quinta-feira, agosto 08, 2019

O senhor comandante


Aquelas longas noites do Hotel Trópico, em Luanda, nos primeiros meses de 1982, eram uma verdadeira "seca". Eu sofria o choque cultural de uma mudança direta, do meu anterior posto, na organizada Noruega. para a então caótica Angola. Por quatro longos e não saudosos meses, por ali me instalei.

Pelas salas do Trópico, fui conhecendo alguns portugueses, parte deles expatriados por razões económicas, às vezes apenas por semanas ou meses, e que atenuavam a sua solidão na conversa, a ouvir música ou em jogos de cartas.

Um dos bons amigos que fiz nesse ambiente, e que só há pouco tempo voltei a reencontrar, foi o Hélder Martins, funcionário da empresa de transportes STAR. Numa dessas noites, o Hélder convenceu-me a alinhar numa mesa de sueca que se criara entre alguns clientes. 

Sou, em regra, avesso a entrar em competições de qualquer natureza e, em matéria de jogos de cartas, o mais “longe” que chego é à sueca, à bisca, às copas ou à lerpa. Mas porque a única atividade lúdica alternativa que por ali havia - o visionamento, numa minúscula televisão a preto-e-branco, de alguns jogos do campeonato do mundo de futebol, que então estava a ter lugar em Espanha - se tinha entretanto esgotado, deixe-me entrar na jogataina. 

No grupo, havia um homem jovial, falador, bem mais velho do que nós, de S. João da Madeira, que representava em Angola uma empresa de calçado. A meio do jogo, ao pedir uma rodada de bebidas, vi que, apontando para mim, disse para o empregado: "Ali para o senhor comandante, é uma cerveja". De facto, eu tinha dito, instantes antes, que “o que agora caía bem era uma "Cuca”!” Estranhei ser qualificado de "senhor comandante", mas nada disse. Olhei para o Hélder Martins, que sabia perfeitamente que eu trabalhava na Embaixada, mas não notei na sua cara nenhuma surpresa. Optei por não reagir e, quando ela chegou, lá bebi a cerveja.

No dia seguinte, ao almoço, perguntei ao Hélder: "Você não achou estranho que aquele tipo, ontem, me tivesse tratado por 'senhor comandante'?". O Hélder retorquiu-me que não. É que, sabendo que eu tinha feito o serviço militar, por conversas anteriores, presumiu que, nessa qualidade, eu tivesse servido na Marinha, pelo que havia deduzido que o homem de S. João da Madeira sabia disso. Expliquei-lhe que a minha "arma" era bem mais prosaica, que eu havia sido oficial de "administração militar" no Exército, onde a minha especialidade era "ação psicológica", que nunca havia sido sequer "comandante de pelotão". E rimo-nos, esquecendo o assunto.

Passou, talvez, um mês. Eu havia, entretanto, deixado de frequentar as salas de estar do Trópico com tanta frequência. Uma noite, voltei a ver por lá o homem de S. João da Madeira, que simpaticamente me saudou, ao longe. 

Um dia ou dois depois, o Hélder Martins foi abordado por ele. Queria que ele me "metesse uma cunha": não tendo confiança comigo para me colocar, pessoalmente, o pedido, aproveitava a intercessão do Hélder, para, junto de mim, conseguir um "OK" para o voo da TAP para Lisboa, no dia seguinte. O avião estava cheio e "aquele seu amigo é que pode ajudar, como ninguém, a desenrascar-me o lugar", disse ele.

O Hélder surpreendeu-se. "Mas porquê ele?", perguntou. "Então, sendo ele comandante da TAP, deve poder conseguir isso, não?". "Comandante da TAP? Ele é diplomata na Embaixada de Portugal!", reagiu o Hélder. "Ai é?! É que, há tempos, vi-o à conversa com uma hospedeira da TAP, no bar do hotel, e fiquei com a ideia que ele fazia parte da tripulação, que sempre ali se aloja...".

("For the record", que fique claro que tenho a certeza de que a minha conversa com a hospedeira foi casual e bem inocente, não me recordando de ter assumido nenhuma particular familiaridade com a "colega"...)

Quando viajo na TAP e ouço, pelo altifalante do avião, aquela "rassurante" mensagem com que os comandantes se dignam saudar os passageiros, a meio do voo, acontece-me frequentemente lembrar-me que também "fui", um dia, "comandante" daquela companhia...

quarta-feira, agosto 07, 2019

Às tantas, lá p’rá noite, o dia ainda se compõe!


Está aí, está cá!


A Assembleia do 11 de março


A RTP passou, nos últimos dois dias, outros tantos programas sobre a Assembleia do MFA (Movimento das Forças Armadas) que ocorreu na noite de 11 para 12 de março de 1975. Há uns meses, aquando da passagem dos 44 anos daquela data, já havia sido difundida uma versão mais sintética. 

Para uma certa História, esta reunião ficou conhecida como a “assembleia selvagem”, em especial por ter sido convocada em moldes que não obedeceram às regras tradicionais daquele “parlamento” militar da Revolução e por nela terem participado pessoas que não haviam integrado as anteriores Assembleias.

Fiz parte dos militares que participaram nessa reunião, tendo mesmo tomado nela a palavra. Curiosamente, constato que terei sido, com grande probabilidade, dos poucos oficiais milicianos a intervir nas dez Assembleias do MFA que foram realizadas, tendo estado presente em três delas. 

Ao princípio da noite de 11 de março de 1975, integrei um grupo de oficiais que irrompeu pelo Palácio de Belém, obrigando a uma interrupção da uma reunião do “Conselho dos Vinte” (somatório da Comissão Coordenadora do MFA com os membros em funções da Junta de Salvação Nacional, os ministros militares, os chefes dos EM dos ramos e o comandante do COPCON). Esse grupo “exigiu” ao presidente da República, general Costa Gomes, que se deslocasse ao (atual) Instituto de Defesa Nacional para aí presidir a uma Assembleia extraordinária do MFA.

Esta Assembleia teve lugar ao final de um dia muito complexo. Na madrugada de 10 para 11 de março, o general António de Spínola - que havia renunciado à presidência da República, na sequência do “28 de setembro” de 1974 -, à frente de um grupo de oficiais, ocupou, com cumplicidades internas, as duas unidades militares existentes em Tancos, mandou bombardear o Regimento de Artilharia Ligeira nº 1 (RAL 1), em Lisboa, do que resultou um morto e vários feridos, ordenando a ocupação (que viria a ser frustrada) dessa mesma unidade por paraquedistas. 

Spínola viria a desistir do golpe ao final de algumas horas, por não ter conseguido congregar a prevista adesão de outras unidades. Uma das justificações para a ação “spinolista”, para além da reversão do curso político da Revolução, foi a existência de uma lista de 500 personalidades a abater - a “matança da Páscoa” -, ação que iria ser levada a cabo por grupos revolucionários de extrema-esquerda. É hoje claro que a “lista”, que aliás nunca ninguém viu, foi uma completa invenção de quantos queriam convencer Spínola a liderar o golpe de Estado. Ele e alguns dos seus sequazes fugiriam depois para Espanha, sendo detidos alguns dos outros revoltosos. 

Alguns setores mais radicais do MFA, com os quais, à época, eu me sentia basicamente solidário, entenderam não dever desaproveitar o ensejo para “acelerar” a Revolução. A realização de uma Assembleia extraordinária do MFA foi o instrumento encontrado. Dela saiu a institucionalização do Conselho da Revolução (no dia seguinte, acabei por também participar também numa reunião de setores do Exército em que se discutiram os nomes do ramo para esse Conselho) e um apoio de princípio às nacionalizações e à Reforma Agrária que, dias depois, seriam decretadas.

Há meses, descobriu-se a gravação dessa Assembleia do MFA e foi decidido publicar em livro as intervenções das cerca de sete horas e meia de debate. A convite do “proprietário” da gravação, comandante Almada Contreiras, do presidente da Associação 25 de abril, coronel Vasco Lourenço, e do professor universitário e jornalista da RTP, Jacinto Godinho (que realizou os programas agora editados), fiz a apresentação do livro, em duas ocasiões públicas.

