Leio que Mikheil Saakashvili foi detido na Ucrânia, na véspera de encabeçar uma manifestação contra o presidente Petro Poroshenko, que ontem teve lugar em Kiev.
Conheci Saakashvili em 2004, ao tempo em que era presidente da Geórgia. Com os embaixadores russo, americano, francês e italiano junto da OSCE, escolhidos de entre os membros de uma delegação que visitava o país, ao final de uma tarde, fui subitamente informado de que o chefe de Estado nos convidava para jantar. Aperaltámo-nos para a função e, num comboio de viaturas com forte escolta, fomos levados pela noite para o que recordo ser uma espécie de mansão nos arredores de Tbilisi. Até hoje, por mais que tenha procurado, ainda não consegui determinar onde terá sido aquele repasto.
Lá chegados, encontrámos uma cena quase familiar. O presidente, com aquele ar um pouco rural que o carateriza, recebeu-nos, jovial, despenteado, em mangas de camisa. Havia por ali mais gente. À nossa chegada, um cavalheiro idoso e alguém de farda desapareceram por detrás de uma porta. Parecia que tínhamos caído numa reunião de clã. Até uma televisão acesa dava um ar íntimo à cena, numa sala cheia de sofás, onde inicialmente fomos instalados. Saakashvili tinha ao seu lado a mulher, uma holandesa muito bonita, que não rimava com nada com tudo aquilo. A Geórgia tinha coisas estranhas: a embaixadora que a França mandara para lá, de raízes georgianas, “went native” e tornou-se... ministra dos Negócios Estrangeiros do país.
O jantar foi surreal. Ao meu lado, ficou um grunho, gordíssimo, a quem não consegui extrair um sorriso, quanto mais uma palavra. A conversa geral começou serena, com cada um de nós a dizer umas obviedades, mais ou menos simpáticas. Porém, sem surpresas, à menção da Ossétia do Sul, logo tudo se estragou. Saakashvili envolveu-se num diálogo ácido com o embaixador russo, com pormenores que, a certo passo, nos escaparam, porque o debate derivou para russo. Creio que o nosso colega italiano era o único que dava sinais de perceber o que se estava a passar, connosco com ar de árbitros de ping-pong, alternando o olhar entre os topos da mesa. Recordo-me que foi uma noite gastronomicamente desastrosa, tendo, porém, excelentes vinhos locais e um vodka da melhor qualidade (o bom vodka não deixa impactos hepáticos excessivos). A holandesa, cuja presença naquela mesa era já de si bizarra, também “meteu a sua colherada” na conversa, com o americano a contrariá-la, aumentando a confusão. Saímos tarde e ainda hoje guardo uma foto com Saakashviki - eu de fato, como mandam as NEPs da carreira, ele numa informalidade inusitada, mas muito típica daquelas paragens. Na imagem, fica claro que a nossa diferença de alturas é imensa.
Voltei a cruzar-me com Saakashvili há pouco mais de um ano, em Kiev. Ele era então o todo poderoso governador do porto de Odessa, tendo entretanto obtido nacionalidade ucraniana, tendo-lhe sido retirada a cidadania georgiana original. Numa conferência a que então assisti, fez uma diatribe pública contra a permeabilidade do governo ucraniano à corrupção, o que logo me pareceu em aberta contradição com a confiança política do cargo que ocupava. Percebia-se que estava em rápida rota de colisão com Poroshenko. Semanas depois, seria demitido.
Em Setembro deste ano, quando de novo voltei à Ucrânia, surgiu a notícia de que lhe tinha sido retirada a nacionalidade ucraniana, o que o deixava com o estranho estatuto de apátrida. Circulava a informação de que tinha, entretanto, entrado clandestinamente em território ucraniano, depois de se ter refugiado na Geórgia. A sua prisão era, ao que se dizia, iminente. Afinal não seria tão cedo. (Que será feito da bela holandesa, lembrei-me agora?). Poroshenko vai ter de o julgar, embora deva levar em conta a atenção que a comunidade internacional continua a dedicar a Saakashvili. Não conheço bem os contornos do conflito entre os dois. De comum, só lhes conheço o ódio à Rússia, o qual, pelos vistos, não é cimento suficiente para reconstruir aquela que já terá sido uma grande amizade.