sábado, outubro 01, 2011

Rosário

Estou certo que a Rosário teria gostado do momento que os seus familiares e amigos criaram na quinta-feira, no Père Lachaise, na muito triste e emocionada despedida que muitos lhe fomos prestar.

Com o Álvaro Vasconcelos, seu marido, a Rosário de Moraes Vaz foi a espinha dorsal dessa grande aventura de modernidade no pensamento geopolítico português que constituiu o Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, cuja revista "Estratégia" ela propria dirigiu.

Lembro-me bem dos debates que tivemos no âmbito do EuroMesco, essa rede a que ela tanto se dedicou, na busca de soluções para o espaço do Mediterrâneo, o tema que sempre a fascinou. E as discussões sobre a Europa, onde estivemos bastante distantes para, mais tarde, coincidirmos muito nas nossas perspetivas.

A Rosário era uma personalidade forte, frontal, com muitas ideias e com vastas razões para as afirmar. Muito culta, atenta às questões do mundo, iluminava as discussões e revelava a sua inteligência brilhante, num "tandem" sempre criativo com a serenidade profunda do Álvaro. 

Recordo, agora com saudade, a nossa última conversa, na sua casa, aqui em Paris, ela com o seu inseparável cigarro e o seu entusiasmo transbordante. E, depois, o último dia em que brevemente falámos, no ano passado: ambos de muletas, fruto de acidentes, saídos de uma conferência sobre a Europa, na Gulbenkian de Paris. Ironizámos que estávamos ambos como o próprio projeto europeu...

sexta-feira, setembro 30, 2011

FT

Já por aqui confessei, por mais de uma ocasião, que aprecio bastante o "Financial Times", o diário financeiro britânico, um dos jornais mais bem escritos e construídos do mundo.

Um tarde de sábado, nos anos 90, em Londres, fui ao mítico e já desaparecido estádio de Wembley ver um jogo de futebol. De jeans e camisola, apanhei o metro, metido na fauna dos apoiantes das duas equipas, que, por essa hora, ainda viviam o tempo de relativo sossego que antecede as partidas. O ambiente era galhofeiro, sem agressividade, embora com muitas "bocas", a maioria num intraduzível "cockney". 

Alguns escassos viajantes liam tablóides, tipo "The Sun", "Today" ou "Daily Mail". Eu, distraído, recostei-me num banco e deliciava-me com o FT do dia. Não me tinha dado conta que, naquele ambiente, ler aquele imenso jornal cor-de-rosa era quase tão natural como ler "O Diabo" num "centro de trabalho" do PCP.

A certo ponto da viagem, dou-me conta que muitos olhares convergiam sobre mim. E algumas "bocas" também. Até que um grandalhão, vestido a rigor de apoiante de clube, me espetou o dedo no jornal e inquiriu: "Hey, pal! What the hell are those pink sheets you're reading?" A situação não era fácil. Dar explicações era descabido, recolher o jornal seria cobardia. Já havia um público para a cena. Com um sorriso amarelo, saiu-me: "Wanna see the weather forecast?". Não estava seguro de ter sido a melhor deixa, mas foi o melhor que me surgiu. Para meu imenso alívio, o grandalhão sorriu. E lá seguimos para mais uma "Cup Final". No regresso do jogo, com metade do metro zangado com o mundo, viajei prudentemente com o FT debaixo do braço.

Os sábados do FT trazem, nos dias de hoje, um imenso suplemento, para cujo título alguém, há dias, chamou a minha atenção: "How to spend it". Para sintetizar: trata-se de uma revista para quem tem dinheiro e gosto. Esse amigo dizia-me: "Não achas obsceno e provocatório um título como este, num tempo como o que atravessamos?". Tive de concordar. Mas se esse amigo lesse alguns textos do "The Spectator", como se sentiria?  

Economia e imagem

A convite dos organizadores do colóquio "Economia portuguesa: uma economia com futuro", apresentei hoje na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, uma comunicação sobre "Portugal: a sua economia e a sua imagem".

O tema foi por mim escolhido pelo facto de considerar necessário que se encare, de frente, o modo como Portugal é hoje visto no exterior, em especial tendo em atenção a fragilidade, recentemente mais evidenciada, da sua situação económico-financeira. E sobre o modo de intervir nesse contexto.

Ao longo do dia, o colóquio deu origem a debates muito interessantes e animados sobre o estado de Portugal neste tempo de crise, mas também sobre o euro e a sobre as políticas da Europa. No painel em que intervim, dedicado a "Portugal no mundo", e como bem notou a moderadora Diana Andringa, o auditório foi mais crítico e pessimista que os membros do painel, cujas opiniões foram saudavelmente contraditadas. 

A minha intervenção, para quem possa estar interessado, pode ser lida aqui.  

quinta-feira, setembro 29, 2011

Grafitti

Está no "l'air du temps" de certa intelectualidade modernaça aceitar a livre prática do "grafitti", dando-lhe dignidade de expressão artística e afirmando o dever de tolerância perante esses selváticos atentados de poluição visual. Como absolvição de todos esses atos, mostram-se escassos exemplos em que esse tipo de pintura anima, por uns meses, a fachada de alguns prédios abandonados.

O presidente da Câmara do Porto, num ato de meridiano bom senso, decidiu dar ordens à polícia municipal para tentar punir os responsáveis por estes atos. Como não podia deixar de ser, logo surgiram vozes libertárias a reclamar o direito dessa gandulagem à livre "expressão" nas paredes dos outros. Será que esses paladinos da liberdade seriam tão afirmativos se as portas das suas casas tivessem o mesmo destino das que a fotografia mostra?

quarta-feira, setembro 28, 2011

Conversa de jantar

O embaixador havia distribuído os convidados por cinco mesas. Havia de tudo: diplomatas, políticos, funcionários superiores franceses e gente do chamado "social set".

O jantar fora divertido, com conversa solta. No final, o anfitrião pediu que cada mesa indicasse, aproximadamente, em que minuto da refeição a conversa derivara para o tema Dominique Strauss-Khan. Na minha mesa, perdemos: só havíamos falado no assunto aí à chegada do primeiro quarto de hora. Outros tinham abordado o assunto cinco minutos depois de se sentarem.

O caso DSK, desde há meses, é um "prato" incontornável de qualquer jantar parisiense. 

Uma dúvida sempre se me coloca: como serão as coisas nos jantares em Roma?

BB e David

O franceses habituaram-se a interpretar BB como as iniciais de Brigitte Bardot*. Bertolt Brecht, o genial escritor e teatrólogo alemão, usou as mesmas iniciais no seu magnífico poema "Do pobre BB", que Jorge Palma cantou num álbum de 2005. E, no mesmo registo, há que lembrar BB King, esse génio do jazz que tive o privilégio de ouvir ao vivo, por mais de uma vez.

Portugal tem também o seu BB - as iniciais pelas quais fica identificado Baptista Bastos. Conheci-o pessoalmente há quase 40 anos, quando, pelas tardes, nos encontrávamos num café e bar no topo da então livraria Opinião, na rua da Trindade - eu saído do meu emprego na Caixa, ao Calhariz, ele acabado o seu trabalho no "Diário Popular", também por ali perto. Esse era então um espaço aberto de conversa onde eu me imiscuíra, por via de amigos comuns. Por lá paravam jornalistas, escritores e outros que, como eu, eram meros espetadores atentos da vida intelectual de Lisboa. Com a sua voz bem caraterística, não abandonando a marca pessoal que é o seu laço, Baptista Bastos confirmava, em pessoa, a frontalidade opinativa a que sempre nos viria a habituar no futuro. Passei a lê-lo com regularidade e, depois sempre à distância, a apreciar o seu sentido crítico e a sua postura ética, muito em especial a independência com que sempre preserva a amizade por cima das ideologias. E, também, a sua rara maestria no domínio do português, uma "arma" que utiliza como poucos poucos e cuja "bala" mordaz tem criado engulhos em muitos.