A transcrição completa da reunião, permite acabar, definitivamente, com alguns mitos.

Desde logo, fica desfeita a ideia do alegado caráter tumultuoso da reunião: esta passa-se em perfeita ordem, com elevado sentido de disciplina hierárquica, embora com alguma (natural) emoção à mistura. Alías, com escassas exceções, os intervenientes nessa noite foram exclusivamente os membros das Assembleias regulares do MFA.

Depois, fica claro que a propalada questão do “fuzilamentos”, pedidos então por algumas vozes para os conspiradores envolvidos no golpe, foi um ponto que mereceu uma esmagadora rejeição da Assembleia. Em especial, a gravação mostra que o coronel Varela Gomes, contrariamente a uma versão que sobreviveu décadas, nada teve a ver com essa insana ideia.

Finalmente, fica claro que as vozes (que também as houve) que pretenderam então aproveitar para adiar as primeiras eleições livres (previstas para o dia 25 de abril seguinte) foram muito escassas e também logo suplantadas pela vontade coletiva da reunião. Creio que surpreenderá alguns verificar que o almirante Rosa Coutinho, neste como em outros momentos mais tensos da reunião, foi das figuras que impôs serenidade e assumiu posturas mais moderadas.

A Assembleia do 11 de março, analisada agora com distância e serenidade, mostra ter sido o último momento de algum aparente consenso (mas já sob inescapável tensão) entre a chamada “Esquerda Militar” (linha que tinha muitos pontos de contacto com o PCP e que tem por expoente o general Vasco Gonçalves) e o grupo mais moderado, “teorizado” por Melo Antunes, que irá publicar, meses mais tarde, o chamado “Documento dos Nove”. A tentativa de golpe de Spínola força, nesse dia, uma aliança tática conjuntural entre as duas tendências, embora reforçando mais, no imediato, a primeira, a qual, a partir de então, procurará radicalizar o processo, sendo a constituição do V Governo Provisório, em agosto de 1975, o ponto máximo desse processo vanguardista, a que o “25 de novembro” virá pôr termo. 

Foi há 44 anos, mas, às vezes, parece que foi ontem.

O preço da democracia


Numa noite de 1990, em Versalhes, num jantar com os pares do mundo ocidental, em que se faziam os arranjos finais da Guerra Fria, Margaret Thatcher terá tomado consciência de que, quando regressasse a Londres, deixaria de ser primeira-ministra do Reino Unido.

Contestada desde há meses no Partido Conservador, ao qual outrora proporcionara uma liderança de indiscutível êxito, fora entretanto perdendo contacto com a realidade, deixando, a partir de certo momento, de ser parte de uma solução do futuro para se transformar num problema imediato para os seus correligionários, que assistiam a uma crescente credibilização da alternativa trabalhista.

No Partido Conservador, ao tempo, competia exclusivamente aos deputados escolherem o nome do primeiro-ministro. (Nos trabalhistas, o processo era diferente, dada a preeminência dos sindicatos). Nem as estruturas locais do partido, nem muito menos os militantes, tinham a menor palavra a dizer sobre o assunto. Para além da seleção dos candidatos a deputados e a organização local das respetivas campanhas, apenas essas grandes "missas" ideológicas, não decisórias, que eram os seus congressos anuais constituíam, à época, a manifestação visível do papel do partido a nível nacional, projetando as diferentes "constituencies".

A escolha da liderança fazia-se essencialmente em Londres. Noutros tempos, as votações chegavam mesmo a ser dispensáveis, numa cultura política em que os nomes "emergiam" num conciliábulo entre os poderes fáticos, ouvidos discretamente os meios económicos e outras instituições relevantes do "establishment", numa decisão apurada em discussões fechadas, sob o fumo e o álcool inspirador dos "gentlemen"s clubs".

Com o tempo, as coisas evoluíram. O processo mudou por mais de uma vez, até chegar ao modelo atual, que submete aos militantes conservadores uma "short list" para escolha final do nome que passará a dirigir o partido e, estando este em maioria no Parlamento, que será o primeiro-ministro.

Foi assim que Boris Johnson acabou por ser escolhido. Num exercício especulativo, podemos perguntar-nos se, na aplicação do modelo antigo, o seu nome teria resultado da tradicional seleção elitista. Tudo parece indicar que não. Ironicamente, poderíamos ser levados a concluir que é precisamente pelo facto de haver hoje mais democracia no seio dos conservadores que ocorrem resultados como este. Mas, vá lá! Não tirem conclusões erradas...

terça-feira, agosto 06, 2019

2021


É óbvio que o PSD de Rui Rio e o CDS de Assunção Cristas vão apanhar uma forte “abada” em outubro. Poderão mesmo atingir traumáticos mínimos históricos. 

Apenas então se ficará a saber se o PS terá quatro anos de maioria absoluta ou se precisará de um qualquer modelo de Geringonça para sobreviver como governo minoritário. Em definitivo, não acredito António Costa leve para o governo qualquer dos parceiros à sua esquerda.

Rui Rio vai inevitavelmente cair e o PSD “passista” vai voltar, quase de certeza com Luís Montenegro, que se diz estar já a tentar federar os descontentamentos criados pelo processo da construção das listas - que terá corrido pior do que expectável.

Montenegro (que não estará na AR) terá em S. Bento um grupo parlamentar inexperiente, (inicialmente) adverso e politicamente frágil. Um cenário ainda pior do que aquele que Rio enfrentou desde que foi eleito.

Porque o resto da direita (Ventura, Santana e os liberais da paróquia) não passará de isso mesmo, de restos, sem a menor expressão que não seja mediática, tudo indica que passará a haver um setor significativo do eleitorado que se verá sem uma representação institucional significativa. 

Contrariamente ao que certa esquerda pode pensar, isto não é uma boa notícia para a saúde, a prazo, do sistema politico - mas não se pode pedir à esquerda que resolva os problemas dos seus adversários. 

Era a isto que Marcelo Rebelo de Sousa se referia quando falava da crise que, para a direita, aí virá, depois de outubro. A grande questão é saber se, depois da sua reeleição, o presidente se sentirá tentado a intervir no seio da família política de que é originário. Mas essa é uma questão para 2021.

A terra como meta


Não tenho uma perceção concreta da relação afetiva que o país tem, nos dias de hoje, com o seu ciclismo. Fico com a sensação de que a maioria dos portugueses apenas acorda para a modalidade quando, nas televisões, surge a estival Volta a Portugal (este ano patrocinada por um banco espanhol, não visitando nem o Alentejo nem o Algarve!), que já não há grandes ídolos, mas apenas uma meia dúzia de nomes mais conhecidos, renovados de tempos em tempos, só muito poucos com presença internacional medianamente significativa. Mas o facto de nunca mais se ter repetido um fenómeno como Joaquim Agostinho não deve deixar de ser um fator desmotivador.

Sempre achei, aliás, irónico que, por alguns anos, o mais popular ciclista português de uma nova geração, Cândido Barbosa, nunca tivesse obtido uma vitória na Volta a Portugal. Não deixava, apesar disso, de ser um campeão da simpatia, tal como em França sucedeu com Raymond Poulidor. É o charme que os “losers” sempre têm...

A desaparição, por alguns anos, dos clubes de futebol mais conhecidos no papel de promotores da modalidade, simultânea com a entrada de empresas e marcas estrangeiras no nome das equipas, terá retirado muita da rivalidade que alimentou o velho ciclismo. Não sei, contudo, se isso foi uma coisa boa ou má.

Valha a verdade, porém, que um dos grandes duelos históricos do nosso ciclismo ocorreu entre Alves Barbosa e Ribeiro da Silva, apoiados então, respetivamente, pelos modestos Sangalhos e Académico do Porto. Mas as camisolas do Benfica, Porto e Sporting (aqui por ordem puramente alfabética, claro...) foram a chave de décadas de entusiasmo nacional pelo ciclismo. Os mais velhos (que não eu...) recordavam a rivalidade Benfica-Sporting entre José Maria Nicolau e Alfredo Trindade, com o último a cunhar uma frase magnífica, numa das suas vitórias: “Finalmente, limpámos o sebo à gajada do Benfica” (anteontem, bem gostava de poder ter dito isso...)

