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sexta-feira, abril 16, 2021

O meu candidato

Hesitei em escrever sobre a caricata situação protocolar que envolveu a presidente da Comissão Europeia e o presidente do Conselho Europeu, durante a visita conjunta que fizeram a Ancara. Mas vou fazê-lo, para aproveitar para uma declaração pessoal de interesses.

O incidente é conhecido. Em face da oferta pelo presidente turco de uma única cadeira para a representação da União Europeia que ambos ali titulavam, na reunião que iam ter, restando uns sofás e quiçá umas otomanas suplementares, assistiu-se a um espetáculo pouco dignificante: Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, sentou-se logo ao lado de Erdogan, na cadeira do convidado. Ursula Van Der Leyen, depois de emitir uma interjeição de surpresa, foi obrigada a ir para um sofá, numa posição claramente secundária.

Gostava de começar por uma clarificação: é completamente sem sentido, relevando de uma pura ignorância, a ideia de que, por uma questão de etiqueta e simpatia, Michel deveria ter cedido o lugar a Van Der Leyen, por se tratar de uma senhora. A questão não é essa, longe disso. Se Van Der Leyen se tivesse sentado na cadeira, obrigando Michel a ir para o sofá, o caso era precisamente igual.

A União Europeia, pelo Tratado de Lisboa, criou uma bicefalia no seu topo. Para além da pessoa que preside à Comissão Europeia, foi nessa altura decidido eleger uma personalidade para presidir às reuniões de chefes de Estado e de governo, os Conselhos Europeus, dando uma maior continuidade a essa função, assim evitando a rotação semestral. No fundo, era uma resposta à clássica queixa irónica, feita um dia por Henry Kissinger, que afirmava não saber qual era, afinal, o ”número de telefone” da Europa. Passou a ter dois.

As “vítimas” dessa decisão, tomada pelos “tratantes” do Tratado de Lisboa, foram precisamente os chefes de Estado e governo, que deixaram de presidir a quaisquer reuniões. Ao contrário de Cavaco Silva em 1992, de António Guterres em 2000 e de José Sócrates em 2007, nos dias de hoje António Costa não chefia nenhuma reunião dos seus colegas, durante a presidência portuguesa da União Europeia. É o belga (valão) Charles Michel que, tal como já acontecera com o também belga (mas flamengo) Van Rompoy e o polaco Donald Tusk, cada um por dois anos e meio, renováveis, exerce hoje essa função. 

Como antes referi, ao lado desse presidente do Conselho Europeu existe, como sempre existiu, um presidente da Comissão Europeia, neste caso uma mulher. A regra - repito, isto não tem a menor discussão - é que não existe qualquer hierarquia entre os dois. Por exemplo, quando à União Europeia foi atribuído o Prémio Nobel da Paz, o galardão foi entregue simultaneamente a Durão Barroso, então presidente da Comissão, e a Van Rompoy. A equidade protocolar dos dois é indiscutível. E espero que ninguém se lembre de falar do presidente do Parlamento Europeu, que não é chamado para este assunto.

O que se passou em Ancara representou, por parte de Charles Michel, não um deselegante gesto de descortesia perante uma senhora: foi um gesto político, profundamente errado, ao ter-se arrogado uma preeminência hierárquica sobre a presidente da Comissão Europeia. Alguém vir argumentar com erros de protocolo ou com o desprezo dos turcos pelas mulheres é uma perfeita idiotice. Michel, ao ver a cena montada, com apenas uma cadeira para a União Europeia, deveria, pura e simplesmente, ter-se recusado a ocupar essa mesma cadeira sem que ali fosse colocada outra, perfeitamente idêntica, para Van Der Leyen.

Se Charles Michel já vinha a ser considerado, há bastante tempo, o mais incompetente dos três presidentes permanentes que o Conselho Europeu teve até hoje, a cena de Ancara não lhe trouxe um grão mais de popularidade. Bem pelo contrário: ao titular este erro político afastou as possibilidades, que já eram residuais por razões de equilíbrios partidários, de poder vir a ser reconduzido.

Ora eu, depois de tudo o que atrás disse sobre a incompetência de Michel, gostaria imenso que Charles Michel continuasse no cargo: era ele o meu candidato preferido. Porquê? Não digo. Ou melhor, só digo que é por razões estritamente luso-portuguesas...

terça-feira, março 02, 2021

A dança das cadeiras


Foi ontem anunciada a condenação do antigo presidente francês, Nicolas Sarkozy, acusado de corrupção. A sentença prevê um ano de prisão efetiva. Haverá um recurso, mas Sarkozy ficará, por ora, retido em casa, com pulseira eletrónica. O antigo presidente tem ainda outros processos a correr contra si.

Há dias, quando lia um livro sobre o sucessor de Sarkozy, François Hollande, lembrei-me de ambos. De como projetavam imagens que não podiam ser mais contrastantes: Sarkozy tenso e agitado, Hollande calmo e sorridente.

Ainda com José Sócrates como primeiro-ministro, estive no Eliseu algumas vezes, em encontros com Sarkozy. Antes, havia ido lá, em diversas ocasiões, com António Guterres, para conversas e almoços com Jacques Chirac. E também acompanhei Pedro Passos Coelho a reuniões no Eliseu, neste caso com Sarkozy e Hollande.

A reunião de Passos Coelho com Sarkozy, pouco tempo após a posse do nosso primeiro-ministro, teve lugar no “salão verde”, que fica junto ao gabinete do presidente. 

No ”salão verde”, notei que as cadeiras douradas, à volta da mesa comprida, eram todas iguais, com uma exceção: a do presidente francês, mais cómoda, com braços. Achei aquilo um pouco bizarro: o chefe de Estado estava a receber um chefe de governo, seu homólogo no Conselho Europeu, e não concedia ao seu visitante um assento idêntico. Como se Sarkozy fosse ali um “primus inter pares”. Para meu gosto, era tudo demasiado Versailles, demasiado monárquico.

Passou, entretanto, um ano. Regressei ao Eliseu, acompanhando Passos Coelho. O presidente francês tinha mudado. Era François Hollande. A reunião era no “salão verde”. Olhei as cadeiras. A de Hollande, no mesmo lugar onde antes se sentava Sarkozy, era a tal, confortável, com braços. A que estava destinada a Passos Coelho era igual a todas as restantes. 

A França passara da direita à esquerda. Os presidentes eram o oposto um do outro. No entanto, a coreografia do protocolo, no Eliseu, continuava exatamente a mesma.

Como será com Emmanuel Macron? Posso apostar que está tudo igual.

segunda-feira, março 01, 2021

Memória da política

Acabo de saber que saiu um livro sobre as relações entre ministros e secretários de Estado, que assentará no estudo dos fatores de conflito entre essas duas categorias de membros de governo. Estou com alguma curiosidade em lê-lo, confesso.

O livro cobre um período posterior àquele em que eu próprio passei por dois sucessivos governos, exercendo, por mais de cinco anos, as funções de secretário de Estado dos Assuntos Europeus, quando Jaime Gama era ministro dos Negócios Estrangeiros.

A política também é feita de “petite histoire” e, por vezes, acabamos por ser envolvidos nela, queiramos ou não. Comigo isso também aconteceu. Ao longo daquele relativamente longo período de governo, em especial nos últimos anos, correu um persistente boato, com ecos na comunicação social, de que haveria divergências, e até conflitos, entre o ministro e eu. Em algumas ocasiões foi-me colocada a questão, não sabendo se alguém a suscitou alguma vez a Jaime Gama. Pude constatar, aliás, que algumas pessoas se compraziam em difundir o rumor, como se o quisessem consagrar como um facto.

Esta semana, passam precisamente 20 anos - caramba, já! - desde a data em que deixei funções políticas, na opção que então tomei de regressar à minha carreira profissional de base. A minha saída do governo havia sido programada com quase um ano de antecedência, entre mim e o ministro, com conhecimento do primeiro-ministro António Guterres, e teve lugar depois de eu ter deixado concluídas algumas tarefas que tinha a meu cargo, no âmbito europeu, que se considerou que era importante ficarem completas - a principal das quais era a conclusão da negociação do Tratado de Nice. 

