Aquelas longas noites do Hotel Trópico, em Luanda, nos primeiros meses de 1982, eram uma verdadeira "seca". Eu sofria o choque cultural de uma mudança direta, do meu anterior posto, na organizada Noruega. para a então caótica Angola. Por quatro longos e não saudosos meses, por ali me instalei.
Pelas salas do Trópico, fui conhecendo alguns portugueses, parte deles expatriados por razões económicas, às vezes apenas por semanas ou meses, e que atenuavam a sua solidão na conversa, a ouvir música ou em jogos de cartas.
Um dos bons amigos que fiz nesse ambiente, e que só há pouco tempo voltei a reencontrar, foi o Hélder Martins, funcionário da empresa de transportes STAR. Numa dessas noites, o Hélder convenceu-me a alinhar numa mesa de sueca que se criara entre alguns clientes.
Sou, em regra, avesso a entrar em competições de qualquer natureza e, em matéria de jogos de cartas, o mais “longe” que chego é à sueca, à bisca, às copas ou à lerpa. Mas porque a única atividade lúdica alternativa que por ali havia - o visionamento, numa minúscula televisão a preto-e-branco, de alguns jogos do campeonato do mundo de futebol, que então estava a ter lugar em Espanha - se tinha entretanto esgotado, deixe-me entrar na jogataina.
No grupo, havia um homem jovial, falador, bem mais velho do que nós, de S. João da Madeira, que representava em Angola uma empresa de calçado. A meio do jogo, ao pedir uma rodada de bebidas, vi que, apontando para mim, disse para o empregado: "Ali para o senhor comandante, é uma cerveja". De facto, eu tinha dito, instantes antes, que “o que agora caía bem era uma "Cuca”!” Estranhei ser qualificado de "senhor comandante", mas nada disse. Olhei para o Hélder Martins, que sabia perfeitamente que eu trabalhava na Embaixada, mas não notei na sua cara nenhuma surpresa. Optei por não reagir e, quando ela chegou, lá bebi a cerveja.
No dia seguinte, ao almoço, perguntei ao Hélder: "Você não achou estranho que aquele tipo, ontem, me tivesse tratado por 'senhor comandante'?". O Hélder retorquiu-me que não. É que, sabendo que eu tinha feito o serviço militar, por conversas anteriores, presumiu que, nessa qualidade, eu tivesse servido na Marinha, pelo que havia deduzido que o homem de S. João da Madeira sabia disso. Expliquei-lhe que a minha "arma" era bem mais prosaica, que eu havia sido oficial de "administração militar" no Exército, onde a minha especialidade era "ação psicológica", que nunca havia sido sequer "comandante de pelotão". E rimo-nos, esquecendo o assunto.
Passou, talvez, um mês. Eu havia, entretanto, deixado de frequentar as salas de estar do Trópico com tanta frequência. Uma noite, voltei a ver por lá o homem de S. João da Madeira, que simpaticamente me saudou, ao longe.
Passou, talvez, um mês. Eu havia, entretanto, deixado de frequentar as salas de estar do Trópico com tanta frequência. Uma noite, voltei a ver por lá o homem de S. João da Madeira, que simpaticamente me saudou, ao longe.
Um dia ou dois depois, o Hélder Martins foi abordado por ele. Queria que ele me "metesse uma cunha": não tendo confiança comigo para me colocar, pessoalmente, o pedido, aproveitava a intercessão do Hélder, para, junto de mim, conseguir um "OK" para o voo da TAP para Lisboa, no dia seguinte. O avião estava cheio e "aquele seu amigo é que pode ajudar, como ninguém, a desenrascar-me o lugar", disse ele.
O Hélder surpreendeu-se. "Mas porquê ele?", perguntou. "Então, sendo ele comandante da TAP, deve poder conseguir isso, não?". "Comandante da TAP? Ele é diplomata na Embaixada de Portugal!", reagiu o Hélder. "Ai é?! É que, há tempos, vi-o à conversa com uma hospedeira da TAP, no bar do hotel, e fiquei com a ideia que ele fazia parte da tripulação, que sempre ali se aloja...".
O Hélder surpreendeu-se. "Mas porquê ele?", perguntou. "Então, sendo ele comandante da TAP, deve poder conseguir isso, não?". "Comandante da TAP? Ele é diplomata na Embaixada de Portugal!", reagiu o Hélder. "Ai é?! É que, há tempos, vi-o à conversa com uma hospedeira da TAP, no bar do hotel, e fiquei com a ideia que ele fazia parte da tripulação, que sempre ali se aloja...".
("For the record", que fique claro que tenho a certeza de que a minha conversa com a hospedeira foi casual e bem inocente, não me recordando de ter assumido nenhuma particular familiaridade com a "colega"...)
Quando viajo na TAP e ouço, pelo altifalante do avião, aquela "rassurante" mensagem com que os comandantes se dignam saudar os passageiros, a meio do voo, acontece-me frequentemente lembrar-me que também "fui", um dia, "comandante" daquela companhia...