Na minha juventude, a passagem da Volta por Vila Real era um momento de grande emoção, em especial quando por lá terminava uma etapa. Nessa época, lembro-me de acompanhar pelos jornais desportivos, ao segundo, a evolução da classificação geral. Vivia-se então a Volta com entusiasmo.

Pela rádio ficava a saber-se, a certa altura, que "já chegaram ao Alto de Espinho!", pelo que imaginávamos a descida rápida desses 15 km, que antecedia a curta subida da ponte do Cabril para a meta na cidade, quase sempre situada no chamado circuito, nas traseiras da minha casa. Há tempos, numa publicação do Museu do Som e da Imagem (a quem também roubei esta imagem), dei comigo numa fotografia, aí com uns 11 ou 12 anos, junto com a restante ganapada, à volta de um ciclista qualquer, numa dessas etapas terminadas na “Bila”.

Desmontadas essas metas onde, horas antes, nos apinháramos para ver a chegada da caravana suada, o “espetáculo” passava então para a Avenida Carvalho Araújo, convertida num parque caótico de "carros de apoio", cheios de rodas com um reluzir metálico, de veículos da organização com papelada colada, os passeios subvertidos por hordas de estranhos, de identificação pendurada ao peito, o que lhes conferia uma dignidade mítica.De chanatos arejados, numa mais do que duvidosa elegância, cheirando aos óleos da massagem pós-competição, os nossos "heróis" passeavam-se, impantes, ou jaziam refastelados em cadeiras de esplanadas, da Gomes ao Camposana, passando pela Brasileira. Às vezes, viamo-los confraternizar com os jornalistas "da Volta". É que ali estavam, à nossa vista, o Aurélio Márcio, o Carlos Miranda, o Artur Agostinho, o Amadeu José de Freitas, o Manuel Dias, o Nuno Braz - nossos "íntimos" de "A Bola", do "Record", de "O Mundo Desportivo", do "Norte Desportivo" ou da "Emissora". Depois, todos recolhiam às pensões Excelsior, Mondego, Coutinho ou Areias - salvo as equipas ricas, que se permitiam os luxos do único hotel, o Tocaio.

Como espectáculo de rua, tenho a consciência de que o ciclismo continua ainda a ser uma festa para as terras por onde passa. Há uma merecida admiração por esses homens que, no tempo mais quente do ano, passam horas a sofrer. Uma luta que se passa à nossa escala, porque há que ter em atenção que a Volta a Portugal está a anos-luz de importância das suas grandes congéneres europeias - a espanhola, a italiana e a francesa. De qualquer forma, conseguir subir a Senhora da Graça ou a Torre continua a ser uma proeza impressionante e até comovente.

A minha cidade, Vila Real deu ao ciclismo português um nome importante: Delmino Pereira. Porém, na minha infância, havia por lá um outro ciclista, Firmino Claudino, o qual, durante alguns anos, alinhou em Voltas a Portugal, sem que, no entanto, tenha deixado a menor marca de vitórias. Recordo-me bem da sua figura, dono de uma loja de bicicletas e, com bastante mais êxito do que no ciclismo, do seu estatuto de um dos melhores bilharistas nas mesas do Café Excelsior.

Firmino Claudino não nascera em Vila Real, mas sim nas Pedras Salgadas. Numa Volta nos anos 60, que teve uma etapa que aí finalizou, mantenho viva, na minha memória de miúdo por ali em férias, a sua imagem, num final da tarde, impante de orgulho, a passear-se de braço dado com Alves Barbosa, numa assumida e ostensiva revelação de proximidade com aquela que era, à época, a grande estrela do ciclismo português. Essa terá sido, seguramente, a sua maior vitória ciclística... 

Anos mais tarde, a caravana da Volta voltou a atravessar as Pedras Salgadas. Reza a lenda, mas não consigo confirmá-la, que Firmino Claudino, que ia no pelotão, nessa passagem pela sua terra natal, decidiu desistir por lá. Seria a etapa final da sua última Volta. Ter a própria terra por meta não deixa de ser bonito.

segunda-feira, agosto 05, 2019

Livros


Ora essa! Claro que dobro as páginas dos meus livros! E sublinho-os e tomo notas neles a tinta, quando me dá na gana. E gosto de ver surgir os vincos nas lombadas, por colar a capa à contacapa, quando os leio. 

Ah! e não há ninguém que goste mais de livros do que eu, aposto!

A bomba

                                  
No aeroporto de Lisboa, dentro de um avião, pertencente à companhia de um país para o qual ia viajar um ministro português que me cabia acompanhar, demos conta de que o voo tardava bastante em partir, sem que, no entanto, qualquer explicação fosse dada. 

Constatei que uma estranha agitação originava idas e vindas para a cabine de pilotagem, induzindo um raro ar de preocupação na cara dos próprios tripulantes. Argumentando com a presença do ministro, tentei saber o que se passava. Com discrição, informaram-me que havia uma ameaça de bomba. 

Fiquei escandalizado! Exigi que abandonássemos, de imediato, o aparelho, enquanto o assunto não fosse devidamente esclarecido. Em poucos minutos, isso viria a acontecer. A comitiva oficial portuguesa saiu, sendo colocada na sala VIP. Os restantes passageiros, como viemos depois a saber, foram mantidos no avião, enquanto as buscas sobre a possível bomba a bordo prosseguiam...

Não deviam ter decorrido mais de 20 ou 30 minutos quando fomos convidados a regressar ao aparelho. A viagem iniciou-se. Estávamos já a voar há quase uma hora quando o comandante do avião veio esclarecer o ministro português sobre o atraso na partida. Disse que uma chamada telefónica anónima, creio que para o aeroporto, desencadeara o alarme. Todos ligámos o incidente à morte violenta em Portugal, precisamente na véspera, de um opositor do regime do país que íamos visitar. 

O comandante do avião explicou também: “Tentámos que o atraso fosse o menor possível, porque fomos informados de que o senhor ministro tem um programa muito sobrecarregado, logo à chegada à nossa capital. Neste tipo de situações é vulgar as buscas poderem demorar algumas horas, mas recebemos instruções para as apressarmos. Conseguimos, assim, concluí-las em menos de uma hora...”

Os membros da delegação portuguesa, esmagados de “gratidão” pela rapidez da vistoria, olharam uns para os outros, muito perplexos. Detetei sinais de uma impotente inquietação nos olhos de alguns, a começar pelo ministro. No que me toca, devo confessar que me custou bastante a adormecer...

(Para quem aprecia a precisão factual, posso informar que a viagem teve lugar no dia 22 de abril de 1988.)

domingo, agosto 04, 2019

Apoio no infortúnio

Agora percebo melhor a presença de Marcelo na tribuna no jogo de hoje. 

Ele não perde uma oportunidade para dar alento às vítimas de qualquer tragédia.

Venezuela


Nos dias de hoje, um governo que haja declarado reconhecer a autoridade de Guaidó sobre Maduro, quando tem de resolver um problema concreto na Venezuela, fala com quem? 

A precipitação, o “wishful thinking” e o seguidismo não são atitudes sensatas, em política externa.

Portugal adotou uma postura reconhecidamente muito prudente nessa questão: nunca esteve na primeira linha dessa deriva no seio da UE e só se juntou à atitude coletiva quando não fazê-lo traria riscos que importava evitar.

Biden


Já me enganei suficientemente na leitura de sinais na vida política americana para me poder dar ares de autoridade, mas tenho cada vez mais para mim que a candidatura de Jo Biden não vai longe. Embora sério, não é entusiasmante e já leva a seu débito demasiadas contradições.

Tancos


Tancos é para mim um crescente mistério. Como é possível que um episódio que envolveu um escasso número de pessoas, já há mais de dois anos, em que já se percebeu o essencial do que se passou, não tenha hoje os culpados julgados e na cadeia?

Que raio de sistema judicial temos?

Guantanamo


A indignação arrefece com o tempo: que será feito dos presos em Guantanamo, que estão lá desde os tempos de George W. Bush, sem que as suas condições de detenção possam ser monitorizadas pelas organizações internacionais que se ocupam dos Direitos Humanos? 