Tudo correu sem o menor drama, sem a menor pressa, em total e completo entendimento. Por coincidência, a tragédia de Entre-os-Rios fez com que a minha saída acabasse por ser simultânea com a de Jorge Coelho, com quem, curiosamente, eu entrara no mesmo dia no governo.

Naqueles bem mais de cinco anos, posso hoje revelar, nunca tive, que me recorde, uma única discussão com Jaime Gama, nunca com ele tive a menor divergência de natureza política - pelos vistos, o mote do livro agora publicado. Em duas ou três ocasiões, mas apenas em questões práticas e nunca em qualquer tema de fundo, teremos abordado algum assunto por prismas diferentes, com toda a serenidade, tendo rapidamente chegado a uma conclusão comum, confortável para ambos. O que permitiu, aliás, e constato isso com muito agrado, que até hoje continuemos a ser bons amigos. 

O publicação do tal livro e a coincidência de passarem exatamente duas décadas desde o dia em que deixei a política ativa dão-me um belo ensejo de deixar isto aqui escrito e bem clarificado. Em definitivo, “for the record”, sem aguardar hipotéticas memórias encadernadas.

domingo, fevereiro 07, 2021

“Observare”


No programa desta semana, sob a coordenação de Filipe Caetano, Carlos Gaspar, Luis Tomé e eu analisamos a ratificação (e não a retificação, como, por lapso, surge no título do vídeo) pelos EUA da extensão, por cinco anos, de acordo nuclear com a Rússia, bem com a situação política após a ação dos militares no Myanmar.

No meu caso, referi a censura à internet na Índia e um apelo, num artigo de Merkel, Macron, Guterres e outros subscritores publicado na imprensa internacional, para um esforço multilateral assente na luta comum contra a pandemia.

Pode ver aqui.

sexta-feira, janeiro 22, 2021

O novo amigo americano


Os Estados Unidos da América são um país amigo de Portugal. A nossa relação é muito assimétrica: para Portugal, a ligação transatlântica é um eixo central da nossa postura externa - o único que sobreviveu ao 25 de abril. Para os Estados Unidos, Portugal tem uma escassa importância como aliado. Pelo meio, estão, claro, as Lajes, mas até aí as coisas são o que são: para Washington já não é um dossiê vital, para Lisboa é um tema com diversos impactos, em especial internos. Por isso, existe sempre a expetativa de que uma nova administração o venha a tratar de uma forma que leve em conta os interesses que temos por relevantes. As desilusões, neste domínio, costumam ser bastantes, vale a pena dizer.

Não estou no segredo dos deuses, mas posso crer que foi imensa a satisfação, nas Necessidades e em S. Bento, pela saída de cena de Trump. E, em Belém, não deve ter havido luto.

Para aquilo que é a aposta externa portuguesa, o multilateralismo é uma doutrina que Lisboa de há muito cultiva. Ora Trump tinha enterrado essa via. Por isso, e porque a reeleição de Guterres é algo que agora também renasce com grande plausibilidade, a chegada de Biden é mais do que bem vinda. Custa-me dizer isto com estas palavras, mas, para nós, é muito confortável ver um país amigo, com a importância dos Estados Unidos, chefiados por um homem decente.

A administração Biden, muito “graças” a Trump, criou grandes expetativas por todo o mundo. Muito provavelmente muito maiores do que aquelas que conseguirá concretizar. A América de Trump não é a mesma de Biden, mas é importante ter presente que muitos dos interesses americanos, que a este vai cumprir defender, são precisamente os mesmos s que, de uma outra forma, Trump prosseguia. Por isso, para além do imenso mundo de mudanças que uma nova e constrastante administração acarretará, há “adquiridos” consagrados nos último ciclo político que não serão deixados cair nos anos que aí vêm. E a área das relações externas é, muito provavelmente, aquela onde isso poderá ser mais sensível. Posso estar equivocado, mas o Médio Oriente é o terreno onde, provavelmente sob uma nova linguagem, a fórmula clássica de Lampedusa tem mais condições para ser aplicada.

A Europa sofreu um trauma profundo com Trump. A Alemanha, em especial, ficou muito marcada pelo descaso a que foi votada pelos EUA, nos últimos anos. Enquanto que, num país como a França, Macron pode ter tido ainda a ilusão fátua de que poderia ser singularizado como o interlocutor europeu - como único poder nuclear e com capacidade militar significativa, depois do Brexit -, na Alemanha, a atitude de Trump foi sentida como uma rutura com os EUA. Há a sensação de que, mesmo que Biden possa tentar recolar o que se partiu, nada será igual no futuro. A menos que um pós-Merkel nos possa trazer sinais diferentes. A pressão alemã para fechar, mesmo à pressa, o acordo económico europeu com a China, sabida a importância que ao assunto seria sempre dada pela futura administração Biden, parece revelar que a ferida é muito profunda. 

Quando se acorda de um pesadelo, há uma sensação imediata de bem estar. Depois, damo-nos conta de que, embora tudo podendo ser pior, como no pesadelo, afinal, no dia a dia, também temos de reduzir ou atenuar as nossas ambições, porque a vida é o que é e não aquilo para que os sonhos apontam. A América de Biden é, antes de tudo, a América. Mas, para já, os aliados dos EUA parece terem ganho um novo amigo americano. E isso, aconteça o que vier a acontecer, é uma excelente notícia!

sábado, janeiro 16, 2021

“Observare”


Nesta altura em que passam 30 anos desde a primeira Guerra do Golfo, na qual uma coligação de 35 países, liderada pelos Estados Unidos, munida de um mandato do Conselho de Segurança da ONU, reagiu militarmente à invasão do Kuwait pelo Iraque, o “Observare” convidou a professora Patrícia Galvão Teles para connosco analisar o estado do multilateralismo. E também abordaremos a diplomacia das vacinas. Por ali falarei também da tomada de posição coletiva dos chefes militares americanos e da recandidatura de António Guterres a secretário-geral da ONU.

Pode ver este programa na TVI 24, de sábado para domingo, depois do noticiário da meia-noite.

domingo, janeiro 03, 2021

O caso austríaco


Como prometido, deixo uma história da nossa presidência europeia de 2000.

Recordo-me do assunto ter sido abordado à margem do Conselho Europeu de Helsínquia, no termo de 1999. A hipótese dos conservadores austríacos poderem vir a fazer uma coligação com o partido de Jörg Haider, o FPÖ, com notórias marcas de extrema-direita e com inequívocas declarações filo-nazis por parte de alguns dos seus dirigentes, começava a ser falada.

Em janeiro de 2000, enquanto eu andava numa roda-viva, entre capitais europeias, para conseguir apoios para um alargamento da agenda da Conferência Intergovernamental, que iria rever o Tratado de Amesterdão, que nos permitisse obter do Parlamento Europeu o necessário “avis conforme” prévio ao arranque dos trabalhos, começou a gerar-se, entre os dirigentes políticos europeus, um profundo mal-estar em torno daquela opção austríaca. Franceses e belgas eram os mais vocais, muito por virtude dos seus próprios problemas internos, onde o exemplo da Áustria poderia “normalizar” a ascensão dos seus partidos de extrema-direita.

No dia 28 de janeiro, em Estocolmo, fui acordado com o anúncio da concretização da coligação. Apanhado no hall do hotel pelos jornalistas que me acompanhavam nesse périplo, fiz uma declaração cautelosa: “Estamos bastante preocupados, mas é muito importante olhar agora com cuidado o programa da nova coligação, a fim de verificar se infringe os compromissos austríacos subscritos no seu acesso à União”.

Viajei de Falcon, a caminho de Madrid, e quando pousámos na capital espanhola, ainda na pista, tinha uma chamada telefónica de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros.

Disse-me para, depois da reunião que eu iria ter com o meu homólogo espanhol, falar à imprensa, em nome da presidência portuguesa, tomando uma atitude bastante mais firme do que aquela que eu próprio assumira nessa manhã, que estava a ser lida, em certos meios europeus, como uma relativa contemporização da presidência portuguesa face ao anúncio austríaco.

