crimes de corrupção. Se a sentença vier a ser confirmada, e sem infirmar por um instante tudo quanto acima escrevi, espero que Lula da Silva seja punido pelos crimes que venha a ficar claramente provado que cometeu. Se vier a ser inocentado, lamentarei, como amigo, que a Justiça o tenha feito passar por essa provação. Em qualquer dos casos, que fique claro: a minha estima pessoal por ele permanecerá.

É assim que eu vejo a vida.

Diplomacia familiar


Vi o cavalheiro surgir uma noite lá em casa, com ar grave. Foi recebido pelo meu avô e pela minha mãe. Era uma figura relativamente importante, na hierarquia das personalidades de Vila Real, onde chefiava um departamento oficial. Eu devia ter 11 ou 12 anos e o facto da conversa ter lugar à porta fechada fez-me pensar ser grave o assunto.

No fundo, a história era simples. O filho desse cavalheiro, um rapaz de vinte e poucos anos, havia "raptado" uma jovem de 17 anos, por quem estava apaixonado, cuja família, residente perto das Pedras Salgadas, tinha um vago parentesco com a nossa. O registo não podia ser mais clássico: a família da rapariga, por qualquer razão, não aceitava o rapaz (já assim era em Verona, ensina a literatura) e este, com a pressa fogosa dos dois a ajudar, forçou a decisão drástica.

A jovem tinha sido levada da casa "de boas famílias" em Vila Real onde estava hospedada, durante a noite (nunca percebi por que razão estas coisas se fazem de noite, mas deve ser para magnificar o romantismo do ato). Estariam então em "parte incerta" (o futuro viria a revelar ser Lamego, a apenas escassas dezenas de quilómetros, em casa de parentes).

Nessa pequena cidade de província dos anos 60, o escândalo só não se tornou "viral" na má-língua dos cafés porque esse vocábulo se limitava então às suas tradicionais dimensões médicas. Mas, por uns dias, não se falava de outra coisa: "Então já sabes que o filho do doutor Fulano fugiu com uma aluna do Magistério Primário?"

Ele era um pouco mais velho, tinha historial de conquistas e, provavelmente por isso, o pai da pequena, um abastado proprietário rural, talvez temendo pelo destino da herança, fizera forte "contravapor" ao romance.

A visita nessa noite do pai do raptor destinava-se a pedir uma mediação por parte do meu avô. Conhecendo-o, divertido como ele era, deve ter-se deliciado com o enredo, pedindo à minha mãe para o "assessorar".Desconheço o teor da conversa havida, apenas constatei que, no dia seguinte, o meu avô e a minha mãe, não sei com que mandato nem garantias recebidas, lá partiram para uma conversa com o pai da raptada.

Ao progenitor, cujo nome não vem para o caso, sempre ouvi designar lá em casa por "o Rendufe". Tinha ficado naturalmente furibundo com o rapto da filha e, no seu consabido mau feitio, constava que tinha prometido mesmo dar "uns tiros de caçadeira definitivos nos dois", para lavar a honra da família. Nisso era acompanhado pelo irmão da rapariga que, rezavam também as crónicas, andava munido de uma moca, que alardeava ser para "desfazer à paulada" o raptor. (Para sempre, sempre passou a ser designado na nossa família como "o da moca"...)

As condições de base para a negociação não se apresentavam, assim, muito favoráveis a um compromisso. Por uns dias, a boa vontade do meu avô e da minha mãe, sob o olhar distante e algo divertido do meu pai, mobilizou um curto "shuttle" entre a cercanias das Pedras Salgadas e uma moradia perto de um miradouro a que, em Vila Real, se chama a Meia Laranja. A minha memória mais impressiva desse "operação" é uma hora de "seca" passada num carro, à porta desta última morada, aguardando uma das diligências, nessa atividade de "go-betweens". Tenho uma vaga ideia de ouvir falar de promessas patrimoniais feitas pela família do raptor para apoio ao casal, como parte do possível entendimento.