Nem os tão incensados democratas americanos, Obama incluído, com eles se preocuparam...

Brasil (4)


O ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Jean-Yves Le Drian, qualificou como “emergência capilar” a decisão do presidente Bolsonaro, do Brasil, de cancelar à última hora o encontro que tinha com ele para ir cortar o cabelo. 

Uma grande diplomacia é também isto.

Brasil (3)


O ministro das Relações Exteriores do Brasil foi a Roma, em maio, e constatou que estava frio. Daí, concluiu que o aquecimento climático é uma balela. Já Trump tinha chegado à mesma conclusão, aquando dos nevões nos EUA.

No passado, estas coisas só aconteciam nas anedotas.

Brasil (2)


O liderança brasileira deve achar que os EUA ficam gratos por vê-la partilhar doutrinas “politicamente incorretas”, do clima aos costumes. Mas nem Bolsonaro é Trump, nem o Brasil é os EUA. Ao poder americano quase tudo é permitido. O Brasil irá perceber que não tem esse poder.

Brasil (1)


A cada dia, de conhecidos no Brasil que “venderam a alma ao diabo” e votaram Bolsonaro apenas para travar o passo ao PT, chegam-me sinais de imensa preocupação, por estarem finalmente a tomar consciência daquilo em que se meteram, com consequências dramáticas para o seu país.

“100 à hora”

Recordo-me da existência, em Lisboa, de um clube automóvel chamado “Clube 100 à hora”. Há muito que não ouço falar dele.

(Sei que existe um clube homónimo na Madeira, mas não é desse que aqui se trata.)

Alguém sabe se ainda existe, em Lisboa, o “Clube 100 à hora” e, se acabou, quando isso aconteceu?

Agostos da vida - O fim da “primavera”

O ano de 1969 dava ares de poder ser decisivo na vida política portuguesa. Salazar fora substituído no ano anterior. Em outubro, teriam lugar eleições para a Assembleia Nacional. As primeiras do “marcelismo”. A ideia de que, pela primeira vez, desde 1926, havia uma real possibilidade de vozes dissonantes poderem entrar no parlamento da ditadura atravessou alguns espíritos mais crédulos.

Eu tinha 21 anos, mas não comungava dessa ingenuidade. No ano anterior, tinha tido um interessante banho de experiência, ao integrar uma lista associativa universitária cuja livre eleição fora “não-homologada” pelo governo. Depois, vira a minha escola invadida pela polícia, que regularmente ia também encontrando em diversas manifestações políticas de rua, de vária natureza, em que me via envolvido, embora sem nenhum tipo de militância partidária. Experimentara emoções fortes nas ruas agitadas de Aveiro, durante o Congresso da Oposição Democrática. Ainda em Lisboa, tinha andado envolvido em algumas movimentações preliminares da oposição, como a célebre reunião no Palácio Fronteira, onde as águas políticas se separaram fortemente, pela primeira vez, na história do combate ao regime.

À esquerda, ficou a maioritária CDE (Comissão Democrática Eleitoral), onde predominava o PCP, aliado a “católicos progressistas” e algumas outras franjas radicais. Constatada a impossibilidade de acordo, Mário Soares e os seus amigos da ASP (Acção Socialista Portuguesa) haviam criado a CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), que concorreu isolada, mas apenas em Lisboa, Porto e Braga. No resto do país, a escassez de recursos oposicionistas forçava à necessária unidade. Nesses distritos, a sigla CDE tinha um sentido mais abrangente e unitário, no modelo oposicionista tradicional.

Era o caso de Vila Real. De férias na capital transmontana, fui contactado pelo António Leite (em casa de cuja avó se fizera a primeira reunião oposicionista), que me transmitiu o convite para integrar a estrutura local da CDE. Aceitei de imediato. Passou a caber-me a redação de artigos e manifestos, a agitação dos meios da juventude, não sem alguma tensão ideológica intergeracional à mistura. A minha integração foi, aliás, muito rápida: semanas depois, lá me vejo, com Otílio de Figueiredo e Délio Machado, no trio de representantes da CDE de Vila Real que foi fazer a apresentação formal da lista oposicionista do distrito ao Governador Civil, Torquato de Magalhães.

Esse mês de Agosto, em Vila Real, foi inesquecível. Sob a hábil e paternal liderança política de Otílio de Figueiredo, prestigiado médico e figura intelectual local, a oposição estruturava-se num leque verdadeiramente pluralista. As clivagens políticas lisboetas, não nos sendo indiferentes, tendo a questão colonial no centro, eram muito atenuadas pela necessidade imperiosa de ganharmos para o nosso lado todas as vozes contestatárias do regime. Estas iam desde elementos que sabíamos ligados ao PCP até ao “reviralhismo” republicano tradicional, passando por figuras da esquerda moderada, que imaginávamos próximos da ASP e de Mário Soares. E, naturalmente, por lá andava algum radicalismo mais “esquerdalho”, a maioria sem partido, mas com muito sangue na guelra. Neste, recordo em especial o magnífico entusiasmo, quase “anarca”, bem provocatório, do João “Bé“ Bouquet, a grande alma da organização da CDE de Vila Real.

Esse mês e o período que se lhe seguiu tiveram de tudo um pouco: reuniões clandestinas ou, inconscientemente, feitas à vista de todos, incontáveis viagens pelo distrito, contactos com outros núcleos oposicionistas pelo país, discussões épicas na Gomes, o principal café da cidade, algumas chamadas à polícia por incidentes de percurso, regular censura de artigos e textos programáticos nossos na imprensa, dificuldades crescentes surgidas nas tipografias, ameaças profissionais a muitos aderentes, criação e colagem noturna de cartazes anónimos (fui o criador de um que apenas tinha escrita a palavra “MEDO”, impressa a preto forte, cortada por duas pinceladas de tinta vermelha), pides encartados e “bufos” locais a vigiarem a nossa sede, caravanas de propaganda ameaçadas fisicamente, frequentes insultos pelas ruas, por parte de turiferários do regime, a necessidade de mandar fotografar os cadernos eleitorais (não havia cópias distribuídas nem existiam ainda fotocópias, pelo que tivemos de fazer fotografias de todas as páginas das listas de eleitores, no Governo Civil, com um imenso custo financeiro), a impressão e distribuição individualizada dos nossos boletins de voto (para quem não saiba, cada lista eleitoral mandava imprimir então os seus próprios boletins de voto, aqueles que iriam ingressar nas urnas, e tinha de os entregar porta-a-porta, nos dias antes das eleições, pessoalmente, a cada eleitor, porque os correios eram caros e não fiáveis!), etc.

Depois, foi o resultado previsível. Em quase todos os distritos do país, a oposição, sem acesso mínimo à televisão, com a sua promoção mediática muito limitada, sob um ambiente de forte coação, com listas eleitorais onde predominavam os adeptos da “situação”, teve uma derrota estrondosa. A “primavera marcelista”, em cerca de um ano, desmascarara-se por completo. Para nós, para quantos se haviam empenhado politicamente, aqueles meses haviam sido muito estimulantes. Eu, pelo menos, estava muito diferentes, depois deles.

Foi há meio século. Um belo mês de Agosto! Nunca mais o vou esquecer!

sábado, agosto 03, 2019

Brasil

O mais irónico na situação política que se vive no Brasil é ver agora surgir como político parlamentar dotado de bom senso Alexandre Frota, um ator porno que, quando por cá andou, ficou “famoso” por cenas no Big Brother.

O novo tabu

É minha impressão ou caiu uma espécie de tabu sobre a decisão do “Expresso” de limitar a possibilidade dos seus jornalistas manterem atividade nas redes sociais? Parece haver algum incómodo em tratar de um assunto que se liga à liberdade de expressão. 

Nada fazer



Nestes dias de férias, lembrei-me de alguém que tem a sorte de estar quase permanentemente nelas. É uma pessoa com uma profissão prestigiada e invejada, cuja capacidade para conseguir escapar ao peso do trabalho se tornou já lendária, em quem o conhece bem. Algo que exige, note-se, uma apurada técnica.