A que propósito lembro BB agora? Porque acabo de ler a magnífica crónica que ele hoje publica no "Diário de Notícias", sobre esse outro grande senhor da literatura portuguesa, que se chamou David Mourão-Ferreira.

Nestes dias de uma "Lisboa contada pelos dedos", em que há cada vez mais "Gaivotas em terra", haveria grande proveito em que se lesse e relesse esses dois grandes escritores.

* que hoje faz 77 anos

terça-feira, setembro 27, 2011

Lula

A (minha má) foto é de Luíz Inácio Lula da Silva, doutor "honoris causa" pelo Institut d'Études Politiques - SciencesPo, em Paris, ontem, ao final da tarde.

Posso estar enganado, mas creio que na história de SciencesPo nunca terá havido um doutoramento mais animado, com um público jovem tão entusiasta, a assistir a uma "lição" tão extraordinária como a que foi dada pelo antigo presidente brasileiro.

Lula foi igual a si próprio. Leu um discurso mas, além disso, fez um brilhante improviso. Já ouvi muitas vezes Lula falar em público. Nunca encontrei um líder político que, com tanta genuinidade e inteligência, soubesse adaptar tão bem as suas palavras aos diferentes auditórios, sempre com sucesso.

A certo passo, Lula falou do tempo em que os economistas do "Norte" davam conselhos "paternais" ao Brasil e a outros países do "Sul", sobre a melhor forma de conduzirem as suas economias. E Lula perguntou: que diabo aconteceu a esses "sábios"? Onde é que eles se esconderam, agora que o "Norte" tanto precisaria das suas soluções?

Lula da Silva, no termo da sua intervenção, fez um forte elogio da política. Chamou a juventude a interessar-se pela vida cívica, a não desistir, a superar os maus momentos e as derrotas: "Quando aqui, em SciencesPo, necessitarem de alguém para dar uma aula sobre derrotas políticas, chamem-me! Andei 20 anos a perder eleições. Em política, aprende-se muito com as derrotas, podem crer."

Lisbonne

Edith Bricogne é a autora das fotografias e Fernando Pessoa escreveu dois belos textos que as Editions Chandeigne acabam de editar, num belíssimo livro - um presente que todos poderemos dar aos nossos amigos franceses, criando uma garantida angústia àqueles que eventualmente ainda não conheçam Lisboa.

segunda-feira, setembro 26, 2011

Incertezas

A conversa, à minha frente, entre dois amigos, ia animada, numa esplanada parisiense. Nesse final de tarde do passado sábado, tinha-lhes dado para a política.

Eu estava a ser um espetador algo distante do diálogo. Para imenso espanto deles (e, vá lá!, até de mim próprio), havia decidido não me imiscuir na conversa, enquanto falassem desses temas. Expliquei, simplesmente, que, como era fim de semana, tentava não me incomodar. 

Sem sucesso, tinha puxado a conversa para o magnífico resultado, na véspera, do Porto-Benfica, para a subida do PSG no campeonato francês e para o "hat-trick" do Ronaldo, acabado de ocorrer. Mas ninguém ia em futebóis. Procurei suscitar a questão da Cesária Évora, do novo CD de Sérgio Godinho e chamei a atenção para que, se não se apressassem, já não haveria bilhetes para verem o Aznavour, no "Olympia". Também não consegui dar música à conversa. Em desespero, apelando já a sentimentos de outra natureza, puxei, pela enésima vez, o tema Strauss-Kahn. E, no mesmo registo, até cheguei a atirar para a mesa conversas privadas transalpinas. Nada, não descolavam do tema.

Um dos amigos, que anda mais cético, dizia já não acreditar em nada. O outro, afirmativo, tinha certas coisas por adquiridas, de "fonte limpa". A certo passo, já nem sei bem a propósito de quê, disse:

- Tenho a certeza absoluta!

Resposta pronta do outro:

- Certezas absolutas?! Tu estás é doido! Hoje só há incertezas absolutas!

De facto.

Fausto

Mais uma boa notícia para a música portuguesa: Fausto concluiu a gravação do duplo álbum que completará a trilogia que inclui "Por este rio acima" e "Crónicas da terra ardente", o qual acompanha as viagens terrestres dos portugueses por África.

Como é que soube, quando esta notícia não foi ainda publicada? Disse-me ontem um velho amigo chamado Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias ou, simplesmente, Fausto.

domingo, setembro 25, 2011

Ouf!

Já por aqui confessei, mais de uma vez, que, embora use computadores desde há quase um quarto de século, continuo a ser um completo "nabo" em informática. E, mais do que isso, não tenho a menor intenção de aprofundar os meus conhecimentos neste domínio. Tenho muito mais que fazer, acreditem!

Por essa razão, fico completamente sem soluções em face de incidentes como os que aconteceram nas últimas 24 horas, quando um inesperado "hóspede" criou alertas negativos sobre este blogue na comunidade informática. Lá me esforcei por deitar ao "lixo" tudo quanto me passou pela cabeça que pudesse estar a causar o problema, quando, na realidade, um pouco mais de atenção poderia ter-me conduzido, com grande facilidade, para a origem da questão.

Com tudo resolvido em algumas (longas) horas, com a "Google" a portar-se bem (terá sido porque aqui a elogiei, há dias?), devo dizer que esta experiência me fez refletir um pouco sobre o mundo informático, sobre os nossos interlocutores apenas virtuais nesse mundo e, em especial, sobre a nossa dependência dessa "nuvem" que sobre nós paira e à qual entregamos os nossos arquivos, as nossas relações, as nossas fotografias e os nossos textos. 

Confesso que, nas últimas 24 horas, aprendi uma lição: converti-me às vantagens do "back-up".

Uma nota final para voltar a agradecer a ajuda de quantos - e foram muitos! - se interessaram pelo problema que afetou o blogue. Confirmaram que pode haver uma rede de solidariedade entre quem se conhece menos bem mas é "consócio" nessa tal "nuvem". Bem hajam!

Bancas

Leio no "Público" este título alarmante: "Banca nacional já perdeu 46% do seu valor em bolsa este ano".

Leio no "Journal de Dimanche": "La dégringolade des trois principaux établissements français" - desde 1 de julho, BNP Parisbas perdeu 53% do seu valor em bolsa, Société Générale 61% e Crédit Agricole 58%.

Os amigos e as ocasiões

Há duas atitudes comuns, entre outras possíveis, quando dois amigos nossos se incompatibilizam.

Uma delas é optar abertamente pelas razões de um deles, fazendo-as totalmente nossas e daí retirando as necessárias e radicais consequências no tocante à relação com o outro. Quase sempre, é isso que cada um, expressa ou implicitamente, nos pede.

Outra é procurar preservar ambos os vínculos de amizade, não obstante se poder reconhecer que um desses amigos até pode ter mais razão do que o outro. Nesse caso, emerge o risco simétrico desse amigo, o tal que tem mais razão, poder não entender que continuemos a nossa relação com quem a tem menos. 

