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quinta-feira, novembro 05, 2015

As chaves do Cairo


Este retalho de memória vem na sequência da nota que aqui ontem publiquei sobre a morte de Itzhak Rabin, passado em novembro de 1995. Para tal, recupero parte de um texto antigo que aqui escrevi há três anos. Num registo menos pesado.

Nas últimas horas, muito se tem falado do deserto do Sinai, cenário triste do atentado ou acidente que vitimou os viajantes do voo que ligava Sharm el-Sheikh a São Petersburgo. (Uma amiga enviou-me ontem um email, informando ter partido do mesmo aeroporto, uma hora antes...). Desde há alguns anos, o Sinai converteu-se numa zona de alto risco. Atravessá-lo passou a ser uma aventura insensata e, ao que a imprensa reporta, já quase impossível para viaturas civis. Mas não era assim nesse tempo.

Como ontem relatei, e após o assassinato de Rabin, a delegação portuguesa, chefiada por Mário Soares e que eu acompanhava em representação do governo, havia interrompido subitamente a visita a Gaza, que se sucedia a uma estada em Israel. Nessa manhã de 5 de novembro de 1995, saíramos da Faixa de Gaza para o Egito, pela "pesada" fronteira de Rafah, onde Israel mantinha então um controlo, politicamente muito sensível para os palestinianos.

Um avião posto à disposição pelo governo egípcio iria buscar-nos à cidade de Al Arish, umas dezenas de quilómetros adiante, onde era suposto almoçarmos, num hotel de praia sobre o Mediterrânico. Mário Soares, insistiu em tomar um banho e alguns o acompanhámos. Ainda hoje guardo umas belas fotos da autoria de Rui Ochoa, com Mário Soares, Alfredo Duarte Costa e eu, vestidos com uns longos calções emprestados.

À época, era nosso embaixador no Cairo, Eduardo Nunes de Carvalho, uma figura muito simpática da nossa "carreira", onde era conhecido pelos amigos pelo "nickname" de "Iá".Era uma pessoa por quem tinha uma grande estima e consideração e que, infelizmente, nos deixou há já algum tempo. Hhomem de sorriso permanente, de uma agudeza fina de espírito, muito culto e educado, foi uma das boas "cabeças" que serviu a nossa diplomacia. Tinha, porém, como todo o ministério sempre soube, uma relação algo desligada com as coisas e, em especial, com o tempo, com distrações e atrasos que se tornaram lendários na tradição oral do MNE.

Nessa manhã, para receber o presidente à chegada ao território egípcio, o "Iá" tinha vindo ter conosco, de carro, do Cairo a Al Arish, depois de uma jornada de várias horas, através do Sinai. E chegou a tempo do almoço, depois do nosso banho. Soares insistiu que ele nos acompanhasse na nossa viagem de avião para a capital egípcia. O seu carro, com o seu motorista, iniciou então o regresso pelo mesmo caminho, atravessando o deserto do Sinai e o canal do Suez, devendo chegar ao Cairo lá pela noite. 

Nós chegámos às primeiras horas da tarde. Mário Soares, a Dra.Maria Barroso e o ajudante de campo foram para uma "guest house", posta à sua disposição pelo presidente egípcio. Percebi que o presidente se separava contrariado da sua delegação, "exilado" num palácio que lhe limitava os movimentos e a companhia. O resto dos portugueses, que incluía deputados, jornalistas e algumas figuras da vida pública portuguesa, foi instalada num hotel. Eu não perdi tempo: com a assessora de imprensa do presidente, Estrela Serrano, aproveitei para ir ver as pirâmides e a esfinge. A memória de p"O mistério da Grande Pirâmide", de Edgar P. Jacobs, perseguia-me. Era a primeira vez que ia ao Cairo e, tendo uma horas livres, decidi aproveitá-las bem.

Regressámos ao hotel ao final da tarde. Notei que o embaixador, um excelente conversador, ainda pairava por lá, no lóbi, a fazer companhia aos membros da delegação. A certa altura, Mário Soares telefonou a perguntar o que íamos fazer, onde íamos jantar. Disse-lhe que não tínhamos planos para sair do hotel e que aí jantaríamos. Soares de imediato se entusiasmou: "vou ter aí convosco!" Pediu-me então para passar o telefone ao embaixador Nunes de Carvalho. A este, Soares fui percebendo que Soares dizia ter tido a ideia de, antes do jantar, o grupo português conhecer a residência oficial do embaixador, situada umas escassas centenas de metros do hotel, também na ilha de Zamalek, o bairro onde estávamos.

