Eu tinha tomado posse do cargo de secretário de Estado em 28 de outubro de 1995. E, menos de 24 horas depois, viajei com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, para o Luxemburgo, para um Conselho de Ministros “Assuntos Gerais”, sob presidência espanhola. A União Europeia estava prestes a concluir um acordo de comércio com Marrocos. Portugal era o “chato” que estava a criar problemas para a conclusão do acordo, por razões que, recordo-me, se prendiam com os interesses dos nossos industriais de conservas de atum.
A meio do Conselho de ministros europeu, a Comissão pediu para se reunir com Portugal. A responsabilidade da política comercial europeia é da Comissão, sob mandato negocial aprovado pelos ministros. “Isto vai começar! Veja o que eles querem”, disse-me Gama, já prevendo uma batalha interessante. A Espanha sabia das nossas boas relações com Marrocos e preparava-se para tentar bilateralizar o problema, convertendo-o num dissídio luso-marroquino.y
A coreografia montada naquela sala antiquada das instalações que União Europeia tem no Luxemburgo impressionaria quem não conhecesse este género de “shows”. Do lado de lá da mesa, chefiada por Manuel Marin, vice-presidente da Comissão Santer e comissário para as Relações Externas e Desenvolvimento, estava uma “invencível armada”. Eram aí uma vintena, nas duas filas de gente. Gente de Bruxelas e de Madrid. Todos nos conhecíamos, pelo menos de vista, dos corredores da Europa comunitária.
Eu ia com quatro pessoas: Clotilde Câmara Pestana, Teresa Moura, Isabel Vila Santa e alguém da nossa representação em Bruxelas, que agora não recordo. Sei que eram todas mulheres.
“Tu veux qu’on parle en français, Francisco?”. Manuel Marin, o “menino bonito” da Comissão, era um velho conhecido. Durante vários anos anteriores, tinhamo-nos encontrado um pouco por todo o mundo, dos Barbados a Bruxelas, de Brazaville a Lomé, passando pelas Maurícias e pelas Fidji. Respondi com garbo, rindo: “Si quieres, hablamos en castellano!”. O meu “portuñol” era péssimo, mas eu sabia que Marin, como comissário, só estava autorizado a falar uma das línguas de trabalho - francês ou inglês.
A conversa foi o previsível. A Europa estava à espera, há semanas, do novo governo português, para tentar flexibilizar a posição negocial até aí mantida por Lisboa. Para mim, a questão era duplamente delicada: era muito difícil a um novo governo, que ainda não tinha sequer reunido um único Conselho de Ministros, prescindir de defesas nacionais assumidas pelo governo cessante. No meu caso pessoal, que até à véspera tinha titulado, como diretor-geral adjunto dos Assuntos Europeus, essa mesma posição, fazê-lo seria dar mostras de grande incoerência.
Marin foi duro. Dramatizou a nossa responsabilidade, no caso de um falhanço de um acordo com Marrocos, sabendo que isso politicamente seria sério para nós (Portugal tem melhores relações com Marrocos do que a Espanha). Estava a tentar ajudar a presidência espanhola a fechar o dossiê. E sabia que só o podia fazer à nossa custa. (No mês seguinte, o MNE espanhol, Javier Solana, far-nos-ia a “partida” de nos deixar a sós, Jaime Gama e eu, com os marroquinos, numa sala de Bruxelas). Quis dar-lhe a ideia de que estávamos sem pressa. E recordo-me de ter acrescentado, críptico: “A seu tempo, faremos chegar à Comissão uma lista de questões que gostaríamos de ver resolvida simultaneamente ao eventual fecho deste acordo”. Era um mero “bluff” para ganhar tempo: eu não tinha rigorosamente nada na manga... O outro lado da mesa agitou-se, trocou olhares. Marin inquiriu: “Podes ser mais explícito?”. Respondi: “Eu disse ‘a seu tempo’. E ainda temos tempo”. Não tínhamos, mas precisávamos de ganhá-lo. A conversa foi breve.
O acordo com Marrocos acabou por ser assinado em meados de dezembro desse ano (seria eu próprio a assiná-lo, por Portugal). Conseguiram-se algumas pequenas coisas compensatórias, como sempre acontece nestes processos. E os marroquinos ainda tiveram de mandar um ministro a Lisboa.
Ontem, dia em que, por coincidência, António Costa estava em negociações em Marrocos, recebi a notícia de que morreu Manuel Marin, aos 68 anos. Chegou a presidente do parlamento do seu país e era uma figura respeitada nos socialistas espanhóis. Ao longo dos anos, pude constatar que era nosso amigo e tinha em atenção os interesses portugueses.
Ao saber da morte de Marin, não pude deixar de me lembrar de que, numa discoteca de uma capital africana de um país de língua francesa, de cujo nome não me quero lembrar (como diria Cervantes para um certo lugar da Mancha), tive de dançar até tarde com uma amiga que então tinha como único e persistente objetivo vir a ser convidada para tal por ele. O que aconteceu, lá para as duas da manhã. Ela deve estar triste, neste momento.