Alguns acharão que esta segunda atitude é uma contemporização frágil, quiçá reveladora de pusilanimidade. Não vejo as coisas assim. As amizades criadas na vida são valores "bilaterais" (para usar um termo diplomático), que devem situar-se, tanto quanto possível, acima dos circunstancialismos exteriores. Bem basta aturarmos as razões da nossa consciência, quanto mais "importarmos" as razões dos outros. A menos que estejamos perante a ultrapassagem de fronteiras éticas - onde a nossa própria consideração pessoal por um dos amigos poderia ter tendência a esbater-se.

Mas a que proposito vem isto? De nada, deve ser do belo sol deste domingo de outono em Paris.

Explicação

Alguns leitores estranharão o facto de terem desaparecido, de alguns posts recentes, links que lá existiam, dando acesso a temas musicais. A verdade é que algum desses links comportaria um "conteúdo malicioso", o que fez com que este blogue tivesse estado sob "suspeita" informática durante algumas horas.

Para matar o mal pela raíz, eliminei todos esses links e o blogue parece, para alguns leitores, ter voltado à sua normalidade. Do mesmo modo, eliminei vários "contadores", o mecanismo que nota os blogues que citam o "Duas ou três coisas" e mais algumas coisas mais. Já reportei o assunto à gestão dos blogues e espero que, dentro de algum tempo, tudo fique clarificado.

O meu obrigado a todos os amigos que se têm preocupado com esta situação. 

sábado, setembro 24, 2011

Filipe Pinto-Ribeiro

Para encerrar da melhor forma a onda musical, bem diversificada, que "se abateu" sobre este blogue nos últimos dias, regista-se agora o magnífico espetáculo que ontem teve lugar na Embaixada de Portugal em Paris. 

Filipe Pinto-Ribeiro, um dos grandes pianistas portugueses contemporâneos, apresentou, a uma sala a abarrotar, um conjunto de peças de música europeia, naquela que representou a nossa contribuição para o ciclo anual de eventos organizados pelos centros culturais europeus em Paris.

Foi uma das mais belas jornadas da série de espetáculos musicais "Entre pautas/entre partitions" que, sob a égide do Instituto Camões, temos vindo a organizar na residência portuguesa em Paris. Para quem queira a eles assistir no futuro, sugiro que esteja atento ao que se publica aqui. Uma quota de convites estará disponível para quem se increva pela internet.

E, quem cá não esteve ontem, pode saber algo mais sobre Filipe Pinto-Ribeiro aqui.

Sodade

Cesária Évora sofreu um AVC e está internada aqui em Paris. O "Le Monde" dedica-lhe, na sua edição de hoje, uma merecida página.

A certo ponto do texto, a jornalista autora do texto destaca o papel de José da Silva, o empresário da cantora, que, pela primeira vez, "no final dos anos 80, em viagem a Lisboa, encontrou Cesária num bar", lançando a partir daí a sua carreira internacional. Mas a jornalista não se fica por aqui: ao notar o modo chocado como José da Silva se viu agora obrigado a relatar à imprensa que as condições de saúde de Cesária lhe não permitem continuar a cantar em público, assinala que foi este empresário "quem a fez sair fora das suas fronteiras lusitanas e colonialistas". 

Caramba! "Colonialistas"? No final dos anos 80, quando Cabo Verde é independente desde 1975? Para além da iliteracia político-cultural - outros diriam, simplesmente, estupidez - que esta referência traduz, o lapso é bem revelador da persistência, num certo imaginário cultural europeu, de restos de uma lusofobia que a duração temporal do nosso colonialismo, para além da de outros congéneres europeus, acabou por enraizar. Há um preço que, acreditem!, continuamos ainda a pagar por isso, no "retrato" externo do nosso país. Para a semana, vou também referir esse facto, num seminário em Lisboa onde abordarei o tema bem atual da imagem de Portugal e da sua economia.

Cesária Évora, na sua genialidade, abordou em canção a questão dos caboverdeanos que foram trabalhar para S. Tomé e Príncipe e que por lá ficaram. Esta era uma realidade até então muito pouco conhecida em Portugal.

Eu havia-me defrontado com ela em inícios de 1976. Estava de visita a S. Tomé, enviado por Lisboa, para tentar resolver uma greve dos professores cooperantes que Portugal para aí tinha destacado. Um dia, em conversa com uma empregada da residência do nosso embaixador, a senhora revelou-me que era caboverdeana e que estava há muito tempo em S. Tomé, para onde o marido, já falecido, tinha vindo trabalhar nas roças do cacau. Perguntei-lhe se, entretanto, já tinha voltado à sua terra ou se tinha intenção de fazê-lo definitivamente, agora que o seu país era independente. Nunca esqueci o olhar intensamente triste com que me disse: "Ó doutor? Como? Nunca tive dinheiro nem nunca vou ter para voltar a ver Cabo Verde!". Foi nesse instante que acordei para o drama imenso dessa gente, expatriada dentro do Portugal da ditadura, para quem - para essas pessoas, sim! - o sistema colonial não morreu com o 25 de abril.

Cesária Évora cantou, para sempre, como ninguém, em morna num melódico crioulo, a tragédia dessa sua gente que foi para S. Tomé, no inesquecível "Sodade". 

José Niza (1938-2011)

Que venha o sol o vinho e as flores
Marés, canções de todas as cores
Guerras esquecidas por amores;

Que venham já trazendo abraços

Vistam sorrisos de palhaços
Esqueçam tristezas e cansaços;

Que tragam todos os festejos

E ninguém se esqueça de beijos
Que tragam pendas de alegria
E a festa dure até ser dia;

Que não se privem nas despesas

Afastem todas as tristezas
Pão vinho e rosas sobre as mesas;
Que tragam cobertores ou mantas
E o vinho escorra p'las gargantas
E a festa dure até às tantas;

Que venham todos de vontade

Sem se lembrarem de saudade
Venham os novos e os velhos
Mas que nenhum me dê conselhos!

Que venham todos de vontade

Sem se lembrarem de saudade
Venham os novos e os velhos
Mas que nenhum me dê conselhos! 

Na morte de José Niza, um homem solidário e sonhador, aqui fica, em homenagem, a sua "Festa da vida", a letra que construiu para a canção, com música de José Calvário, com que Carlos Mendes ganhou o Festival RTP da Canção, em 1972.

sexta-feira, setembro 23, 2011

Madeira

Não deve haver português com internet que, nestes últimos dias, não tenha recebido uma anedota, um poster ou outra graça alusiva à Madeira e à respetiva gestão financeira.

Às vezes pergunto-me como é que os estrangeiros olham para esta nossa propensão para aliviar as dores pelo humor. Uma coisa me parece bem clara: não convirá que a "troika" se convença de que, lá porque afivelamos um sorriso amarelo, andamos felizes...

Protocolo

Estive ontem numa palestra proferida pelo antigo chefe do governo espanhol, José Maria Aznar. 

O "presidente del Gobierno" foi uma figura marcante da vida política espanhola, titulando oito anos consecutivos de liderança. A Espanha vivia então os tempos de uma economia de sucesso, com uma forte influência na vida europeia. A isso correspondeu um momento de uma nova afirmação internacional de Madrid, com algumas cambiantes no próprio perfil externo do país, de que a mais notória terá sido o forte alinhamento político com os EUA, a anteceder a respetiva intervenção no Iraque, em 2003.