O compromisso fez-se e, ao que parece, a minha mãe terá tido nisso um papel vital, no processo de convicção dos pais da jovem. Lembro-me bem dos meus tios brincarem com ela, chamando-lhe a "diplomata" da família.

Aliás, o reconhecimento do sucesso do empreendimento foi tal que houve casamento, tendo a minha mãe e o meu avô servido de padrinhos. Não me recordo de ter ido à boda, mas lembro-me dos recém-casados passarem a ser visitas lá de casa.

Ele tinha um ar de galã nervoso, de boas maneiras, sempre de boquilha, se bem me lembro um pouco dado aos álcoois, frequentador habitual da barra da Toca da Raposa. Ela era uma bela, roliça e "bem desenhada" e "grown-up" adolescente, se a minha memória me não trai (e, nestas matérias, por qualquer razão, costuma ser fiel...). Um dia mudaram-se para o Porto e nunca mais ouvi falar deles.

Do episódio - que me veio à memória quando, há dias, passei frente à casa dos pais do raptor - guardei para sempre as diligências "diplomáticas" da minha mãe, quiçá reveladoras de que essa qualidade humana é, porventura, de natureza hereditária.

Peixe frito, claro!


Correspondendo a um pedido expresso de dois amigos estrangeiros, um anfitrião luso organizou hoje, no seu terraço, um almoço de peixe frito! "Peixe frito"?!, já estou a imaginar a reação espantada de alguns "finaços". Isso mesmo! Peixe frito! Magnífico! Depois de uns queijos para "fazer boquinha" (um serra amanteigado, um meio curado e um curado a sério), acompanhados por um espumante da zona do vinho verde, passámos ao essencial. Antecedido de uma sopa de couve flor (o toque das natas e o caviar fizeram a diferença), abrimos com uns carapaus fritos, seguidos de pescadinhas de rabo na boca, de se lhes tirar o chapéu! Tudo com um belo arroz de tomate, "à maneira". A acompanhar, claro um Alvarinho. Fechámos, bem "ao de leve", com uma mousse divina, morangos e umas cerejas da Gardunha, "para desenjoar", como se diz na minha terra. Não fosse, contudo, o aparelho digestivo ressentir-se, o anfitrião proporcionou, com o café, um digestivo: uma aguardente caseira, minhota. Eu, que já não tenho fígado para essas aventuras, fiquei-me num "Jameson", p'ró novo. E bela conversa! Há almoços que valem a pena!

terça-feira, julho 11, 2017

Hamburgo

Por mais que tenha procurado, não consegui encontrar prova de que Trump, à chegada ao G20 em Hamburgo, tenha tentado imitar a frase de Kennedy em Berlim, dizendo: "Ich bin ein hamburger".

É pena.

Caixa em pizza

Não, não é "pizza em caixa", distribuída pelos motards; é mesmo "Caixa em pizza". É que a Comissão parlamentar de Inquérito sobre a Caixa "deu em pizza".

(É pena nós não termos por cá esta expressão que os brasileiros conhecem "de gingeira". Trata-se de um episódio passado no Palmeiras, clube de futebol, onde um conflito interno acabou num jantar conjunto das partes conflituantes. A imprensa reportou então que "acabou em pizza". Desde então, sempre que se pressente que um inquérito não vai dar em nada, os brasileiros dizem "vai dar em pizza".)

Como já era de esperar, num terreno tão pantanoso para o PS e PSD, com o CDS a "meter a colherada", o inquérito deu "em águas de bacalhau": afinal nada se provou em matéria de favorecimentos políticos, por via de créditos concedidos.

Apetece-me assim repetir o que, sobre este assunto, vai para um ano, escrevi num jornal. Aqui fica.

"Eu e todos os portugueses – repito, contribuintes investidores – temos o direito a saber, preto no branco, quais a responsabilidades exatas do condomínio PS/PSD, com algum CDS à mistura, que dominou a Caixa nas últimas décadas. Desde logo porque, nessa gestão politizada, houve gente competente e outra que o foi menos – e não podem todos ser medidos pela mesma rasa. 