Ele procura, em primeiro lugar, não ter nunca nada para fazer, que nada lhe seja atribuído como tarefa, escapulindo-se das atividades que o azar lhe pode colocar à frente, pretextando algo ou inventando razões para que o não incomodem. Entre essas razões pode estar a consciência, em outros, da inutilidade de lhe dar algo para realizar.

Se isso se torna em absoluto impossível, porque a sorte nem sempre é justa com quem porfia, tenta ir fazendo apenas o que lhe apetece e, mesmo assim, efetuá-lo no tempo e ritmo que lhe aprazem. Até que, por vezes, os outros percebam da inutilidade de lhe ir bater à porta.

Como é bastante inteligente, tem já um quase insuperável "know-how" na matéria, uma soma de truques que confundem os não iniciados, pouco aptos a detetar, à vista desarmada, essa imparável deriva lúdica em que ele consegue transformar o seu quotidiano profissional. Dessa arte faz parte essencial a procrastinação, esse adiar eterno da execução das tarefas, esperando que o tempo lhes dilua a pertinência: “deixar para depois de amanhã aquilo que parecia urgente ontem, mas já o não deve ser agora”.

Mas não julguem que a vida dessa pessoa configura uma atitude fácil: ele tem imenso "trabalho" em lutar e conseguir que lhe atribuam funções que, na prática, o isentem de trabalhos, em que os horários possam ser detalhes despiciendos, onde sejam viáveis exercícios criativos de ubiquidade administrativa, mas também onde sempre possa, a olhos desprevenidos, fazer passar um sopro de actividade virtual, dando permanentemente a ideia de ter alguma coisa em curso de execução.

Ah! e queixa-se, queixa-se sempre, dos outros, dos azares da vida, das horas (acreditem!), do peso das episódicas tarefas que lhe cabem. Enfim, trata-se de um génio na gestão do seu tempo, que, cheguei a aconselhar-lhe, deveria mesmo escrever um manual sobre o tema. Mas isso daria algum trabalho...

Como o mundo é o que é, como ele sabe mexer-se junto de alguma gente, porque até não é mau rapaz, lá vai (não) fazendo pela vida, nesse seu anti-stakhanovismo endémico, o qual, a meu ver, por obrigar a exercícios de imaginação, o deve fatigar imenso. É que o bluff, na profissão dele, já teve melhores dias.

Tenho há muito uma ideia para quando um dia ele vier a ter um epitáfio - e não será "morto de cansaço", podem crer! O infante dom Henrique tinha um lema: “Talant de bien faire” (vontade de bem fazer). A ele bastava mudar uma letra: "Talant de rien faire" (vontade de nada fazer).

sexta-feira, agosto 02, 2019

Dúvida de fim de semana

Se Vitor Gaspar e Maria Luís Albuquerque foram tão espetaculares ministros das Finanças, no entender unânime das instituições internacionais, por que diabo (a palavra “diabo” é adequada) nunca o seu nome surgiu lembrado para DG do FMI? Gaspar até lá trabalha...

Mundos & fundos


Uma verdade que sei incómoda para muitos que me leem: só seremos um país em equilíbrio quando os agentes económicos e sociais não tiverem, como regra regular para se desenvolverem, o tropismo de recorrerem a fundos comunitários ou a outros tipos de discriminação positiva de origem estatal, quando, para realizarem qualquer coisa que deva obedecer simplesmente às regras de funcionamento do mercado e da concorrência, não se pense logo “deixa lá ver se se consegue sacar alguma coisa para isto do 2020, a fundo perdido ou bonificado”, quando, para investir em qualquer setor, a lógica passe a ser, muito simplesmente, ir pedir um empréstimo a um banco, pagando-o depois com os lucros do que investiu.

Caçadores Cinco


Ninguém bate os amantes da pesca em exageros. Ou melhor, talvez só os caçadores. Aquele meu colega, um embaixador cordial e sempre bem-humorado, hoje reformado, era, de facto, e ao que se sabia, um excelente caçador. Mas, como todos os seus pares, "pintava" imenso as histórias.

Diplomata em Cuba, há algumas décadas, chegou mesmo a ir à caça com Fidel de Castro, de quem dizia, com alguma sobranceria: "O Fidel disparava muito mal. Até eu lhe emprestar a minha Purdey, nunca conseguiu caçar coisa de jeito...". Mas acrescentava: "Já o Raul, era bem melhorzinho".

A conversa que vou relatar, teve-a esse meu colega com um seu colaborador, que o conhecia há pouco tempo e que, por um acaso, não estava familiarizado com as qualidades de caçador do seu novo chefe.

Um dia, veio à baila, num diálogo entre os dois, o tema da caça e interlocutor inquiriu: "O senhor embaixador caça?!". O nosso homem abriu os olhos, como que escandalizado com o indesculpável desconhecimento que a pergunta revelava, e esclareceu, impante: "Se eu caço?! Essa agora?! Eu sou um dos três melhores caçadores da Europa!".

Porém, meio segundo depois, o embaixador teve uma hesitação: "Espera aí!" O tratamento por "tu" é a sua regra normal de relacionamento, logo que conhece alguém, o que o torna ainda mais simpático. 

O interlocutor, por um instante, achou que ele ia retratar-se do exagero, que a frase lhe saíra precipitada e que iria moderar a dimensão da sua importância como caçador.

E tinha toda a razão. O embaixador logo rectificou: "Eh! pá, três não, "põe" cinco. É que há dois gajos que não são federados".

A modéstia, quando sincera, mesmo que tardia, é sempre uma enorme qualidade...

quinta-feira, agosto 01, 2019

As “escadinhas”


Estou aqui na praia, de iPhone na mão, a teclar e a olhar o mar, pensando que a temperatura da água é, de facto, um excelente pretexto para hoje não ir nadar. 

“Nadar”, aliás, no que me toca, foi sempre uma força de expressão. Nado pessimamente, nunca tive o menor jeito nem fôlego para me aguentar muito na água. E como só gosto dela morna, sou pouco dado a banhos “revigorantes” em mares menos cálidos, que sempre vi como coisa de gente masoquista, prenúncio mesmo de possíveis constipações.

Na minha terra, em Vila Real, na infância e juventude, não havia nenhuma piscina. Aprendia-se a nadar no rio, no lugar do Codeçais. Mas o “se” não me era reflexo: nunca me deixaram ir dar banhos por lá, naquela proteção dada a filho único que, bem vistas as coisas, sendo algo chatota, não deixou de ter o seu quê de confortável, no saldo final.

A minha instrução de natação, por muito limitada que tenha sido, foi assim toda feita em Viana do Castelo, onde, nos agostos, íamos passar quase um mês de férias. Nesse tempo, acreditem!, Viana também não tinha nenhuma piscina, salvo a do hotel de Santa Luzia, onde, por 2$50, eu ia a banhos com pé, rodeado de ingleses rosados e sardentos, comigo com escasso dinheiro no bolso que, para além de pagar o funicular, apenas dava para comprar um mazagran (já ninguém sabe o que isso é). Não sendo factível aprender por ali a nadar, muito menos o era nas ondas bravas do Cabedelo ou nas poças rochosas da Praia Norte, mesmo com a maré a jeito. Por isso, era na doca comercial que, naquele tempo, se davam as primeiras braçadas.

Joaquim Baptista, um dos mais antigos amigos do meu pai, acompanhado por uma figura muito conhecida da cidade, Amadeu Costa, assegurou ali, por muitos anos, uma improvisada escola benévola de natação, que funcionava no Verão e na qual, um dia, decidiram inscrever-me. Nunca foi coisa que me entusiasmasse muito, mas o que tinha de ser tinha a muita força da determinação paterna. Despiamo-nos num barracão de madeira e, em fila indiana, lá descíamos, a medo, umas lodosas “escadinhas”, para uma meia-hora que recordo de relativo tormento.