“António Guterres quer que você assuma uma tomada de posição muito forte, de rejeição aberta da fórmula governamental austríaca”, disse Gama. Tinha de ser eu a fazê-lo, porque fora eu quem tinha sido “soft”, ainda nessa manhã. A verdade é que eu tinha dito o que disse apenas porque desconhecia até onde Lisboa estava disposta a ir. Em cerca de cinco anos e meio de governo, deve ter sido essa a única ocasião em que me foi pedido, por Guterres e Gama, para ter uma posição mais à esquerda...

Mal eu tinha acabado a conversa telefónica com Gama, o embaixador português em Madrid aproximou-se. Trazia um recado do meu colega espanhol, Ramón de Miguel, com quem eu iria reunir dentro em pouco: informava-me que, numa sala do Palácio de Santa Cruz, as Necessidades espanholas, me aguardava a nossa colega austríaca, a até ali secretária de Estado Benita Ferrero-Waldner, que tinha vindo secretamente a Madrid. Benita fora já anunciada como nova ministra dos Negócios Estrangeiros do novo governo de coligação. Assim, e ainda antes de encontrar o meu homólogo espanhol, eu teria de ter essa conversa.

Conhecia muito bem Benita Ferrero-Waldner. Tinha-a tido como hóspede oficial em Lisboa, tinha estado em Viena a seu convite, havíamos criado uma relação muito agradável, ao longo dos últimos anos. Recebeu-me com um imenso sorriso, começando por dizer que a minha declaração, nessa manhã, em Estocolmo, em nome da presidência portuguesa, fora muito bem acolhida pelo novo primeiro-ministro, Wolfgang Schüssel. Mal ela sabia que eu tinha acabado de receber instruções para endurecer esse discurso!

Nos minutos que se seguiram, Benita deve ter percebido que alguma coisa tinha entretanto mudado. Elenquei, com ar já mais pesado, as dificuldades crescentes que estavam a surgir, um pouco por toda a Europa e a necessidade que Lisboa estava a ter de federar uma posição “a catorze”, que seguramente não iria ser muito agradável para Viena. Imagino que, na conversa, possa ter prometido fazer o meu melhor, mas a minha margem de manobra era muito apertada.

A minha colega mostrou-se desolada: tinha colocado toda a esperança na minha declaração e, agora, via-me a afastar-me dela. Lembro os seus olhos cheios de lágrimas, quando me dizia: “Francisco. Tu conheces-me a mim e ao Wolfgang, sabes que não somos fascistas!”

Saí dali para a reunião com Ramón de Miguel, que me parecia ter dito a Benita coisas um pouco mais simpáticas do que as que eu acabara de lhe dizer. Seguiu-se uma conferência de imprensa, na qual, na sequência das instruções recebidas, endureci fortemente o discurso. Os três jornalistas que comigo viajavam, e que desconheciam (e continuariam a desconhecer, até ao final da viagem) o meu encontro secreto com a recém-indigitada ministra austríaca, mostravam-se siderados com o meu novo tom.

Nos dias seguintes, o nosso governo, em Lisboa, viveu sob pressão forte de alguns dos seus pares. Chirac telefonou várias vezes a Guterres, Védrine a Jaime Gama e eu procurava fugir às pressões constantes do meu contraparte, Pierre Moscovici. Outros governos europeus subiram de tom contra Viena.

Guterres e o seu gabinete coordenaram habilmente a posição dos “catorze”, que culminou numa declaração conjunta. Escassos dias depois, coube-me defender, num debate muito intenso no Parlamento Europeu, dessa vez em Bruxelas, essa posição condenatória da Áustria. Jean-Marie Le Pen tomou-me, na ocasião, como alvo da sua violenta intervenção, tendo a minha resposta sido apoiada, entre outros, pelo centrista francês, François Bayrou, que se colocou abertamente a meu lado no debate. Um dia, em Paris, tive ocasião de agradecer pessoalmente a Bayrou esse apoio.

Guardei para sempre, nessa sessão, a pusilânime posição do presidente da Comissão, Romano Prodi, a querer estar “de bem com deus e com o diabo”. E não esqueci a solidariedade do comissário britânico Niel Kinnock, que atravessou o hemiciclo para me dar um abraço, dizendo que queria que eu soubesse que não se revia na atitude do presidente Prodi. Foi um dia difícil, que acabou numa animada entrevista, com Jeremy Paxton, no “Newsnight” da BBC TV.

Nos meses seguintes, a preocupação de Portugal, enquanto presidência europeia, foi tentar evitar que a nossa agenda de trabalhos pudesse ficar refém do problema austríaco. Tínhamos de garantir à Áustria o exercício pleno dos seus direitos como Estado membro, mas igualmente nos competia, em nome dos restantes “catorze”, objetivar uma forte e constante pressão política perante Viena.

Recordo o primeiro Conselho “Assuntos Gerais” em que Benita Ferrero-Waldner participou, em Bruxelas. Entrou na sala e, praticamente, com duas ou três exceções, ninguém a cumprimentou. E todos a conheciam bem do passado. Ostensivamente, levantei-me do meu lugar de representante de Portugal (Jaime Gama estava a presidir à sessão) e saudei-a. Gama fá-lo-ia, quando Benita passou por ele. Anos depois, num jantar privado, quando vivia em Viena, Benita, que veio a ser comissária europeia e muito nos ajudou a lançar a parceria estratégica com o Brasil, lembrou quanto esse nosso gesto a tinha sensibilizado.

Várias reuniões informais da nossa presidência viriam a ser perturbadas pelo ambiente hostil contra a Áustria. Acho que nos comportámos então com grande equilíbrio, como “honest brokers” que nos competia ser. Recordo ter ido a Bruxelas com António Guterres, para um encontro discreto com o primeiro-ministro Schüssel, na procura de soluções para acomodação do impasse. E ainda tenho na memória chamadas telefónicas recebidas de ministros portugueses, que viam colegas seus sairem da mesa, em reuniões informais que organizavam em Portugal, quando entrava o delegado austríaco, a perguntarem-me: “Olha lá! O que é que achas que eu faça?”. Foi muito instrutivo, pelo menos como experiência.

Depois, os franceses sucederam-nos e foi o que se viu: com o relatório de um “grupo de sábios”, meteram o assunto debaixo do tapete. É muito fácil delegar a coragem nos outros.

Hoje, visto à distância, o caso austríaco é uma brincadeira de crianças, ao lado de Estados membros que, com escandalosas cumplicidades, quanto mais não seja pelo silêncio, infringem, aberta e impunemente, as regras europeias que se comprometeram a cumprir.

terça-feira, dezembro 22, 2020

Notas de um intruso


O dia ia já longo. Eu madrugara, ainda em Corfu, onde estava, há uma semana, como convidado de Georgios Papandreou, à época ministro dos Negócios Estrangeiros grego, num seminário de reflexão sobre temas internacionais.

Nessa manhã, Georgios tinha-me dado “boleia”, num jato oficial grego, que nos levou daquela ilha até Mostar, na Bósnia-Herzegovina. Relembro, durante a viagem, a paisagem lindíssima, límpida, sobre a costa grega e albanesa, que dificultava a concentração na conversa. De Mostar, onde eu teimei em regressar anos depois, num helicóptero militar alemão, fomos conduzidos a Serajevo, onde ia ter lugar a sessão de lançamento do Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu. Pousámos no que me pareceu ser um estádio de futebol, ao lado do que ia servir para centro de conferências. Era o dia 30 de julho de 1999.

Essa sessão reunia “o poder do mundo”, para utilizar uma expressão que, na minha infância, ouvia, usada como significado coletivo de quem realmente conta nas decisões. A capital da Bósnia-Herzegovina, cenário de uma imensa tragédia armada no passado, era talvez, nesse dia, a cidade mais bem guardada do globo.