Os portugueses têm o direito de saber, com nomes e números, quem foram, nos anos que prejudicaram a instituição, os responsáveis pelos créditos concedidos sem as necessárias garantias, se houve motivação política nessas decisões, se aconteceram, e porquê, grandes perdões de dívida e quem são hoje os principais devedores incobráveis – alguns dos quais andam por aí de costas direitas, com ar de gente séria.

A Caixa é uma coisa demasiado importante para que os erros de quem por lá passou possam ser iludidos, numa espécie de voluntária amnésia para absolver os vícios políticos do sistema. E, se o governo e alguns partidos se mostrarem relutantes a fazê-lo, o presidente da República deveria lembrar-lhes essa responsabilidade. O país ficaria grato."

Mas, pelos vistos, "acabou em pizza".

Guiar o apetite




Nos dias de hoje, vivemos inundados de notas sobre restaurantes, de guias, de listas, de blogues, de revistas que os recomendam, de programas de televisão (e até de rádio) que os promovem.

Embora a abundância de referências possa acabar por confundir alguns - até porque muitas vezes tal não é acompanhado por uma discriminação crítica capaz - é evidente que, em termos de informação, estamos hoje mil vezes melhor do que, por exemplo, estávamos há trinta anos, quando o destaque dado a alguns desses locais vivia da mera publicidade e da muito escassa crítica na imprensa - onde o nome maior era já então a figura referencial de José Quitério, sem menosprezo pelo excelente trabalho de muitos outros. 

Esse era também o tempo áureo do boca-a-boca, da dica de quem sabe onde se come "o melhor bacalhau", ou "o melhor leitão" ou onde há "o melhor Abade de Priscos". Uma "conversa" onde há que isolar profilaticamente quem come "o que vier à rede" e quem se dedica a promover os amigalhaços. 

Porque sempre fui um andarilho de mesas da gastronomia, fui coletando muita informação sobre esses ditos melhores locais, que sempre partilhei (e continuo a partilhar) com os amigos. 

Um dia, em finais de 1987, eu e o Alfredo Magalhães Coelho decidimos juntar todos os dados que tínhamos acumulado, "democratizá-los" e publicar, em "fascículos" policopiados, alguns guias regionais de restaurantes. 

A ideia era dar a quem se passeasse pelo país a possibilidade de encontrar um lugar "decente", nas principais localidades de alguma dimensão onde chegasse. Além das referências costumeiras, informava-se sobre os pratos mais típicos e até dávamos dicas geográficas para chegar aos locais. 

Com estes guias pretendia-se evitar que as pessoas tivessem de recorrer aos dois critérios quase infalíveis para escolher uma boa mesa, numa localidade portuguesa sobre a qual não há referências: perguntar qual o melhor restaurante local a um tipo gordo (é essencial que seja gordo!) e com ar abastado (tem também de ser pessoa "de posses") e, cumulativamente, inquirir "onde costuma almoçar o senhor presidente da Câmara". A coincidência destas duas informações tem um grau de rigor superior ao Guia Michelin. 

Os nossos guias artesanais (gratuitos, claro) foram um imenso sucesso. Eram "batidos" por mim num "286" (o neolítico dos computadores) e, tal como o "Avante!" no tempo do "Botas", eram impressos "clandestinamente" (a tiragem era muito escassa, para marcar a raridade da obra e o privilégio de poder ter a ela acesso) pelo saudoso Camilo, na reprografia da Direção-Geral dos Assuntos Comunitários. (Ao olharem as cores das capas, os diplomatas que me estiverem a ler cruzar-se-ão com algo conhecido...) 

Nunca chegámos a cobrir todo o país, mas creio que houve guias de Trás-os-Montes, Minho, Beiras, Alentejo e Algarve. O guia de Lisboa e Ribatejo e o de Porto e Beira Litoral (as ilhas nunca estiveram previstas) foram sendo adiados até ao dia de S. Nunca. 