Nos dias de hoje, o navio Gil Eanes, fundeado em permanência na doca de Viana, quase que esconde essas “escadinhas”. Trata-se de degraus de pedra que baixam do alto da doca para a água. São simétricas, uma em frente à outra. Se a maré que entra do mar está baixa, a distância entre os últimos degraus fora de água é pequena, aí uns dois metros. Mas se está alta, esses metros alargam-se. Nunca muito, claro, mas era então uma distância que parecia imensa para quem era testado a fazê-la numa atabalhoada tentativa de nadar de bruços ou no crawl precipitado, que chamávamos, “à cão”. 

De início usávamos uma prancha, depois éramos “pescados” com (creio) umas cordas, enquanto fazíamos os movimentos e, finalmente, quando já mais práticos, éramos largados à nossa sorte. A água em que tentávamos nadar estava cheia de lixo dos barcos, que íamos afastando com a mão, evitando que certas “peças” se nos acercassem da cara. Imagino que, nos dias de hoje, deva até haver diretivas europeias que desaconselhem semelhantes imundícies, mas então era assim e, ao que julgo, ninguém terá ficado doente por virtude desse insólito “ecosistemema” aquático. A glória das glórias era conseguirmos chegar ao outro lado da doca, o que era saudado por palmas da molhada de pais e familiares que assistiam à proeza dos seus rapazes e raparigas. Fi-lo uma vez, que me lembre. Devo-me ter cansado para sempre...

As lições nas “escadinhas” eram ao final da tarde e porque a casa da minha avó (hoje sede da Fundação Maestro José Pedro, lá por Viana) era em frente à doca, recordo-me de, nos primeiros dias, passar por lá, um pouco antes, para ver em que paravam as modas em termos da “enorme” distância entre as “escadinhas”, por via dos humores das marés.

Com todos esses medos e, seguramente, algumas oportunas baldas, a verdade é que fiquei, até hoje, num registo bem sofrível de nadador. Já não vou a tempo para corrigir esta falha na minha formação, a qual, aliás, nunca me preocupou por aí além (quem me conhece sabe que sou pouco dado a preocupações eternas). Para o que interessa: sou hoje um comodista “nadador” de piscinas, mergulho pouco e mal, no mar quase só “passeio” e dou umas braçadas, sempre que possível em lugares “com pé”. Enfim, um “desportista” pouco ambicioso, como já perceberam.

E como hoje a água está (de facto) fria, tenho um excelente pretexto para ficar aqui sentado, a esturricar as banhas pela tarde, neste belo sol amaciado pelo vento, até que o João toque a corneta, anunciando, daí a pouco, a chegada da caixa com as bolas de Berlim da praxe. Com creme, porque as minhas últimas análises estavam excelentes e só se vive uma vez.

Bom verão, para quem aqui me lê!

Bolas!


Gostaria de ser simpático para o surgimento do novo canal de televisão da Federação Portuguesa de Futebol. 

Mas constando que Portugal é já dos países do mundo onde há mais futebol nas televisões, não sei se esta é mesmo uma boa notícia.

Honra à liberdade!


Início de Novembro de 2016. Na véspera, Trump tinha acabado de ganhar as eleições presidenciais americanas. Eu estava em Berlim, numa iniciativa organizada pela Fundação Calouste Gukbenkian com contrapartes alemães. Os membros do governo alemão com que falávamos estavam visivelmente traumatizados com o que acabara de suceder nos Estados Unidos. 

Eu estava um tanto surpreendido com esse estado de espírito, que abeirava o desespero. Afinal, pronto!, as coisas eram o que eram, mas, com toda a certeza, o bom senso da máquina republicana acabaria por se impor em Washington, em particular nas relações transatlânticas, que eram a principal preocupação alemã. Vistas as coisas hoje, eles é que tinham razão, eu é que estava a ser ingénuo.

A reunião acabou e eu decidi ficar uns dias mais por Berlim, no mesmo hotel onde fora a conferência e nos alojáramos. No fim do encontro, um amigo alemão, que me conhecia bem e vivera muitos anos em Lisboa, disse-me: “Não deixe de visitar o museu quase em frente ao hotel. Tem poucos visitantes, mas tenho a certeza de que vai apreciar”.

Fui lá no dia seguinte. Era um discreto museu da resistência ao nazismo, instalado numa caserna militar, ainda operacional. O lugar era histórico. O pátio tinha uma placa a assinalar o local onde foi fuzilado o oficial alemão Claus von Stauffenberg, responsável pela “Operação Valquíria”, o gorado atentado contra Hitler. 

Neste tempo em que alguma Alemanha parece querer esquecer ou reinterpretar os anos negros do seu passado, estimulada pela extrema-direita trumpista, é reconfortante ver Angela Merkel associar-se, naquele lugar, à celebração do 75° aniversário desse atentado. Procurar liquidar um ditador é um ato de heroísmo patriótico, como a chanceler alemã sublinhou.

quarta-feira, julho 31, 2019

Ainda a ética política


O Estado tem de ser sério, se quer ser levado a sério. Não é admissível, num tempo de forte escrutínio sobre a gestão dos bens públicos, em que se pede aos cidadãos um esforço fiscal tremendo, assistir a dispêndios cuja afetação possa suscitar fundadas dúvidas, em termos de transparência ou de rigor nos gastos. Quem não perceber que o mundo mudou muito, neste domínio, terá um destino político breve ou muito conturbado.

Todos sabemos que metade do ruído mediático que qualquer incidente nos gastos do Estado suscita é fruto da chicana política – da política politiqueira – e da consabida apetência para explorar as dificuldades do exercício do poder. Meia mentira e meia verdade fazem um título ou um “soundbite”. Também isso, habituem-se!, é parte da democracia contemporânea. 

Mas falta ainda a outra metade. E essa, para além dos muitos casos em que há um objetivo dolo nas ações praticadas, é feita de facilitismo, de leviandade, diria mesmo, de amoralidade cívica.

Servir o Estado tem regras, obedece a princípios que decorrem, não apenas da lei, mas da ética comportamental exigível a quem cuida da coisa pública. É algo que só se aprende com o tempo, muito embora os tempos que se vivem, em que a diabolização do Estado está na boca de alguns a quem o cabe dirigir, não ajude muito a essa pedagogia cívica. 

Ser eleito ou nomeado para um cargo público não confere a ninguém, necessariamente, um “template” de servidor do Estado. Sair de uma “jota” e entrar num gabinete governamental não dá a ninguém um diploma de competência para gerir a coisa pública. 

Concedo que o “amiguismo” político, essa imensa escola de recrutamento que quatro décadas de “bloco central” inocularam na nossa máquina pública, é talvez um efeito colateral inevitável do nosso modelo político, que tem os partidos no seu centro de gravidade institucional. Mas é imperativo democrático conseguir moderá-lo. E isso passa pelo sancionamento imediato de um qualquer comportamento que afete o bom nome do Estado. 

Em política, por muito que isso custe a muitos, só raramente se aplica o princípio básico da justiça comum: “in dubio pro reo” (na dúvida, dá-se o benefício da dúvida ao réu).

terça-feira, julho 30, 2019

Na lua


Como é sabido, há ainda por aí alguns cromos que não acreditam que o homem tenha ido à lua, em 1969. Isso recordou-me um episódio anedótico anterior, passado em Portugal.

Estávamos em 1957 e a União Soviética anunciara a colocação em órbita do seu primeiro satélite, o Sputnik. 

Este primeiro passo na aventura espacial, hoje considerado decisivo para tudo o que se lhe seguiu, não foi muito bem visto pelos sectores oficiais portugueses. Qualquer êxito comunista era um engulho para o regime salazarista.

Ora dava-se o caso de que, nesse ano de 1957, uma voz da “ciência” portuguesa, o astrofísico professor Varela Cid, haver concluído uma “teoria” sobre o tema que muito agradou ao regime. 

E assim, na nascente RTP, num programa em direto, com direito a um quadro negro de explicações a giz, desenrolou-se a demonstração, feita pelo “sábio” luso, da "impossibilidade" prática de um satélite poder ser posto em órbita... sem cair por aí abaixo! Não há limites para o ridículo.

Pê-ésse

Farto-me de dizer que sempre subestimamos a (estava para escrever “notável”) capacidade dos governos socialistas para darem tiros nos pés (ou para terem no seu seio quem o faça a seu débito, com arte e pontaria). 