Uma momentânea hesitação ocorrida na definição do lugar de Aznar, na mesa onde ontem se sentavam os participantes no debate, trouxe-me à memória uma imagem que revela bem como o protocolo pode ter uma importância decisiva na vida política.

Se olharem para a fotografia acima, todos identificarão os quatro chefes de governo que, em 17 de março de 2003, estiveram na chamada "cimeira dos Açores". Não obstante serem quatro, fica claro que a centralidade da imagem está focada em George W. Bush, que tem à sua direita Tony Blair e, à esquerda, José Maria Aznar, sobre cujo ombro Bush colocava uma amigável mão. O chefe do executivo português, embora anfitrião da cimeira, surge num extremo, claramente secundarizado na imagem de grupo.

Curiosamente, as coisas não eram assim... segundos antes desta fotografia. No início da cena, Aznar estava colocado à direita de Durão Barroso, o que conferia ao chefe do executivo português um lugar central, e natural, num ato que decorria em solo português. Porém, quem tiver observado o filme da época terá verificado que o chefe do executivo espanhol, com o instinto de quem percebe que as fotos têm uma relevância histórica forte, abandonou a companhia do seu colega português e foi colocar-se ao lado do titular da Casa Branca. E, na sua perspetiva, teve toda a razão para o fazer. A prova é que grande parte das fotografias que surgiram posteriormente na imprensa internacional excluíram o então chefe do executivo português (basta ir ao "Google images" para testar isso).

As coreografias protocolares são, por vezes, da maior importância política.

quinta-feira, setembro 22, 2011

Carreiras

Há pouco mais de dois anos, publiquei por aqui, num post, uma história verdadeira. Hoje, apetece-me repeti-la:

Um dia, na segunda década* dos anos 70, a Embaixada de Portugal em Londres recebeu a visita de um militar de Abril, membro do Conselho da Revolução, homem muito estimável, que deixou uma rara imagem de educação, elegância e bom-senso na sociedade política de então.

Como se impunha, o embaixador ofereceu-lhe uma refeição. O repasto correu de forma simpática, na magnífica sala de jantar ornada de pinturas, daquela que é, sem sombra de dúvidas, uma das mais belas residências que Portugal tem pelo mundo.

Num determinado momento da conversa, o nosso militar deixou cair uma confissão: "Vou contar-lhe um segredo, senhor embaixador: um dos meus maiores sonhos foi sempre poder vir a ser, um dia, embaixador de Portugal em Londres". Os tempos políticos, à época, não eram já muito propícios a poder garantir, de mão beijada, sinecuras a quem não possuía experiência e qualificações profissionais adequadas à função. Mas nunca fiando...

E, por essa razão, e perante o silêncio protocolar do embaixador, o militar não ficou sem resposta. Um jovem diplomata presente, homem do mundo, cuja inteligência e arte voltariam, no futuro, a colocar Londres no seu destino, não resistiu e retorquiu: "Tem graça, senhor major. No meu caso, é precisamente o contrário: sempre tive como ambição de vida ser comandante da Região Militar Norte"...

O major, inteligente e perspicaz, entendeu o recado. E mudou de conversa. 

* Ver os comentários

RLG

Embora, com toda a certeza, Sérgio Godinho não tenho disso conhecimento, existe, bem no norte do Brasil, um seu clube de fãs, sob a enigmática sigla RLG, que vim a descobrir significar "Rosário loves Godinho".

Durante todo tempo em que vivi naquele país, recebi dessa agremiação, com elevada frequência, insistentes manifestações de apreço pelo trabalho daquele nosso cantor. Isso voltou a acontecer agora, nas últimas horas, com uma comunicação informática de onde ressoa a estranheza pelo facto de não ter aqui sido dada nota da saída de um novo álbum do cantor, com o nome de "Mútuo consentimento".

Aqui fica a minha mea culpa.

PS - E hoje mesmo, PMP, chegou-me o CD

Bandas

Dado o inusitado espanto que provocou na nossa comunidade de comentadores o facto de eu gostar bastante dos REM, e para que não restem dúvidas sobre o ecletismo dos meus gostos musicais, deixo um exemplo de uma outra banda, igualmente clássica para a nossa geração, que também recolhe a minha elevada preferência: conjunto António Mafra!

Palma

Para compensar o post anterior, anuncia-se, para nossa alegria, um novo Jorge Palma, o seu novo álbum "Com todo respeito".

quarta-feira, setembro 21, 2011

O fim dos REM

Há dias tristes na história da música. Hoje é um deles. Foi anunciada a separação do REM.

Júlio Resende (1917-2011)

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A democracia e a Europa

Ontem, um velho e avisado amigo francês comentava comigo o facto de apenas cinco dos 17 membros da zona euro terem, até ao momento, ratificado o programa de ajuda à Grécia aprovado no dia 21 de julho - faz hoje precisamente dois meses! A maioria desses Estados argumenta com a lentidão dos processos decisórios internos, isto é, com a necessidade de serem respeitados os procedimentos democráticos de cada país.

Com um ar irónico, atrás do qual se escondia uma premonição lúgubre, esse meu amigo concluía: "Quem havia de dizer que haveria de ser a democracia a acabar com a Europa". Sem, por ora, partilhar necessariamente a funesta previsão subjacente ao raciocínio, não me contive e acrescentei: "Tendo a democracia nascido na Grécia..."

segunda-feira, setembro 19, 2011

O MES

Acabo de receber uma "convocatória" para um almoço em Lisboa, a 12 de novembro. Nessa data se celebrarão 30 anos passados sobre um jantar com que um partido decidiu encerrar a sua (já então muito escassa) atividade. Comemorar um jantar com um almoço é uma saudável redundância gastronómica.

Assim, e se tudo correr como espero, lá irei de Paris a Lisboa, para estar presente nesse repasto (escolham um sítio de decente amesendação, por favor!) onde muitos nos encontraremos, sem nostalgias nem proclamações, para lembrar essa "improvável aventura" a que, para sempre, ligámos a nossa juventude e a nossa esperança.

É claro que não estaremos todos por lá: alguns já se foram, outros saíram para outros destinos, uns poucos, ainda, deixaram-se tomar pela indiferença. Mas seremos mais do que os suficientes para nos revermos nessa ideia que continua a unir-nos, muito para além das conjunturas e dos percursos que cada um decidiu seguir.

O partido de que acima falei, o MES, o "Movimento da Esquerda Socialista" (ironizava, ao tempo, um amigo de outras ondas políticas: "mas há uma direita socialista?"), juntou muito boa gente nesses tempos pós-abril, pessoas vindas das lutas académicas, do sindicalismo menos alinhado, do catolicismo inquieto. Gente que não se revia noutras linhas então dominantes no mercado das opções políticas. Com o tempo, cada um de nós escolheu o seu caminho, embora a grande maioria quase sempre para o mesmo lado. Alguns revemo-nos de tempos a tempos, outros quase nunca se encontram. Mas, para sempre, somos todos, com imenso orgulho, "do MES".

Um dia, ao tempo do primeiro governo Guterres, o então primeiro-ministro, numa viagem de trabalho ao estrangeiro, em que o Augusto Mateus e eu o acompanhávamos, perguntou: "Neste governo, há uns seis ou sete antigos militantes do MES, não é?". Olhei para o Augusto e respondi, sem ter a certeza exata do que afirmava: "Um pouco mais, julgo que somos aí uns 14". António Guterres olhou para nós, verdadeiramente surpreendido. Nunca se havia dado conta que, em pouco mais de 40 ministros e secretários de Estado havia essa elevada percentagem de antigos membros do MES. Creio que, por um segundo, deve ter pensado que convivia com uma eventual "quinta coluna". O que estaria bem longe da verdade.

