“E tens um carro para ti”. Esta frase, que me chegou a Oslo, em cuja embaixada de Portugal eu trabalhava, numa carta, pela mala diplomática, algures no início de 1982, alegrou-me um pouco o espírito. Era escrita por um colega da embaixada em Luanda, para onde eu acabara de ser transferido. Explicava que se tratava de um Volkswagen deixado pela “tropa” portuguesa, que eu ia ter direito de utilizar, quando chegasse ao novo posto.
Por esses dias, eu não andava muito animado, “to say the least”, pela minha colocação em Luanda.
Três anos antes, sem ser candidato a nada e nem sequer ter sido consultado previamente, como era de regra, o ministério tinha-me enviado para Oslo, para o meu primeiro posto diplomático no estrangeiro. Ao que parecia, tinha sido essa a solução que, no Conselho do Ministério (hoje, Conselho Diplomático), órgão que determina as colocações e promoções, o meu diretor-geral, Alexandre Lencastre da Veiga, havia conseguido descortinar para evitar que eu fosse colocado em Bagdad, para onde o secretário-geral de então, Caldeira Coelho, me queria enviar. No seu entendimento, o meu perfil funcional merecia outro destino. Mas o chefe da carreira, que me “tinha no radar”, ao que deduzi por razões políticas, para utilizar uma expressão um dia ouvida a quem dele esteve próximo, teria mesmo ironizado, em conversa com o diretor-geral, com a proposta que tinha acabado de fazer para eu ir para a cidade de Saddam Hussein: “Ele parece gostar desse tipo de regimes!”
Três anos depois, era Luanda que me surgia no horizonte. Um outro diretor-geral, com o pelouro do pessoal a seu cargo, tinha-me telefonado para Oslo, inquirindo sobre se eu tinha “alguma objeção em ser colocado em Luanda”. Segundo me disse, o meu nome era um dentre quatro que o Conselho estava a considerar.
Quando ele me referiu os restantes três nomes, percebi logo que seria eu o designado: um deles tinha feito o serviço militar por lá, outro tinha crianças pequenas, outro alegava, há anos, uma doença do foro psicológico, o que já lhe tinha permitido escapar a outros postos difíceis. Com o destino marcado, pedi que fosse dito, da minha parte, ao Conselho: “Informo que não tenho interesse em ir para Luanda mas, se me mandarem, vou”. Não sei se ele o disse. E, é claro, fui. Pela pressa com que me enviaram, quase sem me deixarem completar três anos no posto nórdico, quase posso dizer que fui “para Angola, rapidamente e em força”.
A capital angolana era, então, um posto de categoria D, a mais baixa, isto é, aquilo a que os ango-saxónicos chamam um “hardship post”. Em plena guerra civil, com recolher obrigatório, quase sem lojas, com uma extrema dificuldade para se adquirirem bens alimentares, Luanda era então uma cidade muito difícil para se viver. Oslo já tinha sido um posto de categoria C, o que significava que eu começava a minha carreira a andar “pelo fundo da tabela”. Mas o que tem de ser tem muita força.
Se tivesse dinheiro ou alternativa, teria saído então da profissão, que parecia estar a tornar-se madrasta para mim, prenunciando um percurso futuro nada promissor. Mas, como vivia apenas do meu trabalho, a necessitar do salário ao fim do mês, com a minha mulher a prescindir da carreira dela para poder acompanhar-me, tive de aceitar.
Ia para Luanda, aliás, arruinado financeiramente, porque a Noruega tinha sido caríssima e, mesmo com uma vida relativamente modesta, não conseguira aí poupar um tostão, ou melhor, uma coroa. Saí mesmo como uma dívida a um banco norueguês, com o meu embaixador por fiador, que paguei já só em Angola. São estes, para que constem, os salários “dourados” da diplomacia, de que às vezes a inveja fala através da imprensa.
Eu ia levar um VW Golf para Luanda, mas demoraria meses a chegar, por barco, com a minha bagagem. Ter ali um carro, desde o primeiro dia, particularmente indo morar na Avenida Marginal e tendo de ir trabalhar na parte alta da cidade, era essencial.
Mal eu sabia, contudo, que, quando chegasse a Luanda, o apartamento que me era destinado se tinha “eclipsado”, tomado pelas autoridades locais, com estranhas cumplicidades lusitanas à mistura. Iria ser então obrigado a viver, por quatro meses, num hotel próximo do limite do aceitável, para depois ter de ir ocupar, no edifício da embaixada, um minúsculo apartamento, com torneiras na parede... mas sem canos por detrás.
Mas lá me foi apresentado o carro que me era destinado. Era um carocha preto, com um motor terrível, bancos que tinham sido de napa em tempos áureos, com um buraco do chão, por onde entravam as baratas. Sem chave nas portas, claro. As latas do carro abanavam por todo o lado, conferindo ao diplomata condutor um estatuto de duvidoso prestígio.
Era o “Zero Três”. Porquê esse nome? Porque a matrícula era MX-42-03. E eu era o nº 3 da embaixada. O carro do ministro-conselheiro, o segundo da hierarquia, era um Mercedes a cair da tripeça, com a matrícula a acabar (claro!) em 02, e o do meu colega que se seguia na linha da casa, era outro Carocha, o 04. Tudo óbvio.
Antes da chegada do meu Golf, meses depois de mim, e também ainda antes da ida da minha mulher para Luanda, o 03 iria dar-me imenso jeito, para me transportar pelas ruas de cidade e para ir para a praia, “off-season”. É que eu teimava sempre, para horror dos meus amigos angolanos, em frequentar as praias da ilha de Luanda no tempo do “cacimbo”, gozando, nos fins de semana, de uma magnífica solidão para ler e ouvir música. Para quem vinha da Noruega, o “cacimbo” ali era puro verão...
Por que é que me lembrei disto agora? Porque, há pouco, num número da revista brasileira “Piauí”, que acabo de receber como assinante que sou, relembrei que Jair Bolsonaro designa os filhos, por ordem decrescente de idades, como 02, 03 e 04.
Ao ver esta referência, senti alguma nostalgia daqueles tempos complicados de Luanda. Terra onde, afinal, acabei por ser feliz, porque a felicidade, tal como o Natal para os homens, é onde nós quisermos - e, vá lá!, onde pudermos e soubermos ser.