Perguntarão: e os outros, não dão? Claro que sim, mas cada um sabe dos seus...

segunda-feira, julho 29, 2019

Purga


Por estas alturas, há quem vá “de águas” para as termas. Alivia os males do fígado e da vesícula, de quem, em geral, digere mal algumas coisas. Dou-me conta de que, nos comentários a este blogue, estão a (re)surgir, sob a heróica coragem do anonimato e com heterónimos para parecerem mais do que são, alguns saudosistas do tempo “da outra senhora”, que padecem de tais maleitas do foro estomacal ou biliar. É uma onda cíclica, soprada agora por ventos políticos que lhes não vão de feição. Acho que merecem uma vilegiatura. Tê-la-ão, a partir de agora.

O chapéu



Uma das rotinas mais interessantes dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros foi, durante muitos anos, a função do chamado "correio de gabinete". Tratava-se de transportar uma “mala diplomática”, portadora de documentos de elevada confidencialidade, função de que eram quase sempre encarregados os diplomatas mais jovens. 

Todas as semanas, um funcionário circulava entre várias capitais, levando consigo uma pasta, fechada com selos de chumbo. Era normalmente pequena, mas também podia acontecer ter dimensões bem maiores, sendo nesse caso complicado (embora sempre obrigatório) assegurar o seu transporte na cabine dos aviões, nunca perdendo o volume de vista.

O roteiro de quem ia "de mala" foi variando, em função de diversos fatores e conjunturas. Na Europa, recordo ter-me deslocado, por mais de uma vez, a Londres, Bruxelas, Viena e até a Belgrado. Madrid, Paris e Estocolmo, se bem me lembro, também foram abrangidas pelo circuito deste tipo de "malas acompanhadas". Viena era o centro de contacto com as nossas embaixadas das capitais "comunistas" e os colegas nelas colocados estavam sempre ansiosos para dar um salto à capital austríaca, para buscar ou trazer essa correspondência. Fora da Europa, ia-se a Nova Iorque e a Washington.

Há que confessar que era uma tarefa bastante agradável: uma semana de dispensa de serviço e uma viagem, com ajudas de custo, por cidades simpáticas, embora um pouco numa correria (em Londres ficava-se um dia mais e eramos alojados num pequeno quarto, no edifício da chancelaria). 

Embora houvesse como que uma escala na atribuição deste encargo, existiram sempre, no Ministério, os chamados "papa-malas", que tinham meios de obter informação prioritária sobre a indisponibilidade pontual dos funcionários escalados e, de imediato, se voluntariavam para os substituir. Às vezes, chegado o bom tempo, até diplomatas bem mais velhos, já mesmo conselheiros de embaixada, faziam um pouco discreto lóbi para "irem de mala", pela vontade de efetuarem uma bela viagem à custa do erário.

Hoje, vistas as coisas à distância, tendo a concordar que uma das vantagens concretas desta instituição dos "correios de gabinete", num tempo em que se viajava muito menos, era ajudar a aculturar os jovens diplomatas com o mundo exterior, ainda antes de serem colocados no seu primeiro posto.

A história que vou contar, verídica e clássica nas Necessidades, passa-se em Lisboa, numa determinada repartição, creio que nos anos 60.

Um velho e prestigiado embaixador está à conversa numa sala onde trabalham diversos diplomatas. A certo momento, fica a saber-se que um dos jovens secretários presentes vai "de mala", na semana seguinte. O rumo da conversa, por uma qualquer razão, deriva para a questão dos trajes e fala-se de usar ou não chapéu. O embaixador volta-se, então para o jovem secretário que irá "de mala" e inquire: "E o colega, usa chapéu?".

Ser tratado por "colega" por um embaixador "chevronné" era uma distinção que, à época, deixava os mais novos orgulhosos e, desde logo, quase obsequiosos. O rapaz, um tanto aturdido, responde que ainda não, que nunca tinha usado chapéu. O embaixador, experiente, adiantou: "Meu caro amigo, usar chapéu, na Carreira, não é obrigatório. Mas é um hábito que fica sempre bem, que dá muita classe. Se o meu amigo quer um conselho, compre um chapéu. Vai ver que, em algumas ocasiões, isso lhe dará uma grande elegância".

Seduzido pela atenção que lhe era dispensada por tão alta figura da "Casa", o jovem diplomata deixa escapar que, pensando bem, vai acabar por comprar um chapéu. Aliás, recordava-se que até já tinha pensado nisso, mas nunca se tinha decidido, em definitivo. Mas agora, "já que o senhor embaixador recomenda", irá mesmo comprar um.

Nesse instante, o embaixador exclama: "Olhe lá! Lembrei-me agora: você vai a Londres! Não há melhor cidade do mundo para chapéus. Mais do que isso: estamos na época dos saldos! E, em Londres, onde você encontra estupendos chapéus é no Bates, ali na Jermyn Street. São magníficos! Porque não aproveita? Você vai estar lá dois dias, dá uma saltada ao Bates e compra um chapéu".

O jovem secretário sente-se impulsionado, entre o rápido convencimento e uma subliminar intimidação, e concede: "De facto, é uma boa ideia. Vou passar por lá e compro um chapéu.". "Faça isso, homem, faça isso, é uma bela oportunidade!", diz o embaixador, dando ares de se encaminhar para a porta de saída da sala.

De repente, porém, o embaixador estaca. E, voltando-se para o jovem colega, inquire: "Então você vai mesmo comprar o chapéu?". "Vou, vou" diz o outro, já num tom entre o decidido e o resignado, começando a estranhar a insistência. Aí, o velho diplomata lança-lhe: "E vai ao Bates? Excelente! É, de facto, a melhor opção! Aliás, dá-se uma coincidência curiosa, de que agora me recordo: eu tenho um chapéu encomendado, precisamente no Bates. Se o colega lá vai comprar o seu, podia levantar o meu chapéu e trazer-mo. Já está pago. Tem aqui talão. Fico-lhe muito grato...."

(Na memória dos claustros das Necessidades, o embaixador da historieta terá sido o histórico António de Faria e o jovem secretário foi o (mais tarde também) embaixador Melo Gouveia).

domingo, julho 28, 2019

Colômbia


Vim de lá, há dois dias. A Colômbia está muito longe de ser um país perfeito. Mas é uma democracia estável, com alternância política, um dos poucos Estados da América Latina que nunca esteve sob ditadura militar. Durante bastantes anos, uma espécie de guerra civil manteve zonas do país a ferro e fogo, até que a paz negociada se impôs. O tráfico de droga marcou, por muito tempo, a imagem de um país de gente simpática que, no dia de hoje, com forte razão, deve estar bem feliz pela vitória de um compatriota na Volta à França. Fico muito satisfeito pelos meus amigos colombianos.

Special relationship


sábado, julho 27, 2019

Quase meio século


Era um dia de intenso calor. Tinha acabado de desembarcar na estação da Régua, vindo de Vila Real, pela velha linha do Corgo. Aguardava o comboio que, a chegar de Barca d'Alva, me levaria ao Porto. Aí apanharia a ligação para Lisboa, onde deveria chegar depois de uma viagem de cerca de 10 horas. 

Era assim o Portugal de 1970. "A rádio está a anunciar que morreu o Salazar", disse-me um amigo, que tinha ido tentar apanhar, na tabacaria, o "Diário de Lisboa" do dia anterior, que não tinha chegado a Vila Real. Embora sob censura, a leitura do “Lisboa” era então, para muitos de nós, "obrigatória".

Recordo-me bem de não ter tido qualquer sentimento particular perante a notícia. Salazar tinha morrido politicamente quase dois anos antes, em Setembro de 1968, quando adoecera e fora substituído por Marcelo Caetano. Desde então, a decadência física do antigo ditador havia sido exposta algumas vezes à mórbida curiosidade pública, com estranhas aparições cuja mediatização quase que parecia destinada a sublinhar o deperecimento político do próprio salazarismo. Alguns, mais bem informados, conheciam o episódio caricato da entrevista ao "L'Aurore", que revelava a existência de um cenário de ilusão em S. Bento, que dava a Salazar a ideia de que ainda era chefe do governo, com a participação teatral de alguns ministros. Agora, a tragicomédia chegara ao fim.