A inexorável lógica quantitativa do voto nunca foi o forte do MES. Como alguém diria, mais tarde, o nosso voto era um "voto de qualidade" ou a expressão de uma "imensa minoria". Em 1975, nas primeiras eleições, para a assembleia constituinte, no auge da sua expressão política, as urnas conferiram ao MES uns impressivos 1,02% de votos, o que conduziu um seu dirigente a uma declaração que ficou histórica: "Com esta votação, só temos condições para crescer...". Nesses tempos de façanhudos dirigentes políticos, cheios de pronunciamentos de rotunda gravidade, o MES teve sempre muito poucos votos mas imenso humor.

O rumor dos claustros

O embaixador errava, por aqueles dias, pelos corredores das Necessidades. Pelo vigor da passada, pelo modo confiante como observava à sua volta, era patente que estava ungido da determinação daqueles a quem, ao virar da esquina do futuro próximo, iriam ser atribuídas novas e importantes responsabilidades. Os contínuos já o olhavam de uma forma mais respeitosa, os jovens adidos com os quais se cruzava baixavam a cabeça, num reverencial temor, ficando a segredar murmúrios em torno do seu nome. Ele era, nesses dias de mudança, o objecto privilegiado do chamado "rumor dos claustros" - uma vetusta forma de boataria diplomática que, em casos limite, chega quase a ser constitutiva de direitos.

Forte das bençãos do destino que inexoravelmente se aproximava, faltando apenas o despiciendo detalhe do convite, mas já com a segurança dos putativos eleitos, prenhe de confiança que contactos recentes só tinham adubado, abriu a porta de um determinado gabinete e, não podendo conter a exploração do sucesso que aí vinha, comentou, para uma funcionária, pessoa tida por bem informada, dado o seu lugar na geografia funcional da casa, ciente de a ir ver ecoar as suas expectativas:

- Então!? Fala-se por aí muito no meu nome, não é?!

A senhora, uma distinta servidora da casa, já vira passar muitos mundos, das glórias aos ocasos, testemunhara a chegada e a partida de várias ambições, olhava já para tudo aquilo com uma relativização construída num sereno bom-senso. Pelo que, arvorando um indefinível sorriso, respondeu ao seu interlocutor:

- Falava, senhor embaixador, falava! Agora, esta semana, já se fala noutros nomes...

domingo, setembro 18, 2011

Os mercados


A televisão trouxe, há pouco, a imagem sorridente de um "trader" da City londrina que terá provocado um imenso buraco financeiro ao banco suíço UBS. Ainda recordo uma história, que ficou famosa, de um idêntico especialista que, creio que em Singapura, fez, há alguns anos, uma falcatrua de grande dimensão. 

Devo dizer que o que me espanta mesmo é como estas coisas não acontecem mais vezes, com estes "jongleurs" do dinheiro alheio, que passam o tempo a olhar para monitores e a dar ordens de compra e venda, jogando diariamente com fortunas que vão muito para além daquilo que qualquer mortal pode ambicionar ganhar numa vida.

Há uns anos, em Londres, um amigo levou-me a ver uma dessas salas atulhadas de ecrans, que existem por toda a City. Espantou-me a baixa idade dos operadores desse mercado virtual, cuja lógica de funcionamento, confesso, apenas percebi "pela rama". Mas ficou-me a ideia de que a exigência física e psíquica desse tipo de ambientes provoca um elevado desgaste, o que justifica que só jovens se possam ocupar dessas tarefas. Pelas noites dos "pubs" londrinos, via-se depois essa gente que se divertia, que iria dormir as escassas horas que a sua idade permitia, antes de regressar, de novo, ao seu intenso e exigente quotidiano.

Há uns meses, aqui em Paris, estive presente num encontro fechado entre entidades do setor oficial português e um grupo de umas dezenas de "traders" parisienses. Eram eles, na versão francesa, os famosos "mercados", contra os quais todos somos tentados a protestar, mas cuja filosofia de funcionamento é hoje a incontornável base económica das nossas sociedades.

Olhei bem para eles (e elas): era jovens entre os 25 a 35 anos, modernos, vestidos "business casual", que ouviam, com displicente atenção, algumas explicações que, tudo o indicava, lhes entravam por um ouvido e lhes saíam pelo outro. É que eles estavam-se claramente "nas tintas" para os pequenos esforços de melhorias na nossa economia que lhe eram anunciados, para as ligeiras reversões de tendência negativa que procurávamos potenciar, para as expetativas de futuro cuja importância tentávamos destacar. Nós éramos um país sob elevada desconfiança, com muito escasso crescimento, com indicadores que só um impensável ato de fé ou de improvável boa vontade lhes poderia sugerir como favorável.

Eles, os "mercados", que mal sabem onde é Portugal, que desconhecem olimpicamente que o chá que bebem chegou à Europa pelas rotas dos descobrimentos, que de portugueses só conhecem as "concierges", algum colega tresmalhado ou o Cristiano Ronaldo, por ali estavam num visível "frete" que os bancos e as entidades financeiras de que dependiam lhes haviam imposto. Regressados aos descasacados locais onde trabalham, confirmariam, com toda a naturalidade, por operações maciças de venda, o alargamento dos "spreads" dos nossos "bonds" face aos congéneres teutónicos, como a lógica dos interesses que representavam exigia.

Estes "traders" - os mercados - têm como único e compreensível objetivo potenciar o lucro de quem lhes coloca os bens nas suas mãos, procurando ganhar margens e especular com os desastres alheios. Não é justo que se lhes peça qualquer laivo de ética, ou melhor, é de esperar que tenham a ética do lucro como único referente da sua vida profissional e pessoal. Com toda a sinceridade, acho que não os podemos condenar por isso: eles são apenas o produto, aliás tecnicamente bem eficaz, da prevalência do modelo liberal nas sociedades contemporâneas.

A nossa angústia, que não tem solução, é que se, no passado, eram apenas as empresas que estavam sujeitas a este "casino", agora chegou a vez dos Estados. Mas não deixa de ser ridículo que nos queixemos dos "croupiers". Mesmo que estes, uma vez por outra, metam "algum" ao bolso, como agora aconteceu. Com os diabos!: alguma vez há-de ser a vez deles...

Vinhos transmontanos

Há quem possa pensar que trazer vinhos portugueses para França é como "levar bananas para a Madeira" (embora esta ilha portuguesa, nas últimas horas, não esteja, propriamente, em odor de santidade). Eu penso que não. Os vinhos de Portugal, para além do caso especial e sem par do vinho do Porto, têm hoje casos de qualidade que pedem meças a muitos vinhos franceses. E, para além do "mercado da saudade", constituído pelos portugueses e seus descendentes que por aqui vivem, os nossos vinhos podem e devem crescer no mercado francês.

Ontem, abri as portas da Embaixada para a Confraria dos Vinhos Transmontanos, que realizou um "capítulo" em Paris, com a entronização de novos confrades (entre os quais o autor deste blogue). A região transmontana esteve presente com diversos e magníficos vinhos, para além de produtos alimentares muito diversos a cargo de um dos melhores restaurantes do norte de Portugal, o "Carvalho", de Chaves, que já aqui mereceu, no passado, a necessária referência.