Notei que o embaixador começou a titubear na conversa, resistindo à ideia, dizendo que já não havia muito tempo, explicando que tinha a sua mulher fora do Cairo, para além de outros pretextos de ocasião, que me pareceram pouco convincentes. Ora a sua casa era a residência oficial do Estado e nada mais natural seria que acolher, ainda que para uma simples bebida antes do jantar, o chefe do Estado e os seus convidados. A minha estranheza era tanto maior quanto Nunes de Carvalho era um "homem do mundo", que gostava de receber e recebia muito bem, como eu próprio tivera oportunidade de testemunhar noutras embaixadas onde com ele me cruzara.

A conversa entre o embaixador e o presidente, com o último a fazer aquilo que eu presumia ser uma contínua pressão para a aceitação pelo embaixador da ideia que tivera, foi-se prolongando, com Nunes de Carvalho, entre risadas nervosas e frases incompletas, tentando dissuadir Mário Soares. Até que, finalmente, o ouvi retorquir: "Ó senhor presidente! É que eu tenho um problema, que nos impede, em absoluto, de ir lá a casa". Fiquei curioso e apurei o ouvido. Depois de mais uma gargalhada, sempre muito mais de nervos do que de graça, gaguejando um pouco de embaraço, o embaixador esclareceu o presidente: "É que eu - desculpe ter de dizer-lhe! - deixei as chaves de casa no meu carro, que está a atravessar o deserto do Sinai, e que só chega daqui a umas horas. Vou mesmo pernoitar no hotel..."

A verdade é que o embaixador, não sonhando com a hipótese da sua residência ter de ser "mobilizada" na ocasião, e na ausência da sua família, havia dispensado todo o pessoal. Sendo já tarde e, para mais, estando sem motorista, num tempo em que pouca gente tinha telemóvel, seria impossível andar à procura, pelo dédalo do Cairo, das segundas chaves da casa.

E lá jantámos nós, com o nosso embaixador como convidado, no antigo Gezirah Palace, hoje um Marriott, cujo corpo central havia sido construído para a inauguração do canal do Suez, em 1869, um evento que, à época, foi testemunhado localmente por um viajante português que muita graça achava aos episódios da diplomacia que serviu - José Maria Eça de Queiroz. Voltei a ficar nesse hotel por duas vezesm depois dessa visita. E sempre recordo esta história.

sexta-feira, agosto 17, 2012

Sinai

Muito se tem falado do deserto do Sinai, por estes dias. Zona de alto risco em matéria de segurança, atravessá-lo passou a ser uma aventura insensata e, ao que a imprensa reporta, já quase impossível para viaturas civis. Mas não era assim, até há pouco tempo. A história que aqui conto, tem já uns bons anos.

O assassinato do primeiro-ministro israelita, Itzak Rabin, havia interrompido subitamente a visita oficial que o então presidente português, Mário Soares, fazia a Gaza, que se sucedia a uma estada em Israel. Nessa manhã de 6 de novembro de 1995, saíramos da Faixa de Gaza para o Egito, pela "pesada" fronteira de Rafah, onde Israel mantinha então um controlo, politicamente muito sensível para os palestinianos. Um avião posto à disposição pelo governo egípcio iria buscar-nos à cidade de El-Arish, umas dezenas de quilómetros adiante, onde era suposto almoçarmos, num hotel de praia sobre o Mediterrânico. Mário Soares, insistiu em tomar um banho e alguns o acompanhámos. Ainda hoje guardo umas belas fotos do Rui Ochoa, com Mário Soares, Alfredo Duarte Costa e eu, vestidos com uns longos calções emprestados.

À época, era nosso embaixador no Cairo, Eduardo Nunes de Carvalho, uma simpática figura da nossa "carreira", onde é crismado pelos amigos com o "nickname" de "Iá", pessoa por quem tenho uma grande estima. É um homem de sorriso permanente, de uma agudeza fina de espírito, muito culto e educado, uma das boas "cabeças" que serviu a nossa diplomacia. Tinha, porém, como todo o ministério sempre soube, uma relação algo desligada com as coisas e, em especial, com o tempo, com distrações e atrasos que se tornaram lendários. Nessa manhã, tinha vindo ter conosco, de carro, do Cairo, depois de uma jornada de várias horas, através do Sinai. E chegou a tempo do almoço, depois do nosso banho. 