Ontem, numa revisão de estantes, encontrei dois "números" (de 1988 e 1989), bem marcados pela humidade. Nem os abri! Nada é mais perecível do que um guia de restaurantes. Por isso, quando consultarem algum, verifiquem logo a data de impressão. Tudo o que tenha mais de um ano deve merecer uma imediata desconfiança (sei do que falo, acreditem!)

segunda-feira, julho 10, 2017

A Oeste nada de novo

Já tinha havido uns ensaios, mas o comportamento da personagem não ajudava. Dizer bem de Trump ainda era complicado, simplesmente porque ia contra o bom senso mais razoável. Aqui ou ali, em especial nas redes sociais, ia havendo alguns corajosos que se atreviam a notar que, afinal, o homem dissera qualquer coisa que tinham por sensata (ou, o que era mais vulgar, que exprimira alto aquilo que alguns pensavam baixo). Mas o pendor ciclotímico da figura, que consegue desdizer num tweet o que antes deixou entender numa daquelas frases com um vocabulário de dezenas de palavras, "traduzido" pressurosamente pelos exegetas criativos da Casa Branca, logo tirava o tapete aos prestimosos "trumpetistas" lusos. Que, por essa via, permaneciam órfãos. Mas atentos e veneradores. 

Trump leu agora, na Polónia, uma proclamação maniqueísta, do género da linguagem "nós ou eles" que, não há muito tempo, facilitou confrontações trágicas. Com um texto que está a anos-luz daquilo que ele alguma vez conseguiria articular por si próprio (mesmo os seus maiores fãs coincidem nisto), Trump provou saber ler o que lhe colocaram à frente. A nossa direita atlantista radical rejubilou. Um texto onde se nota o dedo do par de Steve (Miller e Bannon), com uns floreados estilísticos desenhados pelos "speechwriters" do ultra-conservadorismo americano. Um discurso formalmente escorreito, tanto quanto se pode chamar "escorreita" a uma peça proclamatória de nova Guerra Fria, num tempo em que o mundo decente julgava ter definitivamente ultrapassado essa fronteira. Trump, apanhado na ratoeira em que o seu anterior tropismo para uma acomodação com Putin o havia acantonado, foi claramente forçado pelo "establishment" republicano, fortemente anti-russo, a debitar um "mantra" jingoísta, de defesa do "ocidente", que agrada à "nova Europa", dando, de caminho, pasto discursivo à retórica confrontacional que tem vindo a tomar conta da NATO. 

Por cá, os atlantistas radicais de serviço, que são quase exatamente os mesmos que já haviam visto "armas de destruição maciça" no Iraque, cavalgaram esta preciosa oportunidade e já se disponibilizam a dar (finalmente!) um aval de confiança ao mais primário líder que a América algum dia produziu. E, claro, julgando ser isso um elogio, comparam-no a Ronald Reagan, essa espécie de "benchmark" da "direita intuitiva", que alguma "esquerda" que aí anda tende também a apreciar.

Estão assim abertas as inscrições para a "Associação de Amizade Portugal-Trump". A lista dos fundadores pode ser observada numa certa plataforma informática. Quase se pode dizer que "a Oeste nada de novo", ou melhor, que, neste Ocidente sem imaginação, é tudo tão velho como os trapos. Ou como a guerra.

domingo, julho 09, 2017

Fim de tarde na redação

- Ó chefe! Demitiram-se três secretários de Estado. Que título quer para abrir?

- Eh pá! Um que seja de pancada no governo, claro! E da de criar bicho! 

- Por eles se terem demitido?

- Sei lá! Para já, um porradão forte no Costa. Depois, logo se vê! Olha! E ouve-me já as reações da oposição, não te esqueças!

- Mas não havia uns deputados deles que também aproveitaram borlas de empresários?