Tal como já aconteceu com outras regiões do país, a Embaixada testemunhou assim uma bela jornada de divulgação da região de Trás-os-Montes.

sábado, setembro 17, 2011

A Mônica e Portugal

Há uma regular comentadora brasileira deste blogue, de seu nome Mônica (no Brasil usa-se o acento circunflexo no nome), cuja candura chega, algumas vezes, a baralhar a nossa lógica. A Mônica gosta de Portugal e assume, face a realidades que por aqui reflito, sentimentos simples e ternurentos.

Ontem, como poderão ler, a propósito do euro, a Mônica dizia-me: "Tenha um bom fim de tarde sem pensar em Portugal. Pode? Porque acho que está certo, mas fazer o quê?".

Eu agradeço imenso à Mônica o seu cuidado. Mas tenho de responder-lhe: não posso, Mônica, provavelmente o defeito é meu, talvez eu devesse "desligar", mas não consigo. Cada vez menos.

Para melhor nos tentar perceber - as pessoas como eu -, a Mônica tem de ler um grande poeta português que, infelizmente (e bem tentei!), não está ainda editado no Brasil. Chama-se Alexandre O'Neill e escreveu, por exemplo, isto*:

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

De qualquer forma, e com sinceridade, muito obrigado, Mônica!

* Já um dia por aqui publiquei isto. Mas nunca é demais.

Não há almoços grátis

Em abril de 2006, ao tempo que vivia no Brasil, fui convidado para ir falar a Harvard sobre a experiência de integração portuguesa nas instituições europeias. No almoço oferecido pela universidade, antecedendo a minha prestação, um professor canadiano perguntou-me, com uma surpreendente naturalidade, até quando Portugal conseguiria manter-se no euro.

Estávamos na ressaca do primeiro período de desregulação no seio da moeda única, com vários países, entre os quais o nosso, a excederem as barreiras macroeconómicas previstas no Pacto de estabilidade e crescimento, fixado em 1997. Portugal estava então a fazer uma tentativa, temporalmente bem sucedida, de redução do seu défice público.

Confesso que, à época, foi para mim um grande choque a pergunta do canadiano. Levei-a mesmo à conta de alguma arrogância anglo-saxónica e de uma leitura paternalista da realidade europeia. A minha resposta foi simples e muito sincera: todo o esforço que Portugal tiver que fazer para se manter na moeda única europeia será sempre muito inferior ao preço que o país terá de pagar no caso de ser obrigado a sair do euro.

Ao olhar para o debate que, em alguns sectores de Portugal, começa a gizar-se em torno da nossa pertença ao euro, dou por mim a pensar hoje exatamente aquilo que então disse em Harvard.

quinta-feira, setembro 15, 2011

Googlisboetas

Cada vez tenho mais simpatia pelo Google.

Origens

Desde há uns meses, a Renault tem como seu diretor-geral delegado, correspondente a nº 2 da empresa, mas a quem cabe a gestão executiva, o português Carlos Tavares, um reputado quadro internacional, vindo da indústria automóvel americana.

A revista económica "Challenges" dedica-lhe hoje quase duas páginas, desenhando o seu perfil e entrevistando-o sobre o que pretende vir a fazer naquela que é uma das "jóias" identitárias da indústria francesa, recentemente abalada por alguns problemas.

No passado, quando o nome de Carlos Ghosn, o PDG da Renault, era citado na "Challenges", recordo-me de aparecer uma frequente referência à sua nacionalidade brasileira. Agora, ao falar-se de Carlos Tavares, um homem que sei que tem grande orgulho nas suas origens lusitanas, nem uma palavra sobre o país e a cultura de onde é oriundo.

Curioso, não é? Tanto mais que Carlos Tavares, como bem sabemos, está longe de ser o primeiro português a trabalhar na Renault...

Euro

A declaração franco-alemã, segundo a qual o futuro da Grécia é na zona euro, reveste-se de grande significado. 

A contrario, e a olhar para o comportamento dos mercados, talvez se pudesse também dizer que o futuro da zona euro está na Grécia. 

Sem ironias, e cada vez mais, hoje somos todos gregos.

quarta-feira, setembro 14, 2011

Razão

Mário Soares olhou, um tanto surpreendido, para o homem. Não percebera o que ele queria significar ao afirmar:

- O senhor é que tinha razão. Eu não acreditei.

O português, empregado do restaurante onde ontem jantávamos, acrescentou:

- Em 1973, quando o servia num almoço por aqui, perguntei-lhe se aquilo, lá por Portugal, ia mudar. O senhor disse-me que não tardaria muito. Tinha razão. Mas, na altura, não fiquei convencido. Ando há anos para lhe dizer isto.

terça-feira, setembro 13, 2011

Richard Hamilton (1922-2011)

Lágrima "pop" por Hamilton.

Ouvi bem?

Leio na imprensa, nesta madrugada, que o comissário europeu de nacionalidade alemã teria sugerido que as bandeiras dos países membros endividados fossem colocadas a meia-haste. 

Independentemente de outras razões bem ponderosas que justificariam que certos países mantivessem a sua bandeira a meia haste, pode presumir-se que a sugestão possa ter efeitos retroativos - isto é, que assim se recorde todos os países que, em 2003, violaram os limites do défice público previstos no "pacto de estabilidade e crescimento" e que, desta forma, iniciaram o processo de fragilização de todo o sistema.

segunda-feira, setembro 12, 2011

Memória


Era uma senhora de 67 anos. Fui-lhe apresentado no sábado à noite, na baixa Normandia. 

Disse-lhe: "Lembro-me de si a passear de motocicleta, em Clermont-Ferrand". 

"Mas eu nunca vivi em Clermont-Ferrand!", respondeu-me, amável. 

"Pois não! Mas passeou por lá, de motocicleta. Ou não?" 

Reação, alguns segundos depois: "Ah! no filme?!" e fez um largo sorriso: "Que simpático! Ainda se lembra?" 

Era Marie-Christine Barrault, que tinha acabado de declamar uma bela seleção de textos, a ilustrar a peça musical "Carnaval des Animaux", de Saint-Saenz, num magnífico festival cultural, numa zona rural, perto de Alençon.

Em 1969, no seu primeiro filme, aos 25 anos, protagonizou uma cena inesquecível do cinema da "Nouvelle Vague" francesa, o "Ma nuit chez Maud". Depois disso, teve uma carreira muito diversa. Repetiu Rohmer, por exemplo, no delicioso "L'amour l'après-midi" (que inspirou a frase de um amigo meu: "mais vale à tarde do que nunca!"), fez o já histórico "Cousin, cousine", esteve no "Stardust Memories", de Woody Allen, e até em "Le soulier de satin", de Manoel de Oliveira.

Foi um prazer cruzar a memória com a vida, ainda que cinematograficamente virtual. E lá bebi, com Marie-Christine Barrault, uma cidra normanda, saudando esses tempos.

Presenças

Colóquio, esta manhã, na prestigiosa e prestigiada École Nationale d'Administration (ENA), sobre o "triângulo de Weimar". Oradores anunciados, entre outros: Alexandre Kwasniewski, antigo presidente polaco; Hans-Dietrich Genscher, antigo MNE alemão; Tadeusz Mazowiecki, antigo PM polaco, Hubert Védrine, antigo MNE francês, Hanna Suchoka, antiga PM polaca. Nenhum destes oradores apareceu.