No que aos portugueses verdadeiramente interessava, o “caetanismo” mostrara, nesse período, ter atingido o seu limite da credibilidade, em termos de abertura política. Uma crise académica séria atravessara o país. As eleições de 1969 haviam constituído uma enorme farsa, a política colonial mostrava-se, definitivamente, como o eixo cristalizador de um regime em que a repressão e a censura se acentuavam de novo. Sá Carneiro e a "ala liberal" iam perdendo as esperanças nas virtudes da propalada "primavera política".

Menos de quatro anos depois daquele dia da morte física de Salazar, os militares de 1974, diferentes dos que, depois de 1926, o haviam erigido em ditador, iriam pôr termo ao que restava do salazarismo.

Desde então, Salazar transformou-se numa simples curiosidade histórica. Revindicado hoje por patéticos saudosistas, talvez venha a propósito lembrar que a única vez que se sujeitou a sufrágio - e foi eleito - havia sido durante a vilipendiada Primeira República. 

Hoje, o “Expresso” anuncia que vão fazer um museu a Salazar, em Santa Comba Dão, perto do Vimieiro, onde nasceu. Que isso faça bom proveito aos tristes admiradores de um regime que censurou, perseguiu, prendeu, torturou e matou, durante décadas, para quantos não sabem ou não querem saber. As “fake news” bem podem tentar transformá-lo num santo, mas a verdade ninguém a pode apagar da História.

Alguém poder hoje fazer um mostruário público sobre essa sinistra personagem é um gesto de tolerância que a democracia se pode dar ao luxo de permitir.

sexta-feira, julho 26, 2019

Companheiros de jornada


Em conversa com um amigo, durante um longo voo intercontinental, veio ontem a baila a hipótese, aparentemente gorada, de, em Espanha, o PSOE poder abrir a porta do governo ao Podemos, através de uma coligação. E, claro!, veio logo à colação a questão do Bloco ou do PCP poderem vir a ter responsabilidades governativas, em futura aliança com o PS, depois do “estágio” que foi a Geringonça.

Para aquele meu amigo, é impensável, em Portugal, que um chefe de Estado possa admitir que partidos que se opõem à União Europeia e à Nato, e que manifestam uma constante hostilidade à propriedade privada, possam ser consagrados em soluções governativas. E lembrou os “limites” que Cavaco Silva colocou, aquando da formação do atual governo, há quatro anos. Condicionantes essas com que ele então concordou.

Não sou da mesma opinião daquele meu amigo. Simplificando: se um partido pode eleger deputados, pode formar governos. Onde é que a lei - e eu faço parte de quantos acham que a lei é o quadro definidor dos limites no funcionamento das sociedades - diz o contrário? Por isso, no plano normativo, nada impede que comunistas e bloquistas venham a ser governantes. 

Eu diria mesmo mais: se, um dia, numa eleição, o país decidisse dar a esses dois partidos uma maioria qualificada que lhes permitisse mudar a Constituição, forçar a saída da União Europeia, voltar as costas às alianças tradicionais do país e alterar o regime social vigente, que poderia eu fazer, senão aceitar essa escolha? Eu acredito na democracia, mais do que na minha vontade.

O meu amigo olhou para mim, com ar espantado, pensando que o que eu dizia era efeito dos dois copos do Rioja (o Ribera que nos fora oferecido, embora com bom nariz, era um pouco ácido, e tinha um fim de boca agressivo): “Mas então você acha bem que o Bloco ou o PCP entrem para o governo?”

A minha resposta desarmou-o: “Eu? Nem pensar! Sou 1000% contra uma entrada do PCP ou do Bloco num governo com o PS! O que quis dizer é que, por princípio, eles não têm um qualquer “capitis diminutio” constitucional e que, por isso, temos de respeitar em pleno os seus direitos. Eu é que me reservo o meu direito de, como cidadão, ter as minhas escolhas sobre os “companheiros de jornada”. E enquanto esses partidos continuarem a defender opções que conflituam com as minhas, não os quero como parceiros num governo, embora não me choque vê-los numa maioria política parlamentar, apoiando, pontualmente, medidas específicas. Apenas isto!”

As “Selecciones”


Há pouco, a fazer horas neste aeroporto de Bogotá, no “deserto” de leitura que por aqui (não) há, decidi comprar as “Selecciones” da ”Reader's Digest". O número de agosto. Achei graça adquirir este número da edição para a América Latina, feito no México.

Cresci com as “Seleções” por muitos anos lá por casa, na sua versão brasileira (por isso, eram “Seleções” e não “Selecções”, como então se escrevia em Portugal), espreitando "pin-ups" que a publicidade caseira não comportava ainda nos seus cânones, com propaganda a frigoríficos e automóveis que não havia em Portugal. E tinha sempre, pelas suas páginas de textura sedosa, donas-de-casa loiras e de "permanente", tipo Doris Day, com camisas aos folhos e saias compridas rodadas, ao lado de cavalheiros invariavelmente elegantes, tipo Cary Grant, quase sempre de fato e chapéu ou naquilo que os brasileiros designam por "esporte fino", ao lado de crianças sorridentes e felizes nas suas bicicletas e bonecas (nunca houve muitas bolas por lá), sempre à porta de moradias com relva a descer para as alamedas dos bairros. Sorridentes e sempre brancos, claro. Era a América oficial que exportava a imagem do "way of life" de alguns.

Fui leitor assíduo de rubricas como "Meu tipo inesquecível", "Flagrantes da vida real", "Rir é o melhor remédio" (em espanhol “La risa, remedio infalible”), “Piadas de caserna" ou o "Enriqueça o seu vocabulário" - onde, pela primeira vez, devo ter pensado nas vantagens do Acordo Ortográfico. 

Nunca li, e nunca me arrependi, nenhuma das suas irritantes sínteses de romances (nesta edição que hoje comprei deapareceram), mas algumas vezes fui à procura do volume completo. 

Devo também às "Seleções" a minha hipocondria, pela reiterada inclusão de artigos sobre doenças, cuja sintomatologia tantas vezes partilhei. Já não cheguei à fase das peças sobre dietas... logo quando mais delas necessitava!

Só tarde me apercebi, ou me fizeram aperceber, da existência, em cada número das "Seleções", de três ou quatro artigos onde, com maior ou menor subtileza, se fazia a apologia de ideologias convenientes aos interesses americanos. Mas, na verdade, que importava isso, no tempo cinzento do salazarismo? Claro que as "Seleções" diziam mal dos comunistas, mas com bem maior sofisticação do que o "Diário da Manhã", o "Novidades" ou o "Diário de Notícias". E também lembravam, numero-sim-número não, belos episódios das glórias aliadas na 2ª Guerra Mundial.

Um dia, as "Seleções" aportuguesaram-se (e passaram a “Selecções”) e, pouco a pouco, foram desaparecendo do nosso horizonte de leitura, concorrendo com outras publicações mais apelativas. Às vezes, antes de entrar num comboio, ainda comprava a revista, mais por curiosidade do que por interesse. A "Reader's Digest" passou então a ser mais famosa por livros e discos que editava e que uma inventada "Marta Neves" nos propunha, em regular e personalizada epistolografia - alguns, aliás, de grande qualidade.

Há anos que já não lia as "Seleções". Minto: há tempos, numa casa de campo nortenha, encontrei exemplares das edições brasileiras, dos anos 40 e 50 do século passado, alguns já sem capa, e, confesso, diverti-me bem com algumas historietas, bem de um outro tempo. Será isto nostalgia?

quinta-feira, julho 25, 2019

Boris

Com um pouco de inteligência e sorte, Boris Johnson pode vir a fazer um brilharete. As expetativas a seu respeito são hoje tão baixas que bastará que não venha a ser o mau primeiro-ministro que muitos esperam para que logo se ouçam suspiros de alívio.

Espanha(s)

Sem me querer alongar (nada): é uma excelente notícia a quebra do possível acordo de governo entre o PSOE e o Podemos, lá por Espanha.

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...