- Mau, mau! Mas tu agora deste em funcionário dos gajos ou quê? Fogo à peça e deixa-te de ideias. Olha que o patrão anda a rever a lista de dispensas...

"O período Milu"


Ao rever hoje "Kilas, o mau da fita", o filme de José Fonseca e Costa, dei-me conta, pela primeira vez, que uma atriz que foi convidada a nele participar era Milu. 

No filme, Milu tinha 52 anos e ainda muita da beleza que a havia tornado uma grande vedeta do cinema português dos anos 40 - do "Costa do Castelo" ao "Leão da Estrela". Foi também ela quem lançou canções tão populares como "Cantiga da rua" e "A minha casinha".

Mas a razão por que me lembrei de Milu foi mais "corporativa". É que consta que, num certo tempo da vida do Palácio das Necessidades, muito antes de eu ter para lá entrado, Milu terá tido um "caso" com uma figura central daquela casa da diplomacia. E de tal modo a relação seria intensa que a dedicação dessa figura ao trabalho quotidiano do MNE se ressentiu fortemente por um certo tempo, com isso conduzindo a algum marasmo na ação do ministério. Por essa razão, esse tempo ficou por lá conhecido pelo "período Milu". Devo confessar que, olhando para a fotografia junta, sou facilmente levado a identificar algumas atenuantes bem atendíveis...

Será realmente verdadeira esta história? Bom, este é, pelo menos, um "mito urbano-diplomático" que sempre ouvi de colegas mais antigos.

sábado, julho 08, 2017

Senhor presidente, senhoras e senhores deputados!

Utilizo o vocativo de norma, que aprendi quando andei pela bancada governativa, para deixar expressa a imensa tristeza cívica que me deixa o facto de alguém (ou "alguéns") ter "bufado" para o exterior da Comissão parlamentar, em que foi ouvido o Chefe do Estado-Maior do Exército, o essencial do que foi dito, sobre uma matéria da maior delicadeza, num contexto que o respetivo presidente da Comissão havia previamente qualificado em absoluto como de "reservado".
Que tristeza!

À GNR

(Foto de Alcina Ribeiro/ página da GNR)

Há umas semanas, destaquei aqui um comportamento exemplar da GNR de Mangualde (como antes o havia feito em relação a uma ação da PSP de Vila Real). 


Hoje, em homenagem à corporação, deixo esta bela fotografia

Cansaço

Pode ser defeito meu, mas fica aqui a minha palavra de honra de que, quando chego a um canal televisivo e vejo deputados de dois ou mais partidos a discutir, qualquer que seja o tema, mudo de imediato de programa. Faço isso há muitos anos e não julgo ficar menos bem informado por virtude dessa atitude. É que a um comentador eu posso exigir independência, num deputado isso seria até estranho. Pelo que é para mim mais do que óbvio que essas figuras - salvo alguns, muito raros, mais heterodoxos - vão ali debitar apenas a receita partidária, com maior ou menor desenvoltura retórica. E eu, para tempos de antena, já dei!

No tempo dos gambuzinos


Houve por aí um tempo em que a América, no imaginário português, foi muito marcada (para além dos filmes, claro) pela influência das "Seleções do Reader's Digest" (escrevo "Seleções" sem "c" porque, à época, a única versão em português era brasileira).
Os EUA que as Seleções (era assim que dizíamos) nos traziam era um mundo feito de clichés otimistas, muito bem construído ideologicamente, com dois ou três artigos por número de pendor subliminar ou abertamente anticomunista, a que se somavam textos interessantes, que carreavam uma realidade sedutora, bem distante do cinzentismo do Portugal de então. (Já sei: e o "Meu tipo inesquecível, "Piadas de caserna", "Flagrantes da vida real", "Rir é o melhor remédio" e outras secções clássicas).
Hoje, ao encontrar na net esta imagem, recuperei por um instante "essa minha América", presente na publicidade inserida na revista, o retrato imagético perfeito do "American way of life".