Na nossa viagem de avião para a capital egípcia, o embaixador acompanhou-nos, naturalmente. O seu carro, com o motorista, regressaria pelo mesmo caminho, atravessando o deserto do Sinai. Chegámos ao Cairo a meio da tarde. Mário Soares, a senhora e o ajudante de campo foram para uma "guest house", posta à sua disposição pelo presidente egípcio. O resto da delegação, de que faziam parte deputados e algumas figuras da vida pública portuguesa, foi instalar-se num hotel. Depois de acomodar o presidente, o embaixador juntou-se-nos e por ali foi ficando, à conversa.

A certo ponto, vi que Nunes de Carvalho era chamado a um telefone, na esplanada onde estávamos. Era Mário Soares. Estaria "farto" do isolamento da "guest house" e queria juntar-se-nos, para jantar. Sugeria ir ter conosco ao hotel e que, ainda antes do jantar, todo o grupo português fosse conhecer a residência oficial, situada umas centenas de metros adiante, um andar bem simpático, com uma varanda sobre o Nilo, na ilha de Zamalek.

Notei que o embaixador começou a titubear na conversa, resistindo à ideia, dizendo que já não havia muito tempo, explicando que tinha a sua mulher fora do Cairo, para além de outros pretextos de ocasião, que me pareceram pouco convincentes. Ora a sua casa era a residência oficial do Estado e nada mais natural seria que acolher, ainda que para uma simples bebida antes do jantar, o chefe do Estado e os seus convidados. A minha estranheza era tanto maior quanto Nunes de Carvalho era um "homem com mundo", que gostava de receber e recebia bem, como eu próprio tivera oportunidade de testemunhar noutros lugares.

A conversa entre o embaixador e o presidente, com o último a fazer aquilo que eu presumia ser uma contínua pressão para a aceitação da ideia que tivera, foi-se prolongando, com Nunes de Carvalho, entre risadas nervosas e frases incompletas, tentando dissuadir Mário Soares. Até que, finalmente, o ouvi retorquir: "Ó senhor presidente! É que temos um problema, que nos impede, em absoluto, de ir lá a casa". Fiquei curioso. E, depois de mais uma gargalhada, sempre muito mais de nervos do que de graça, gaguejando de embaraço, esclareceu: "É que eu - desculpe ter de dizer-lhe! - deixei as chaves de casa no meu carro, que está a atravessar o deserto do Sinai, e que só chega daqui a umas horas..."

A verdade é que o embaixador, não sonhando com a hipótese da sua residência ter de ser "mobilizada" na ocasião, e na ausência da sua família, havia dispensado o pessoal. Sendo já tarde e, para mais, estando sem motorista, num tempo em que pouca gente tinha telemóvel, seria impossível andar à procura, pelo dédalo do Cairo, das segundas chaves da casa. E lá jantámos nós, com o nosso embaixador como convidado, no antigo Gezirah Palace, hoje um Marriott, construído para a inauguração do canal do Suez, em 1869, um evento que, à época, foi testemunhado localmente por um viajante português que muita graça achava aos episódios da diplomacia que serviu - José Maria Eça de Queiroz.

sábado, agosto 05, 2023

As minhas mesas. (1) Trás-os-Montes e Alto Douro


A abrir


A pedido de amigos, aqui deixarei, neste e em próximos dias, divididas por regiões, listas de restaurantes de cozinha tradicional portuguesa que me ocorrem à memória, quando me apetece comer bem. 

Quase todos são mesas de comida "auto-explicativa", isto é, locais em que, em princípio, não haverá o risco de verem surgir junto da mesa alguém, a montante da primeira garfada, a desconstruir descritivamente a elaboração dos pratos. Estamos portanto longe das casas de "fine dining" ou de cozinha contemporânea. Isso não significa, contudo, que se trate sempre de restaurantes economicamente acessíveis.

Não faço ideia se algum dos restaurantes que vou referir está agora fechado para férias. Por isso, recomendo que vão ao Google, descubram o telefone e reservem - sempre! Também não garanto que, desde a minha última visita ou de nota de atualização recebida de amigos de confiança, o pessoal de alguma cozinha não possa entretanto ter mudado ou algum dono possa ter passado a casa "a patacos". 

Por tudo isso, esta despretensiosa lista vale o que vale. Tanto mais que me não considero um "gourmet", mas apenas alguém que se esforça por atualizar o seu conhecimento sobre o país gastronómico. Admito assim, sem o menor problema, poder estar enganado em algumas das minhas escolhas, lamentando também falhar a referência a outras casas, que possam ter um maior mérito relativo. Mas, repito, esta é a minha escolha, feita com uma assumida subjetividade.