A reunião era organizada e dirigida pelo chefe de Estado finlandês Martti Ahtisaari, que tinha a presidência da União Europeia, e o trauma da situação balcânica tivera o condão de para ela convocar as grandes vedetas da política mundial. 40 países estavam ali presentes, ao mais alto nível.

Juntei-me a António Guterres, que viajara de Lisboa acompanhado pelo secretário de Estado da Defesa, José Penedos. O nosso encarregado de negócios em Serajevo, Luís Barreira de Sousa, por artes que nunca entendi bem, com o argumento de que tínhamos a presidência europeia seguinte, havia conseguido colocar Guterres na mesa principal, junto de Ahtisaari. Com o assento destinado a Portugal dessa forma vazio, cabia-me ocupá-lo, dada a preeminência hierárquica que o secretário de Estado dos Assuntos Europeus tinha sobre o da Defesa.

Sentei-me na mesa, com Jacques Chirac, figura imensa, à minha esquerda, e José Maria Aznar, de fato claro, à minha direita.

Cumprimentei ambos. Tinha falado muitas vezes com Aznar, que me conhecia bem. Embora tivesse estado já em diversas ocasiões e reuniões com Chirac, ele não fazia a mais vaga ideia de quem eu era.

Ainda a sessão se não iniciara e já o meu colega espanhol, Ramón de Miguel, surgira, de trás, a perguntar-me, ao ouvido, a razão pela qual Guterres obtivera o lugar de destaque de que usufruia no topo da mesa. Porque a solidez das razões desse “upgrading” protocolar, que lhe adiantei, não emergiam como muito convincentes, vi Aznar, logo informado, ficar um pouco mais crispado do que de costume, perdendo aquele esgar, que nele faz o lugar de sorriso, no perfil de “señorito” que os espanhóis patentearam para sempre no mundo.

Por uma qualquer razão não evidente, a sessão teimava em não começar. Notei que Chirac ficava cada vez mais nervoso. Olhava para a presidência e fazia uns ruídos de óbvio desagrado. Não dava a confiança de me perguntar nada, mas olhava, de quando em vez, de viés, para mim. “Quem será este tipo?”, devia pensar. A certo passo, sempre visivelmente irritado, talvez não tendo nada melhor para fazer, perguntou-me: “Vous êtes qui?” Declinei a minha função e a ele, sem a menor reação facial, saiu-lhe um: “Ah! Oui! Je vois!”. E continuou agitado, mexendo-se na cadeira. A certo ponto, exasperado, exclamou, num comentário geral, já um pouco alto: “Qu’est ce qu’on attend pour commencer?” E fazia gestos para o distante Ahtisaari.

Olhando com mais atenção à volta da mesa, eu tinha reparado que a delegação americana era das poucas que se mantinha de pé. O lugar dos EUA não estava preenchido. Clinton não aparecia.

Chirac não dera conta desse pormenor. Apenas achava estranho que a reunião não arrancasse. Com aqueles gestos largos que eram os seus, o homem da Corrèze, continuava, com umas onimatopeias à mistura, a “berrar baixinho”, para que se desse início à sessão. E repetia: “Mais qu’est ce qui se passe?”.

Divertido, por antecipação, com a reação que sabia que ia provocar nele, lancei, com um sorriso irónico: “Apparamment, on attend le président des États-Unis”.

O que eu fui dizer! (Eu sabia!). Chirac olhou para mim, furibundo, como se fosse eu o culpado, e exclamou: “Qui?! Ah! Non! Mais c’est pas possible!” E levantou os braços para Ahtisaari, esse mesmo já desesperado com o atraso do amigo americano.

Chirac só sossegou quando Ahtisaari se decidiu, finalmente, arrancar com a sessão. Disse umas primeiras palavras, mas logo suspendeu o discurso, olhando ao longe na sala. Fez-se um silêncio. Todos os rostos convergiram para o lugar onde ele se concentrara. Aliás, não era preciso: os flashes dos fotógrafos faziam uma bateria de luzes no meio das quais, com um sorriso beatífico, surgiu, num andar lento e bamboleante, que fazia lembrar o de Richard Gere, a figura de Bill Clinton.

O presidente americano não dava mostras de estar apressado, embora estivesse farto de saber que estava atrasado. Deu-se mesmo ao luxo, antes de se sentar, de ir cumprimentar duas ou três delegações. Ahtisaari, rotundo e nórdico, sem a menor expressão, esperava, atento e venerador, com o seu discurso suspenso (voltaria atrás).

Figurante apanhado no meio de um palco de ocasião, eu divertia-me imenso em ser testemunha privilegiada da cena. Em especial, mirava o meu vizinho da esquerda, que agora bufava, com nervosismo, um imenso mal-estar, por todo aquele rapto de protagonismo que Clinton conseguira fazer à cena. E ouvia-o rosnar, a “sotto voce”: “Alors! Ça commence ou pas?”.

Finalmente, tudo começou. Os intermináveis discursos.

Ao final do dia, regressámos a Lisboa, num C130 da nossa Força Aérea, numa viagem incómoda, com direito a uma sanduíche. Era tudo muito diferente do salmão com caviar que, nessa manhã, o hiper-inflacionado orçamento militar grego nos tinha proporcionado, a bordo do cómodo Gulfstream.

Passaram mais de duas décadas. Para a História, vale a pena dizê-lo, o Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu não deixou uma marca por aí além. Tenho alguma pena. Porquê? Ora essa! Porque um mero acaso fez com que eu tivesse estado, como singular intruso, na primeira linha do seu lançamento.

quarta-feira, dezembro 16, 2020

A presidência e o governo


Não, não é sobre a relação entre os poderes que ocupam Belém e S. Bento que venho aqui falar. Teremos muito tempo para isso, no futuro. Hoje, gostava de refletir um pouco sobre o desafio que Portugal enfrenta, nos seis meses que aí vêm, na presidência da União Europeia.

Como tem sido referido, esta é a quarta presidência das instituições comunitárias, embora todas tenham decorrido em condições políticas nacionais diversas.

Em algum imaginário, estará ainda fixada a imagem da festa de 1992, em torno do então recente Centro Cultural de Belém, com Cavaco Silva a navegar no mar de fundos desse novo “brasil” em que a Europa se tinha convertido. O ciclo declinante da sua década de poder estava ainda por surgir.

Oito anos mais tarde, em 2000, depois da Expo e de um tempo de grande otimismo, António Guterres fez um brilharete que lhe conferiu fortes créditos internacionais. No termo do exercício, porém, já não conseguia disfarçar as dificuldades de continuar a governar sem maioria, num quotidiano de compromissos mais ou menos “limianos”.

Em 2007, José Sócrates, embalado por uma rara maioria absoluta socialista, conseguiu colocar o nome de Lisboa num tratado que (na minha modesta opinião) não merecia a inglória desse nome. Entusiasmado por essa tarefa, que concluiu com todo o rigor que a Portugal era exigido, não terá visto chegar os ventos da crise financeira, a qual acabaria por fazer entrar o país numa nova espiral de dívida, que ainda aí ronda.

António Costa avança para esta presidência em piores condições políticas internas do que qualquer dos seus antecessores. Governando com alianças erráticas, com um orçamento aprovado à custa de remendos, numa sociedade política muito crispada, onde a direita disfarça, no combate à esquerda, o facto de estar feita em frangalhos, o primeiro-ministro vive um desgastante quotidiano de mini-crises.

Na Europa, se um eventual caos do Brexit lhe não cair em cima, vai ter dar a cara pelo plano de vacinação, terreno hoje minado por um ambiente de esperança misturada com incerteza. Com a crise económica nas ruas, com a “bazuca” a ter ainda de esperar e as falências a dispararem, António Costa tem escasso espaço para mostrar “obra” europeia. Em especial, não pode esperar que quaisquer louros nesse domínio consigam compensar o malsão ambiente que afeta o seu governo. Sou daqueles que, com grande sinceridade, acham que tudo isto é bastante injusto para o mais bem preparado político da sua geração. Mas a vida raramente é justa.

domingo, dezembro 13, 2020

Retratos





Há dias, uma pessoa amiga notou: “Não vejo, na tua sala, fotografias com alguns “grandes”, autografadas por eles, como é normal nas casas dos diplomatas. Mas tens, não tens?”