Onde é que eu já vi isto?

sábado, setembro 10, 2011

11 de setembro

Nestes que foram os dez anos passados sobre o 11 de setembro, e porque vivi então a data em Nova Iorque, quando aí era embaixador português junto da ONU, fui chamado a dar testemunhos em diversos jornais, rádios e televisões. 

Não procurei ser original, até porque há muito que sedimentei aquilo que penso sobre o que se passou nessa data e no que se lhe sucedeu.  

Correndo o risco de ser repetitivo, e para quem possa estar interessado, deixo "links" para três textos: aqui, ali e acolá. Hoje, escrevi no "Correio da Manhã" isto.

Mas é isto é o que eu gosto de recordar de Nova Iorque, com um abraço aos amigos que por lá deixei.

sexta-feira, setembro 09, 2011

Encontro

- Já não se lembra de mim?! Pudera! Com a vida que tem...

Era um homem pequeno, magro, de olhar penetrante, tenso, um sorriso que não era mais que um esgar. Tinha-se aproximado pela rua, aos zigzags, e agora, no passeio, travava-me o passo.

Costumo ter boa memória visual, mas, por mais que me esforçasse, não me recordava dele. Podia ser que com o fluir da conversa...

- É natural que já se tenha esquecido de mim. Passou já tanto tempo. Mas eu não esqueço aquelas palavras simpáticas que, há anos, me dirigiu, sobre o meu trabalho. Ficaram-me para sempre.

Que teria eu dito? Continuava mudo, encurralado no passeio estreito, com os carros à disparada, a impedir um início de retirada. O meu esquecimento seria da idade? É que continuava sem me lembrar de nada. O que já me incomodava.

- Pois eu, depois de ter por lá andado - bons tempos! -, tive uma vida muito complicada. Traições, sabe? Não se pode confiar em ninguém.

Onde é que teria sido o "lá" onde ambos nos tínhamos, ao que parece, encontrado? Sem nomes, relatou invejas que o tinham prejudicado, perseguições de que fora vítima, uma carreira profissional arruinada. Até a família! Tudo tinha corrido mal.  Estava no desemprego.

Por essa altura, eu tinha passado aquele limiar temporal em que já me não era possível, com decência, perguntar quem ele era, onde nos conhecêramos, o que realmente fazia ou fez. O discurso do homem, culto e rico na expressão, revelava-me alguém bem preparado, mas, igualmente, uma personalidade abalada, perturbada. Continuava a acreditar que, por uma qualquer referência que acabasse por surgir, ainda ia "agarrar" a origem da figura e ligá-la a uma circunstância que me fosse comum.

Informou-me que lhe aparecera uma oportunidade para dar aulas. Começava na semana seguinte. E, algo críptico, acrescentou:

- O problema vai ser aguentar até lá.

Crendo ter vislumbrado uma escapatória, peguei na palavra, porque até então não tivera espaço para qualquer deixa, e disse-lhe que, se essa oportunidade se abria, seria apenas uma questão de tempo até pôr a sua vida em ordem. E adiantei umas platitudes de sala de espera de médico, como "o mundo dá tantas voltas" ou "sabe-se lá o dia de amanhã" ou "vai ver que tudo acabará por correr bem".

Vi, com alívio, que o meu interlocutor concordava, assentindo com a cabeça.

- Tem toda a razão, disse. Mas há-de concordar que é dificil, como no meu caso, estar sem comer quase há 24 horas. Mas vou aguentar! Não se preocupe...

Aí, fraquejei. Levei a mão à carteira e preparava-me para tirar uma nota, quando ele reagiu:

- Não, não! Nem pense nisso! Não junte uma humilhação mais àquelas por que tenho passado. Nunca perdoaria que o meu amigo ficasse com uma má impressão de mim. Posso ter fome, mas tenho a minha dignidade e, em especial, quero conservar a minha imagem. Como lhe disse, nunca esqueci as suas palavras. Basta-me isso! Eu cá aguentarei...

A cena invertera-se. Ele estóico, eu a pedir-lhe que aceitasse, dada a situação em que estava, uma simples nota para aconchegar o estómago. Não tinha nada a ver com humilhação ou dignidade, disse-lhe. Eu tinha muito gosto...

A relutância do homem começou a esbater-se. Condescendente, lá cedeu:

- Bom, se o meu amigo quer mesmo fazer-me esse favor, eu posso aceitar. Mas com uma condição! Isso é imperativo! Sem ela, não aceito! O meu amigo vai dar-me o seu endereço, para eu lhe enviar, logo que receber o primeiro salário da escola, aquilo que agora faz o favor de adiantar-me. Tenha paciência! Isso não dispenso! Nem eu aceito esmolas nem o meu amigo, pessoa que muito admiro, alguma vez seria tentado a dar-mas. Eu conheço-o!

Concordei, claro, "flattered" e aliviado com afastamento da suspeita de que eu pudesse ousar dar-lhe uma esmola. E lá lhe avancei alguns euros, acompanhados de um cartão pessoal. Sei lá porquê, senti-me aliviado. Parecia que o homem me acabara de fazer um favor. Na verdade, eu estava grato por ter recuperado a minha "liberdade", saído daquela conversa tão intensa. E lá se foi ele, rua abaixo.

Já passaram alguns meses, nunca mais tive notícias, claro. Quem seria o homem? Teria ele a menor ideia de quem eu era, antes de ter visto o meu nome no cartão?

quinta-feira, setembro 08, 2011

Apaches

É muito simpático ler, num novo blogue onde preponderam profissionais da palavra escrita, coisas simpáticas sobre este nosso espaço.

Muito obrigado ao "Forte Apache", nestes seus primeiros dias, com sinceros votos de bom trabalho na blogosfera. Nestes tempos que o bom senso aconselha a que sejam "de bonne guerre", é de esperar que possam contar com Cochise... 

Táticas

Já estou a imaginar o preço que vou pagar por este post! Mas vou arriscar.

Hoje, numa conversa, e a propósito de um filme, veio à baila a relação entre o futebol e as mulheres. E surgiu a ideia que pode haver uma clara homologia entre táticas que lhes respeitem. 

(Advirto que só deve continuar a ler este post quem saiba alguma coisa de futebol e de mulheres. Ou, para ser menos ambicioso, quem saiba alguma coisa de futebol).

No futebol, há algumas equipas que têm como típica caraterística deixarem a posse de bola ao adversário. Para os observadores menos avisados, em especial para quantos olham para as estatísticas que a televisão revela em termos quantitativos, uma equipa que demonstre elevada percentagem de posse de bola - isto é, do tempo em que a bola se mantém nos pés dos seus jogadores - revela um domínio efetivo sobre a outra equipa e, em princípio, tem mais oportunidades para ganhar o jogo. Ora a experiência mostra que, muitas vezes, o tempo de posse de bola acaba por ser um indicador bastante enganoso: não raramente, que anda muito tempo com a bola nos pés, dando ideia de dominar completamente o jogo, acaba por ser derrotado. Porquê? Porque há uma tática futebolistica que consiste em dar oportunidade à outra equipa de ter a ilusória ideia de que controla o jogo, "entragando-lhe" a gestão da partida, quando, na realidade, continua a deter os "cordelinhos" essenciais da mesma.