sexta-feira, julho 07, 2017

Política externa

Há pouco, ao olhar as presenças na reunião do G20, lembrei-me de um episódio do género daqueles que a diplomacia guarda no chamado "segredo das chancelarias": o dia em que Portugal, país cuja dimensão económica o exclui naturalmente de uma presença nas reuniões do G20, foi aproximado por um certo Estado, que à partida estava com dificuldades para ser cooptado para a primeira reunião do grupo (em que merecia estar, diga-se). O objetivo era que "metessemos uma cunha" ao presidente Lula, figura então poderosa no cenário internacional, à luz da nossa particular relação com o Brasil, para ele ajudar a esse objetivo. Fizemo-lo discretamente, da forma e com a argumentação que entendemos mais adequada, Lula interveio, esse país acedeu ao grupo e, há momentos, lá vislumbrei o respetivo líder na reunião do G20. Chama-se a isto ter uma política externa global e ser respeitado internacionalmente pelos outros (por quem pede e por quem aceita o pedido). Poucos países com a nossa dimensão se podem orgulhar disto.

Exemplaridade cívica


Somos cidadãos de um país em que o quotidiano político-mediático, hoje “democratizado” pelas redes sociais, vive numa quase completa relativização dos valores, em permanente suspeição sobre tudo e sobre todos. Quase não há mérito que sobreviva ao innuendo recorrente, que, no fundo, mais não é do que uma forma pouco sofisticada de despeito e inveja. O destaque e o sucesso incomodam, estimulando as mais doentias teorias conspirativas.  Estranhamente, isso parece trazer, nos dias que correm, um conforto igualitário à sociedade. 

Há mesmo, na parapolítica das carreiras públicas frustradas, algumas autoproclamadas vestais éticas que fazem da má-língua impune o seu “fond de commerce”, tendo como “eleitorado” uma classe de ódios mesquinhos, que hoje pulula nas caixas de comentários. Dir-se-á que a caravana, não obstante, vai passando. Talvez, mas convenhamos que tudo isto diz bastante do estado de saúde cívica do nosso país.

Há dias, a Universidade Nova de Lisboa atribuiu a Artur Santos Silva o seu doutoramento “honoris causa”. Na altura, dei comigo a pensar que, apesar de tudo quanto atrás referi, há figuras cuja exemplaridade de percurso as mantém relativamente à margem da máquina medíocre do denegrimento. E, confesso, acho que Portugal deve ficar feliz por isso. 

Artur Santos Silva é, para mim, e desde há muito, a personalização discreta da ética na vida cívica portuguesa. Oriundo de uma família liberal do Porto, cedo foi educado no culto da liberdade. Passou brevemente pela política e, tendo decidido adotar a independência como modo de vida, prestigiou-se profissionalmente, vindo a ser o criador de uma instituição bancária de referência, tendo trabalhado ainda em gestão empresarial. Pelo caminho, não deixou de intervir na vida pública, a seu modo e de forma equilibrada, com permanente bom-senso, grangeando um raro respeito alargado. A cultura esteve sempre nos seus genes. Da Fundação de Serralves ao Porto Capital da Cultura (onde mostrou saber bater fragorosamente com a porta, quando isso se revelou imperativo), passando pela (sua) Universidade de Coimbra, Artur Santos Silva viria a titular com sucesso, na Fundação Calouste Gulbenkian, a presidência da mais importante instituição cultural do país,  numa conjuntura bastante complexa da respetiva existência. Pelo meio, ficou também a liderança da comissão para a comemoração do Centenário da República - uma vez mais, o culto da ética republicana que sempre foi a sua.

Artur Santos Silva pode, muito simplesmente, ser qualificado como um grande homem de bem. Lamento que o país, em alguns ciclos de atribuição de responsabilidades para a sua gestão coletiva, não tenha tido a sabedoria de o aproveitar nas mais altas funções de Estado. Portugal teria ganho bastante com isso.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...