Claro que tenho, com gosto, do “tutti quanti” que contou na minha vida profissional e política, algumas até com dedicatórias bem simpáticas, outras apenas com uma formal assinatura. E dos atos formais de apresentação de credenciais. Porém, abandonada que foi a vida oficial, a memória fotográfica desses tempos está hoje recolhida em áreas menos visiveis da casa ou, na maioria dos casos, anda por gavetas e caixas, lá por Vila Real.

Não rejeito, longe disso!, a importância desses retratos, e dos tempos que eles marcaram, mas, no que me toca, acrescentam hoje muito pouco à minha maneira de estar na vida. Embora perceba, e respeite muito, que outros - a maioria dos meus colegas de profissão, por exemplo - tenham uma perspetiva diferente das coisas. Cada um é como é, não é?

Há muitos anos, em Serajevo, no final de uma reunião do Pacto de Estabilidade para o Sudeste Europeu, onde acompanhava António Guterres, este falou por uns minutos, comigo ao lado, com Bill Clinton, a quem me apresentou. Da delegação que vinha com o nosso primeiro-ministro vi uns gestos, simpáticos, da parte de alguém, para eu me pôr em posição para tirar uma fotografia com a “vedeta” americana. Não me mexi. 

Gostava de ter tirado uma fotografia com Clinton? Não sei, talvez, mas nada fiz por isso e, claro, não foi por timidez, que é coisa que nunca senti na vida pública. Ao ver hoje esse tipo de instantâneos perdidos por gavetas ou a encher buracos em estantes remotas entendo melhor aquela minha reação.

quarta-feira, novembro 25, 2020

Uma presidência diferente


No imaginário português, as presidências europeias - e já houve três, desde a nossa entrada para as instituições comunitárias - ficaram ligadas à ideia de um corrupio de políticos estrangeiros a visitarem o país, de governantes lusos a presidirem a reuniões em Bruxelas, de declarações sonantes, em vozes portuguesas, em nome dos parceiros.

Em 1992, depois de, sabiamente, Portugal ter dispensado assumir uma presidência logo após a adesão, a nossa estreia nessas lides teve foros de grande evento nacional, com o novo Centro Cultural de Belém como "catedral" dessa liturgia, feita de euroentusiasmo, de fundos e de muita novidade. Cavaco Silva ainda aproveitou bem esse ensejo, com um trabalho europeu rigoroso e competente, num tempo que, contudo, acabaria por ser o início do declínio do seu fulgor político.

Quando António Guterres assumiu idênticas funções, em 2000, quatro anos depois de ter entrado em S. Bento, os favores da opinião pública interna também já se esvaíam. O interessante esforço português, nos caminhos europeus, acabou por ser muito mais apreciado lá fora, pelos seus pares, do que o foi no plano interno, onde o vento começava a mudar para o líder socialista.

Em 2007, na última das nossas presidências, José Sócrates vivia ainda sob um tempo de otimismo. Essa prestação foi bem gerida e projetada na Europa, com os sinais da crise financeira mundial, que estava já ao virar da esquina, ainda pouco claros. Se há marco dessa presidência, esse foi o Tratado de Lisboa.

E é o Tratado de Lisboa que agora tudo muda, que faz do exercício que António Costa vai gerir, por seis meses, a partir de 1 de janeiro de 2021, uma coisa bem diferente daquilo que coube aos seus antecessores.

O primeiro-ministro já não chefiará os Conselhos Europeus, porque o Tratado de Lisboa criou a figura de um presidente permanente desse órgão. Os ministros dos Negócios Estrangeiros, que o mesmo Tratado já tinha afastado de terem assento físico nesse órgão, onde haviam estado desde a sua criação, em 1974, já não se reúnem e agem sob a coordenação de quem assume a presidência rotativa: há um Alto Representante da UE para essa tarefa. Pelo mundo, as embaixadas dos países da presidência cedem a sua função ao representante do Serviço Europeu de Ação Externa. E muito mais.

Não é este o lugar para discutir as vantagens e os inconvenientes do Tratado que ficou a ser chamado de Lisboa. Uma coisa é óbvia, embora não tenha a certeza de que o país disso já se tenha dado conta: agora, não vai ser a mesma coisa.

quarta-feira, novembro 11, 2020

Declaração para o Fórum Demos

 "Só o tempo nos dará bem a noção do tempo, e dos estragos feitos nesse tempo, que estes quatro anos de Donald Trump fizeram perder ao mundo. No que toca à Europa, de cuja unidade no pós-2ª Guerra Mundial os Estados Unidos foram o grande promotor, a América de Trump revelou-se um aliado hostil, agravando o relacionamento com os parceiros e favorecendo mesmo alguns fatores desagregadores, como o Brexit. A meu ver, a grande distância, contudo, a mais gravosa atitude de Trump foi a sua oposição ao Acordo de Paris, um passo vital para a sobrevivência da humanidade, que o presidente americano tornou refém de interesses económicos de curto prazo. A reversão dessa insensatez foi já anunciada por Joe Biden. Esperam-se também da nova administração, ainda na área multilateral, gestos concretos para recuperar o caos que os EUA induziram na funcionalidade da Organização Mundial de Comércio, bem como na revitalização e credibilização da Organização Mundial de Saúde. E um regresso à Unesco. No plano bilateral, veremos se a sintonia que os democratas têm com os republicamos na questão da China se expressa ou não num discurso diferente. O possível regresso dos EUA ao acordo gizado pela administração Obama, com aliados europeus, para conter as ambições nucleares do Irão é outra das questões a observar. Do mesmo modo, como se comportará a nova América quanto a outros “avanços” entretanto ocorridos no cenário do Médio Oriente. A embaixada dos EUA volta a Tel-Aviv? E as relações com a Rússia? Depois das “cumplicidades” de Trump com Putin, que fará Biden? E a Coreia do Norte? E a Venezuela? E Cuba? E Guantanamo? A prometida “Cimeira das Democracias” pode fazer perigar a inclusividade da ordem internacional, tutelada pelas Nações Unidas, introduzindo uma nova clivagem à escala global? Até ver, António Guterres tem razões para dormir descansado - e razões para crer que o poderá continuar a fazer em Nova Iorque no próximo quinquénio."

domingo, outubro 04, 2020

Há 25 anos

Tinha regressado da embaixada em Londres, um ano antes. No Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde era subdiretor-geral, coordenava, entre outras coisas, as questões institucionais da União Europeia, a caminho da revisão do Tratado de Maastricht. Esse era então um dos dossiês mais delicados da nossa ação europeia.

Um dia, creio que de maio ou junho, desse ano de 1995, o meu colega João Lima Pimentel, que eu sabia muito próximo do líder socialista, António Guterres, disse-me que este gostaria de ter uma conversa comigo. Eu não o conhecia.

Não tinha, aliás, qualquer proximidade com o Partido Socialista. Nem sequer tivera curiosidade de assistir aos Estados Gerais, um exercício de abertura que acolhera muitos independentes, preparando o partido para as eleições legislativas de outubro desse ano, onde tudo indicava que poderia vir a obter um bom resultado. 

Era patente, pelo país, um cansaço da solução política que consagrara uma década de governação de Cavaco Silva. E a imagem de António Guterres surgia cada vez mais prestigiada e eleitoralmente apelativa, sugerindo-se como alternativa possível para a chefia do governo.

Numa tarde de sábado, encontrámo-nos em casa de José Lamego, figura de relevo do PS para a área externa, pessoa que eu também não conhecia. Na conversa, constatei que, tal como o João Lima Pimentel, Guterres tinha, sobre a Europa, uma ideia federalizante que se afastava substancialmente da minha. 

Começou por me dizer algo que me agradou bastante: “A mim não me interessam nada papéis do MNE, quero apenas saber as suas ideias”. Não creio ter-lhe dito logo tudo o que pensava sobre o “sonho federal” europeu que ele acalentava. À época, eu achava aquelas ideias muito perigosas...