Mas que diabo tem isto a ver com as mulheres? Tudo. Conheço casais em que o marido parece conceder todo o espaço à sua cara-metade, em que esta gere a coreografia social de afirmação exterior do casal, num aparente desequilíbrio, que, às vezes, chega a ter laivos de algum masoquismo. Porém, uma análise mais fina e em "séries" de observação mais longas dá conta de que quem verdadeiramente controla o casal acaba por ser o homem, o qual, apagado numa aparente modéstia, e sujeito até a um "downgrading" público ostensivo, acaba, na realidade, por ser o decisivo "mastermind" da equação matrimonial. Tenho exemplos de alguns casais que funcionam neste registo e, diga-se, tenho a sensação que os homens que o assumem acabam até por se sentirem muito felizes.

Tinha eu contado isto a uma pessoa, pensando ter "descoberto a pólvora", quando ela me adianta: e o contrário? E quando são os homens quem julga controlar o jogo? Fiquei perplexo. Vou rever esta tese "tática"...

quarta-feira, setembro 07, 2011

Jornalismo televisivo

Hoje, durante a hora de almoço, "zappei" entre os telejornais da RTP e da SIC. Em cerca de 45 minutos deste exercício, apenas as palavras de Lula da Silva deixaram um leve registo de otimismo. Os telejornais portugueses, antes de chegar a sua hora gloriosa do desporto, são construídos em torno de uma agenda quase exclusivamente negativa, seja no plano nacional, seja no quadro internacional. Às vezes, a medo e a contra-ciclo, lá surge uma nota sobre uma iniciativa pontual positiva, quase sempre como contraponto a uma circunstância negativa.

É verdade que há cortes orçamentais, que os preços sobem, que há mais desemprego, que há empresas a encerrar, escolas e hospitais com problemas, ameaças de greve, incêndios, desastres nas estradas. E que, no estrangeiro, há bolsas a cair, bombas a explodir, guerras, inundações, cataclismos e outras maleitas, feitas pelo destino ou pelos homens. Mas não haverá, de facto, mais nada? 

Por que será que, quando observo telejornais da França, da Espanha, do Reino Unido ou dos Estados Unidos, onde também há crise, nunca encontro nada que se pareça com este obsessivo tropismo para a tragédia, para apenas sublinhar o que corre mal, para a criteriosa escolha, como comentadores, de aves agoirentas que apenas prenunciam dias piores? Num tempo em que as coisas são difíceis para os portugueses, não seria importante - eu sei que não se usa, mas arrisco: e patriótico - que a comunicação social ajudasse a "puxar" pela nossa auto-estima, por aquilo que corre bem, pelos efeitos positivos que se esperam dos esforços coletivos que estão a ser feitos, pelas empresas que estão a tentar firmar-se no mercado internacional, pelos saltos na investigação científica, pelo muito que tantos estão a fazer para que o país ande para a frente? Ou será que existe uma censura, nas redações televisivas, para evitar publicitar as coisas positivas?

Como embaixador de Portugal, confesso a minha revolta pela imagem que as televisões portuguesas, na tabloidização medíocre em que caiu grande parte da sua informação, transmite do nosso país às nossas comunidades pelo mundo. 

Agora volto a perceber melhor aquilo que um dia, ouvi a uma criança, filha de portugueses residentes na Suíça, a quem perguntavam o que gostava mais de ver na TV:  "os desastres". Com um jornalismo televisivo deste quilate, estamos a criar uma cultura geracional de depressão.

terça-feira, setembro 06, 2011

O Arnaldinho

Tínhamos convidado aquele jovem casal brasileiro para jantar, em nossa casa, em Oslo, nesse início dos anos 80. Ele era um diplomata que, numa situação transitória, viera fazer uma "encarregatura de negócios" - isto é, substituir o embaixador - à Noruega, por alguns meses. A mulher e filho haviam-se-lhe juntado, por algumas semanas. Perguntaram se podiam trazer a criança, porque não tinham com quem a deixar. Dissémos que sim, naturalmente.

Eram pessoas muito simpáticas mas, desde o primeiro segundo, percebeu-se que a criança, o Arnaldinho, aí com uns três anos, era uma figura incontrolada na família. Logo após a chegada, desapareceu sozinho pela casa, sob o olhar benevolente dos pais, entrando e saindo, numa infernal correria, de todas as dependências. Na sala, preocupado com os efeitos dessa peregrinação turbulenta por um apartamento não preparado para agitação infantil, ousei perguntar se não seria melhor mantermos o Arnaldinho por ali. Temi - e, mais tarde vim a verificar, com razão - por um puzzle de milhares de peças com que entretinha parte das noites longas, no meu escritório. A custo, percebendo a minha preocupação, o pai lá se decidiu a ir procurar o Arnaldinho. Que chegou, puxado pelo braço, para se sentar junto de nós.

Alguns bibelots que estavam sobre a mesa da sala concitaram, segundos depois, a atenção do Arnaldinho, que se pôs a brincar com umas delicadas peças de cristal. Os pais, esses, sorridentes, mantinham uma serenidade total. A certa altura, não me contive:

- Arnaldinho, não mexa nessas peças, por favor.

A mãe do Arnaldinho lançou-me um olhar onde se lia alguma leve reprovação pelo meu comentário repressivo, aparentemente por estar a limitar a liberdade da criança, que, por acaso, nada tinha partido. Ainda. O pai foi um pouco mais sensível e repercutiu, docemente, o meu alerta:

- Você não toca nessas coisas, querido.

Encolhido num canto do sofá, os olhos do Arnaldinho estudavam opções ofensivas. E logo brilharam ao ver uma taça com cerca de uma dúzia de ovos pintados à mão, uma compra feita, meses antes, em Praga. Eu, nervoso e distraído da conversa, seguia o Arnaldinho pelo canto do olho. A sua mão sapuda avançou então para um desses ovos, agarrou-o, olhou-o e esmagou-o sobre o tampo da mesa, espalhando a casca pintada.

Fiquei furibundo por dentro. Não eram peças muito valiosas, mas eram objetos de artesanato que, meses antes, havíamos trazido bem acondicionados, de carro, durante milhares de quilómetros. Vê-las desaparecer por uma destruição gratuita excedia a minha paciência. O pai do Arnaldinho teve então a reação máxima que, aparentemente, o estatuto da sua autoridade sobre a criança permitia:

- Arnaldinho, não faz isso! Então partiu o ovo!? Não vai partir outro, não?

O Arnaldinho tomou o remoque como um incentivo e a pergunta como um desafio. E, claro, avançou, não para um mas para dois outros ovos, que tiveram idêntico destino.

A mãe, "cool", sorriu. O pai "reagiu":

- Arnaldinho! Arnaldinho! Não parte mais nenhum ovo, está bem? Senão papai zanga-se!

Se ia partir, não partiu. Voei para o Arnaldinho, icei-o pelos braços para o canto oposto do sofá e, num silêncio pesado que por segundos se fez na sala, coloquei a taça de ovos e todos os bibelots que pressenti pudessem ser alvo da sua ação destruidora na prateleira mais alta de um móvel que estava em frente. As mesas ficaram tristemente desertas de decoração. O Arnaldinho ficou especado, sem "targets". E os nossos convidados, surpreendidos pelo meu afirmativo "preemptive strike", ficaram, em absoluto, sem graça.

- Então?! E o que bebem?, perguntei, já com pena dos copos. 

E, nem sei como, lá se passou mais um jantar... diplomático. Por onde andará o Arnaldinho? Hoje, dia nacional do Brasil, lembrei-me dele.

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...