sábado, setembro 24, 2011

Sodade

Cesária Évora sofreu um AVC e está internada aqui em Paris. O "Le Monde" dedica-lhe, na sua edição de hoje, uma merecida página.

A certo ponto do texto, a jornalista autora do texto destaca o papel de José da Silva, o empresário da cantora, que, pela primeira vez, "no final dos anos 80, em viagem a Lisboa, encontrou Cesária num bar", lançando a partir daí a sua carreira internacional. Mas a jornalista não se fica por aqui: ao notar o modo chocado como José da Silva se viu agora obrigado a relatar à imprensa que as condições de saúde de Cesária lhe não permitem continuar a cantar em público, assinala que foi este empresário "quem a fez sair fora das suas fronteiras lusitanas e colonialistas". 

Caramba! "Colonialistas"? No final dos anos 80, quando Cabo Verde é independente desde 1975? Para além da iliteracia político-cultural - outros diriam, simplesmente, estupidez - que esta referência traduz, o lapso é bem revelador da persistência, num certo imaginário cultural europeu, de restos de uma lusofobia que a duração temporal do nosso colonialismo, para além da de outros congéneres europeus, acabou por enraizar. Há um preço que, acreditem!, continuamos ainda a pagar por isso, no "retrato" externo do nosso país. Para a semana, vou também referir esse facto, num seminário em Lisboa onde abordarei o tema bem atual da imagem de Portugal e da sua economia.

Cesária Évora, na sua genialidade, abordou em canção a questão dos caboverdeanos que foram trabalhar para S. Tomé e Príncipe e que por lá ficaram. Esta era uma realidade até então muito pouco conhecida em Portugal.

Eu havia-me defrontado com ela em inícios de 1976. Estava de visita a S. Tomé, enviado por Lisboa, para tentar resolver uma greve dos professores cooperantes que Portugal para aí tinha destacado. Um dia, em conversa com uma empregada da residência do nosso embaixador, a senhora revelou-me que era caboverdeana e que estava há muito tempo em S. Tomé, para onde o marido, já falecido, tinha vindo trabalhar nas roças do cacau. Perguntei-lhe se, entretanto, já tinha voltado à sua terra ou se tinha intenção de fazê-lo definitivamente, agora que o seu país era independente. Nunca esqueci o olhar intensamente triste com que me disse: "Ó doutor? Como? Nunca tive dinheiro nem nunca vou ter para voltar a ver Cabo Verde!". Foi nesse instante que acordei para o drama imenso dessa gente, expatriada dentro do Portugal da ditadura, para quem - para essas pessoas, sim! - o sistema colonial não morreu com o 25 de abril.

Cesária Évora cantou, para sempre, como ninguém, em morna num melódico crioulo, a tragédia dessa sua gente que foi para S. Tomé, no inesquecível "Sodade". 

9 comentários:

Anónimo disse...

Bom gosto Senhor Embaixador .

Os meus cumprimentos

Carlota Joaquina

patricio branco disse...

2 ou 3 comentários:
1 belissima cantora, c e tem no entanto algo no timbre da voz que me intriga ou noto: se a ouvirmos sem imagem, na maior parte das canções não distinguimos se é uma voz feminina ou masculina que canta.
2 a diaspora caboverdiana chegou a todas as colónias, incluido a timor. Davam esplendidos trabalhadores administrativos, no sector publico ou privado.
Devido à extrema secura e pobreza das ilhas, tambem emigraram, outras colónias, eua, holanda, italia, senegal.
3 Indo ao episódio do caso relatado na entrada, da familia coboverdiana em s. tomé, estas situações deram aliás inspiração à lindissima morna sodade sodade em que se fala desse caminho pa s tomé.

Julia Macias-Valet disse...

Ah...estes jornalistas franceses...

Uns omitem que os altos quadros dirigentes de empresas francesas (Renault) sao portugueses (in Challenges) outros insistem em continuar a tratar-nos de colonialistas...

Ignorância ?... ou Burrice ?

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PARTINDO

Triste, por te deixar, de manhãzinha
Desci ao porto. E logo, asas ao vento,
Fomos singrando, sob um céu cinzento,
Como, num ar de chuva, uma andorinha.

Olhos na Ilha eu vi, amiga minha,
A pouco e pouco, num decrescimento,
Fugir o Lar, perder-se num momento
A montanha em que o nosso amor se aninha.

Nada pergunto; nem quero saber
Aonde vou: se voltarei sequer;
Quanto, em ventura ou lágrimas, me espera

Apenas sei, ó minha Primavera,
Que tu me ficas lagrimosa e triste.
E que sem ti a Luz já não existe.

Eugénio Tavares

Jornalista, escritor/poeta Cabo-verdiano
Foi também o grande reformador e renovador da letra e música da Morna

Anónimo disse...

Senhor "patricio branco": como assim, não distinge a voz de um homem da de uma mulher? Caramba!!! Por favor, Ouça a canção que pode ouvir neste blogue!!! Voz de homem? caramba... Ao invés, bem "femme"... Nunca passe uma noite no "Folies Pigalle"!!!
E, assim, de repente, lembro-lhe que os portugueses emigrados também deram excelente empregados do lixo e do "batiment"!!!!

Mônica disse...

Senhor embaixador.
Apesar de não saber nada de polirica, nem da economia de Portugal. Por aqui fico sabendo de tudo com alguma facilidade e de outras com certa dificuldade de entender.
Hoje estou oK, pois conheci claramente esta história de vida e de musica portuguesa maravilhosamente.

E este sabado está azul de verdade aqui nas Minas Gerais.
com carinho Monica

Helena Oneto disse...

Pois é, Senhor Embaixador, o estigma dum Portugal pobre e colonialista cola-nos à pele, ainda e por muito tempo. Quando não somos nos a lembra-lo, há outros que não esquecem.

O video que "linkou" para esta "Sodade" é o mais bonito e comovente que vi da Cesaria Evora.

patricio branco disse...

uma palavra de recordação e homenagem para aristides pereira, esse homem sereno e tenaz que tanto fez pelo seu pais. Por qualquer razão, associo-o a um gandhi, certamente pelo pacifisno, tenacidade, simplicidade externa.
As figuras historicas do anticolonialismo desapareceram já quase todas, creio, aristides foi talvez dos grandes o ultimo.
tenho ideia que há anos vi uma biografia ou memórias dele, ou estarei enganado?

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Luis Bonifácio: nem a pessoa que menciona disse algo que possa ser criticável (como verificará, lendo melhor o que eu escrevi), nem a ideia que ecoou, que sei partilhada por alguns, me parece ser um sentimento maioritário digno de registo. Desculpe não publicar o seu comentário.

Anónimo disse...

Que saudades dos Portugal colinial, quando o presente das colónias é uma sombra daquilo que foi o seu passado.

A Europa de que eles gostam

Ora aqui está um conselho do patusco do Musk que, se bem os conheço, vai encontrar apoio nuns maluquinhos raivosos que também temos por cá. ...