Semanas depois, o João pediu que ajudasse a colocar, por escrito, algumas propostas sobre as relações internacionais de Portugal, para serem tidas em conta no programa eleitoral socialista. Lembro-me de, com dois amigos, ter preparado, durante um longo fim de semana de trabalho, um texto bastante completo, cobrindo toda área externa. Foi, aliás, muito fácil de construir: a política externa e europeia não era, como em geral continua a não ser, uma área politicamente muito divisiva. E também recordo o desagrado com que, logo que foi publicado o programa, vim a constatar que não havia por ali uma linha sequer daquilo que nos tinha levado essas horas de trabalho. Tomei nota, mas não pensei mais no assunto.

No dia 1 de outubro de 1995, votei no PS, claro. Era a opção de que me sentia mais próximo.

Os socialistas ganharam as eleições, embora apenas com maioria relativa. Recordo-me que essa foi uma noite em que me senti particularmente feliz. Quase tanto como na noite mais bela da minha vivência democrática: a vitória de Soares sobre Freitas do Amaral, cerca de uma década antes. Em ambas, senti um imenso alívio. 

Ao final dessa noite, três casais fomos a Sintra dar um abraço a Ernesto Melo Antunes. Sentíamos que tínhamos de partilhar com aquele amigo essa hora de boa disposição. E de esperança.

Entretanto, a vida continuava, lá pelo MNE. Entre as eleições e a posse do governo mediaram 27 dias. Havia uma compreensível curiosidade sobre quem seria o ministro. Ajudei a preparar os dossiês para serem entregues ao futuro governo. 

Com o passar dos dias, começaram a chegar-me rumores de que o meu nome estaria a ser considerado para os Assuntos Europeus. Mas também corriam outros nomes, bem mais “pesados” do que o meu.

Comecei por não levar esses boatos muito a sério: eu não era militante do PS, tinha ideias um pouco “recuadas” na questão europeia, além de algumas outras, menos relevantes, divergências doutrinárias. Contudo, o conhecimento que tinha dos temas europeus não me conduzia à “modéstia’ de pensar não ser capaz de exercer essas funções. Achei que podia mesmo achar graça ao desafio. Mas deixei-me ficar no meu lugar, sem “mexer uma palha”, sem falar com ninguém. O que fosse, soaria!

Uma noite, quando jantava num restaurante na Pontinha, com a minha mulher e uma amiga, o João Pimentel avisou-me, pelo telefone: “O ministro vai ser o Jaime Gama. Amanhã, vais ser convidado para o governo!”. 

Falei, ainda nessa noite, com três grandes amigos, nenhum deles ligado ao PS, dois deles conservadores, perguntando o que achavam da ideia: todos foram unânimes em dizer-me que devia aceitar. A minha mulher, contudo, era muito refratária à ideia. Cada um desses amigos teve de falar com ela, convencendo-a a deixar-me aceitar o lugar, se acaso viesse a confirmar-se o convite. Se a não tivessem feito mudar de ideias, eu não teria entrado para o governo, claro.

No dia seguinte, ao fim da tarde, Jaime Gama telefonou a convidar-me. Aceitei. 

Logo se seguida, pedi para ver o secretário de Estado cessante, Vitor Martins, que tinha sido meu chefe até esse momento e com quem tinha uma muito boa relação. Recebeu-me no seu gabinete, surpreendido pelo inesperado da minha visita tardia. Disse-lhe que não queria que soubesse da minha nomeação pela imprensa. Recordo-me que foi com prazer que o ouvi dizer: “Fico muito satisfeito por ser você a substituir-me”. Viríamos a fazer uma transição exemplar. 

Por ali fiquei cinco anos e meio, tendo pedido para sair em 2001, em momento acordado meses antes e sem o menor drama, e apenas porque queria regressar à minha carreira profissional. Em perspetiva, acho que foi uma bela aventura política, embora talvez um pouco longa demais. Mas nunca me arrependi da opção que tomei nesse mês de outubro de 1995.

segunda-feira, julho 20, 2020

Dois amigos


Conheço Carlos Costa há bastantes anos. Recordo-me da primeira conversa que tivémos, em Bruxelas, a meu pedido, em casa de João de Vallera, no final de 1995, tinha eu acabado deve entrar para o governo. Ele era então chefe de gabinete do comissário europeu Deus Pinheiro e eu pretendia algum “insight” sobre os equilíbros dentro da Comissão. Ao contrário de alguns outros portugueses que operavam nas instituições comunitárias, que se deliciavam a afirmar a sua “neutralidade” perante os interesses do país de onde eram originários (não me obriguem nunca a usar a memória sobre isto, por favor!), Carlos Costa foi sempre de uma grande lealdade face a Portugal. Acho que já posso revelar que, durante a delicada negociação da Agenda 2000 (o quadro financeiro plurianual entre 2000 e 2007, cuja negociação foi concluída em 1999), o tivémos em “alta voz”, numa chamada telefónica de Bruxelas, com Guterres como interlocutor, num conselho de ministros. Não tenho competência técnica para me pronunciar sobre o seu papel como governador do Banco de Portugal, mas não me custa admitir que possa ter cometido, com a sua equipa, alguns erros na forma e no tempo das suas funções de regulação. Mas tenho a certeza absoluta de ser um homem que sempre agiu, bem ou mal, tendo o interesse do país como referente da sua ação. Envio-lhe um abraço de amizade, neste momento.

Mário Centeno é um conhecimento mais recente. Fizemos dupla num debate, na Universidade Nova de Lisboa, creio que em 2013, sobre o processo de ajustamento da Troika. Nunca antes o tinha visto, embora tivesse lido coisas que publicou. Disseram-me então que era um quadro superior do Banco de Portugal e lembro-me que me impressionou pela simplicidade culta e profunda com que desenvolvia os seus argumentos. Voltámos a cruzar-nos em bastantes outras vezes, a partir de então. Mário Centeno demonstrou, nos anos seguintes, toda a sua capacidade técnica, mas também política, quando soube desenhar, com maestria, a planificação orçamental que permitiu compatibilizar o cumprimento estrito das obrigações europeias a que o Estado português estava comprometido com as medidas de política que permitiram ao PS garantir um apoio parlamentar, ao longo de toda a legislatura. Não foi só o país que apreciou o trabalho de Centeno: os seus colegas do Eurogrupo deram-lhe a presidência desse órgão, o que representou, simultaneamente, um raro reconhecimento e uma forte prova de confiança. A sua ida para o Banco de Portugal não é um prémio: é algo que deveria ser uma coisa óbvia para o país. Por mim, quero enviar-lhe uma saudação de amizade, com votos de muitas felicidades.

Só a medíocre chicana política em que está mergulhado o debate público em Portugal pode justificar a polémica que se criou a propósito da ida de Centeno para o Banco de Portugal. A inveja, o despeito e o horror ao sucesso alheio, que fazem parte da matriz comportamental de muita gente que por aí vegeta, no tempo que vivemos, procuraram criar obstáculos a que o antigo ministro das Finanças viesse a ter o destino a que melhor estava destinado. Ainda bem que António Costa não hesitou nunca nessa decisão. E que o presidente da República o apoiou. 

Ao que se sabe, Carlos Costa e Mário Centeno não são, entre si, os melhores amigos do mundo - e isto é um “understatement”... A mim, dá-me prazer tê-los a ambos como amigos.

domingo, março 29, 2020

Tulipas, moinhos e cifrões


Como os últimos dias têm deixado evidente, os Países Baixos, em matéria de dinheiros, não brincam em serviço e, manifestamente, corre-lhes nas veias um sangue de cifrões. Sei o que é discutir questões financeiras com os colegas holandeses, aliás gente sempre muito bem preparada, altamente qualificada e que sabe como levar a água ao seu moinho - água e moinhos, como é sabido, não faltam na Holanda...

Algures no primeiro semestre de 1996, durante a presidência italiana da União Europeia, os quatro responsáveis governamentais pelos Assuntos Europeus que, simultaneamente, eram os negociadores-chefes dos seus países no trabalho de negociação do Tratado de Amesterdão, foram convidados pelo ministro francês Michel Barnier (um bom amigo, o principal negociador do Brexit e hoje infetado por coronavírus) para um jantar no esplendoroso Palazzo Farnese, onde está instalada a embaixada francesa em Roma. Era na véspera de uma reunião da Conferência intergovernamental para a discussão do novo tratado.

(Uma curiosidade: a França paga à Itália o equivalente a um franco antigo pelo aluguer do palácio romano Farnese e, em compensação, o Estado italiano "despende" o equivalente a uma lira, pela utilização, como embaixada em Paris, do deslumbrante Hôtel de la Rochefoucauld-Doudeauville, com a mais bela escadaria de mármore que alguma vez vi. Já ouvi franceses a dizerem que foi um "mau negócio", porque a lira se desvalorizou muito face ao franco...)

Além do anfitrião, o ministro francês para os Assuntos europeus, estiveram no jantar os secretários de Estado dos Assuntos europeus da Suécia e dos Países Baixos, respetivamente Gunnar Lund e Michiel Patijn, e eu próprio. Curiosamente, todos havíamos estado presentes nas reuniões do "grupo de reflexão" que, durante 1995, fez sugestões para a revisão do Tratado de Maastricht, o que havia criado entre nós uma forte relação pessoal. Lund viria, anos mais tarde, a coincidir comigo em Paris, sendo aí um dos meus melhores amigos no corpo diplomático.

O jantar, além de algum "small talk", era essencialmente de trabalho, pelo que cada um suscitou as prioridades do seu país para a discussão que então se iniciava. Para o que aqui nos interessa, gostava de dizer que, entre vários outros pontos, eu insisti bastante na necessidade de uma Carta da Cidadania Europeia, a ser apensa ao tratado, a fim de destacar o valor acrescentado que, para cada cidadão, a pertença à União representava, a somar à sua própria cidadania nacional. O meu colega holandês foi aquele que me pareceu, desde o início, o menos entusiasmado com a ideia.

Acabado o jantar, eu e ele regressámos ao hotel onde, casualmente, ambos nos alojávamos, perto da Piazza Navone - o Raphael, coberto de exótica vegetação. Era uma bela noite romana e, na esplanada, tomámos uma cerveja. Porque queria, no dia seguinte, lançar a ideia na reunião formal, e pretendia evitar que ele fosse dos opositores mais vocais, voltei a tentar convencê-lo, na conversa a dois, da bondade da minha ideia sobre a Carta de Cidadania. (“For the record”, a Carta não seria aprovada nessa altura, mas, anos mais tarde, foi possível consagrar uma Carta dos Direitos Fundamentais, o que acabou por ser um salto em frente face à limitada ambição da minha anterior proposta).

Michiel Patijn era um homem muito sorridente, com uma cordialidade que encontrei em muitos outros holandeses. E existia entre nós uma forte empatia pessoal. Mas também era sempre muito frontal - uma caraterística diplomática que tem a vantagem da clareza e a desvantagem da inflexibilidade. Não lhe interessava a “minha” Carta. Ponto. Sintetizou-me então, numa frase curta, as "prioridades" do seu país para o novo tratado: "Francisco, tens de compreender: para nós, a Europa significa dinheiro!" Não podia ser mais esclarecedor. (Mais tarde, durante as longas negociações da Agenda 2000, tidas entre 1997 e 1999, fixando o quadro financeiro plurianual da União para os sete anos seguintes, tive bastas provas dessa “fixação” holandesa)

Michiel Patijn tinha um irmão, Schelto, que foi presidente da municipalidade de Amesterdão. Foi ele quem um dia convidou António Guterres a visitar a importante Sinagoga portuguesa de Amesterdão, um edifício que simboliza o refúgio naquelas terras dos muito judeus fugidos às perseguições de que foram alvo em Portugal, em especial no século XVI. Nessa visita, em que acompanhei o então primeiro-ministro português, referi-lhe a amizade que tinha com o seu irmão: “Somos o oposto nas ideias políticas: ele é de direita, eu sou socialista. Mas damo-nos muito bem!” Imagino que não divergissem quanto ao dinheiro, algo que une os holandeses, talvez mais do que qualquer outra coisa.

Os Países Baixos são hoje dos maiores “ganhadores” do processo integrador. Com a unidade europeia, ganharam a paz, um lugar geopolítico privilegiado no continente, uma ancoragem à Aliança Atlântica que lhes trouxe sempre vantagens (com o Reino Unido e Portugal, os Países Baixos foram, durante muitos anos, dos mais fiéis defensores da relação transatlântica), as suas empresas têm sabido aproveitar como poucas o mercado interno europeu e as oportunidades abertas pela globalização, o porto do Roterdão é o principal canal de acesso comercial da União e, “last but not least”, têm um regime de imposto muito atrativo para empresas estrangeiras a quem os acionistas reclamam o máximo de “otimização fiscal”, somado a um leque de acordos, ímpar na Europa, para a eliminação da dupla tributação, o que o torna no “paraíso” para fixar empresas que queiram investir em países terceiros. Ah! E vão ser, com a Alemanha, dos principais beneficiários do Brexit! 

sexta-feira, fevereiro 21, 2020

Joaquim Pina Moura


Morreu-me um amigo. Morreu Joaquim Pina Moura. Tinha 67 anos e estava doente, há muito tempo.

Conheci-o em 1995, quando ambos trabalhámos com António Guterres. Criámos, de imediato, uma magnífica relação pessoal, sempre divertida, recheada de humor e de crescente cumplicidade. Posso dizer que foi das pessoas com quem acabei por ter uma maior empatia, dentro dos dois governos a que pertencemos. Com uma inteligência fulgurante, rápida e arguta, apanhava o essencial num instante, sabendo transformar logo uma ideia numa proposta realista e com sentido. Ia “a todas”, sabia de tudo. Era um “mouro” de trabalho, uma figura em quem Guterres tinha uma extrema e justificada confiança, nele delegando imensas tarefas. Lembro-me das suas chamadas telefónicas pela noite dentro, ainda como secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, quando alguns problemas europeus “apertavam”, sempre, mas sempre!, atuando com uma insuperável delicadeza para comigo.

Os obituários das próximas horas recolherão, com toda a certeza, o seu histórico afastamento do PCP, de que se tornou num dos mais famosos críticos, após aí ter sido uma “estrela”, em forte ascensão. Nesse percurso, a partir de certa altura, foi-se aproximando de António Guterres, tendo estado no centro da operação “Estados Gerais”, que catapultou o PS para o governo, entronizando Guterres como primeiro-ministro. Durante todo esse tempo, colaborou fortemente com o PS, mesmo sem ser ainda militante do partido. Atribui-se a Jaime Gama, com quem Pina Moura tinha uma excelente relação e uma visível admiração mútua, uma graça que ficou memorável nas hostes socialistas. Reza a “lenda” que, um dia, numa conversa nesse ano de 1995, com Pina Moura presente, Gama terá dito a Guterres que era importante ele entrar para o PS. E descreveu a forma como isso aconteceria: “Um dia, o Joaquim Pina Moura decide aderir ao PS. Vai ao largo do Rato, toca à campaínha e quem é que, do lado de dentro, lhe abre a porta? O Joaquim Pina Moura!”

Lembro-me agora do jantar que ele organizou, com o João Lima Pimentel, assessor diplomático do primeiro-ministro, e para o qual me convidou, no “Vela Latina”, para explorar a ideia, congeminada por ambos, da candidatura de António Guterres à presidência da Comissão Europeia. Pouco dado a ousadias, achei a iniciativa “louca” e sem pés para andar, mas, meses depois, verifiquei que era ele, e o João Lima Pimentel, quem afinal tinha razão - e eu não. O apoio a Guterres, por parte de vários líderes europeus, começou a ser esmagador e a discreta campanha de imprensa e de contactos que o Joaquim e o João tinham engendrado - o chamado “Plano Alfa “, como então foi ironicamente crismado, de que há mesmo um registo “gráfico” - foi de vento em popa. Guterres só não foi presidente da Comissão Europeia porque não quis. Foi ele próprio quem pôs fim à ideia, por razões que um dia serão devidamente explicadas, numa reunião a quatro, na Áustria, numa noite de 1999, com o Joaquim, o João e eu. Lembro-me de mim e do Joaquim Pina Moura, já então ministro da Economia, depois do jantar, a “digerir” a nossa frustração, passeando pelo Graben, na noite fria de Viena.

Tenho muitas recordações do Joaquim Pina Moura. Todas boas. A nossa última e longa conversa acabou por ser em Paris, há já quase uma década, num jantar muito simpático e, como sempre acontecia quando nos juntávamos, bem divertido. Depois do meu regresso a Portugal, a sua progressiva doença forçou o nosso afastamento, com grande pena minha. 

Deixo um grande abraço de pesar a toda a família, em especial à Herculana, uma “mulher-coragem”, de uma lealdade inquebrantável, em especial no sofrimento que para todos foram os últimos anos.

sábado, janeiro 04, 2020

Júlio Castro Caldas


Morreu Júlio Castro Caldas, leio nas notícias. 

Já o não via há muito tempo e, em especial, havia notado a sua falta ao almoço em que, há uns tempos, juntei em minha casa aquilo a que chamo o “grupo dos nove e meia“ - essa tertúlia “do bem”, para refletir sobre país, que, sob o estímulo de Miguel Lobo Antunes, reuniu por vários anos, às nove e meia da manhã (não conheço outras tertúlias matutinas), na Culturgest, tendo publicado alguns textos coletivos, ainda consultáveis aqui. O Júlio foi um dos últimos membros a aderir ao grupo, mas a sua participação, num estilo que lhe era muito próprio, era sempre muito informada e animada. Na fotografia dos membros dessa tertúlia, Júlio Castro Caldas é o único que se vê de casaco.

Um dia, numa conferência de imprensa no fim de um Conselho Europeu, nos anos 90, um jornalista perguntou a António Guterres se já tinha nomes para uma remodelação do governo de que toda a gente falava. Guterres disse que nomes não faltavam, se quisesse fazer uma mudança e exibiu um pequeno retângulo de papel com coisas rabiscadas. Eu estava ao seu lado e, quando ele pousou o papel sobre a mesa, saltou-me à vista a sigla JCC. Quando nos íamos a levantar, ousei perguntar-lhe: “Está a pensar no Júlio Castro Caldas?”. Notei que Guterres ficou um tanto surpreendido, e talvez desagradado, com a minha “espionagem” e pouco adiantou. Eu tomei nota da sigla.

A remodelação acabou por ter lugar e Castro Caldas não entrou no governo. Passaram uns meses e, um dia, vi Júlio Castro Caldas assumir o ministério da Defesa, pelo que concluí afinal tinha razão. Foi já com o novo ministro que, tempos mais tarde, me desloquei, em substituição de Jaime Gama, a uma reunião ministerial da União da Europa Ocidental (UEO), creio que em Bruxelas, tendo estabelecido com ele uma excelente relação. Lembro-me, meses depois, de ter estado com o Júlio, a convite de António Guterres, num almoço restrito com Mikhail Gorbachev, em S. Bento. Depois de sair do governo, fui para o estrangeiro, perdemo-nos de vista e só nos voltaríamos a reencontrar nessa tertúlia da Culturgest.

Júlio Castro Caldas era uma figura muito cordial, que rapidamente tratava as pessoas por tu, como comigo sucedeu, desde o primeiro momento. Além de ser um advogado de primeira linha, era um homem que gostava da vida e dos amigos. Tinha sempre histórias magníficas, sabia de factos que ninguém mais sabia, era intenso e definitivo na apreciação das coisas do mundo e da vida. Vida e mundo de que agora se despediu.

sábado, dezembro 07, 2019

Mário Soares


Faria hoje 95 anos. Todos os amigos que partem nos fazem falta. Mas há quem também faça imensa falta ao país, como é o caso de Mário Soares. 


Deixo esta foto, do dia 28 de outubro de 1995, quando me deu posse como membro do primeiro governo de António Guterres.

quarta-feira, outubro 23, 2019

Sair da cepa torta


Há dias, José Sócrates criticou, num artigo publicado no Brasil, o facto de António Costa não ter renovado a Geringonça, através de um acordo escrito com o Bloco de Esquerda. É irónico ver o antigo primeiro-ministro pronunciar-se desta forma, se tivermos em conta que, do seu tempo, nenhum gesto de aproximação com a “esquerda da esquerda” ficou nos anais da nossa política caseira. Bem pelo contrário, como se lembrará a “tia” de Francisco Louçã...

Dentre os primeiros-ministros socialistas da nossa democracia, nem Mário Soares, nem António Guterres, nem José Sócrates consideraram existirem condições para derrubar o muro que separava os utentes habituais do “arco da governação” dos setores mais à esquerda. E, provavelmente, com razão.

Soares governou na Guerra Fria e trazia consigo o trauma dos embates de 1975, o que não obstou a que fosse o “povo de esquerda” a colocá-lo depois em Belém. Guterres fez um governo de centro-esquerda, única forma de potenciar o declínio do cavaquismo. Sócrates, curiosamente, partiu de uma postura que chegou a seduzir setores conservadores, para depois se enquistar num processo de autismo político que, no plano retórico, procurou, na sua fase final, colocar-se num registo de esquerda-direita. Nenhum dos três, contudo, fez qualquer gesto à sua esquerda, quiçá também pela consciência de que isso não teria a menor retribuição.

Há que creditar a António Costa a coragem desse gesto, tanto mais que ele teve lugar num tempo de particular debilidade do país na ordem financeira externa, quando Portugal estava sob severa vigilância dos seus credores, que se tinham sentido confortados por um governo que tão bem mimetizava internamente o seu receituário político. Mas tem de partilhar esse mérito: uma imensa “gratidão” é devida ao espetro que constituía a hipótese de um regresso de Passos Coelho, o mais poderoso fator que levou os comunistas a caminharem no sentido de um conjuntural “compromisso histórico”.

Escrevi “conjuntural” com plena convicção. O PCP cedo mostrou que o “negócio” de 2015, se bem que agradável às suas bases, teve um custo institucional forte e não era para repetir. Para António Costa, fazer agora um acordo isolado com o Bloco seria um gesto vão. O peso dos bloquistas, à parte alguns fogachos sectoriais, esgota-se na bancada de S. Bento. Costa sabe bem quem pode estar ao seu lado e contra si no verdadeiro desafio do novo governo: potenciar o crescimento e controlar as corporações. Sem isso, não sairemos da cepa torta.

terça-feira, outubro 22, 2019

Vida nova


É saudável sentir que a classe política se renova. Ao olhar os nomes dos integrantes deste governo, e se as minhas contas não falham, creio que, das dezenas de figuras que o compõem, há já muito escassos membros dos anteriores executivos socialistas.

Apenas António Costa esteve presente, primeiro como secretário de Estado e depois como ministro dos Assuntos Parlamentares, no XIII governo constitucional, o primeiro chefiado por António Guterres, que tomou posse em outubro de 1995. 

Além dele, Augusto Santos Silva, Eduardo Cabrita, Nelson Sousa e José Apolinário integraram o segundo governo de Guterres, o XIV governo constitucional, que iniciou funções em outubro de 1999. Só Santos Silva veio a exercer então funções de ministro, tendo antes sido secretário de Estado, como os restantes.

Dentre os outros membros do próximo governo, apenas Teresa Ribeiro e João Gomes Cravinho integraram, respetivamente, os XVII e XVIII governos constitucionais, presididos por José Sócrates, ambos como secretários de Estado.

Botão errado

Foi ontem à tarde, na Fundação José Saramago. A homenagem ao Nuno Júdice era no 4° andar. Distraidamente, carreguei no botão do 3° andar. Ia...