Finalmente, a geografia. Começarei de Norte para Sul, deixando contudo para o fim os restaurantes do Porto e Lisboa, bem com as suas áreas adjacentes. Não irei referir nenhum restaurante da Madeira ou dos Açores, porque não disponho de um conhecimento atualizado dessas regiões. Igualmente, e imagino que para surpresa de muitos, pouco direi do Algarve, onde me desloco muito raramente e que, em termos literais, "não é a minha praia". Em cada localidade onde surja referido mais do que um restaurante, a ordem é a da minha preferência decrescente.

Comecemos então com 23 escolhas em

Trás-os-Montes e Alto Douro

ALIJÓ
- Cepa Torta

BOTICAS
- Rio Beça

BRAGANÇA
- Geadas
- Abel (Gimonde)
- Javali (Estrada do Portelo)

CHAVES
- Carvalho
- Talha
- Aprígio

ERVEDOSA DO DOURO
- Toca da Raposa

ESTRADA RÉGUA-PINHÃO
- DOC (Folgosa)
- Quinta do Tedo (Vila Seca)

MACEDO DE CAVALEIROS
- Brasa

MIRANDELA
- Flor de Sal
- Maria Rita (Romeu)

MOGADOURO
- Lareira

PINHÃO
- Cozinha da Clara (Quinta de La Rosa)

RÉGUA
- Castas e Pratos

TORRE DE MONCORVO
- Taberna do Carró

VALPAÇOS 
- Dona Adelaide

VILA POUCA DE AGUIAR
- Costa do Sol

VILA REAL
- Lameirão
- Chaxoila
- Cais da Vila


quarta-feira, outubro 23, 2019

10 mesas de Trás-os-Montes e Alto Douro


Chegou a vez de Trás-os-Montes, com duas incursões ao Alto Douro, na margem esquerda do rio, nestas listas muito pessoais de 10 restaurantes por região.

Relembro a lógica: (1) Estes não são necessariamente “os melhores” restaurantes, mas apenas aqueles que sempre me sinto tentado a visitar; (2) Em regra, não se incluem casas com oferta sofisticada e culinária de “salto alto”, mas apenas com cozinha portuguesa tradicional; (3) Fora de Porto e Lisboa, só é indicado um restaurante por localidade:

Taberna do Carró, em Torre de Moncorvo

DOC, na Folgosa

Lameirão, em Vila Real

Toca da Raposa, em Ervedosa do Douro

Costa do Sol, em Vila Pouca de Aguiar

Cozinha da Clara, Quinta de La Rosa, Pinhão

Carvalho, em Chaves

Geadas, em Bragança

Castas e Pratos, na Régua

Maria Rita, no Romeu, Mirandela

Em dias anteriores, foram já publicadas as listas do Minho e do Porto. Amanhã será a vez da Beira Interior.

Aproveitem!

domingo, setembro 18, 2011

Vinhos transmontanos

Há quem possa pensar que trazer vinhos portugueses para França é como "levar bananas para a Madeira" (embora esta ilha portuguesa, nas últimas horas, não esteja, propriamente, em odor de santidade). Eu penso que não. Os vinhos de Portugal, para além do caso especial e sem par do vinho do Porto, têm hoje casos de qualidade que pedem meças a muitos vinhos franceses. E, para além do "mercado da saudade", constituído pelos portugueses e seus descendentes que por aqui vivem, os nossos vinhos podem e devem crescer no mercado francês.

Ontem, abri as portas da Embaixada para a Confraria dos Vinhos Transmontanos, que realizou um "capítulo" em Paris, com a entronização de novos confrades (entre os quais o autor deste blogue). A região transmontana esteve presente com diversos e magníficos vinhos, para além de produtos alimentares muito diversos a cargo de um dos melhores restaurantes do norte de Portugal, o "Carvalho", de Chaves, que já aqui mereceu, no passado, a necessária referência.

Tal como já aconteceu com outras regiões do país, a Embaixada testemunhou assim uma bela jornada de divulgação da região de Trás-os-Montes.

terça-feira, agosto 25, 2009

Guia de Portugal

Chamaram a minha atenção para a comparação que o "Diário de Notícias" faz, na sua edição de hoje, entre o novo guia do "American Express", sobre Portugal, e o vetusto "Guia de Portugal", uma edição que se iniciou em 1924, sob a tutela da Biblioteca Nacional de Lisboa, e que foi concluída, já nos anos 70 do século passado, pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Devo, desde já, advertir o leitor que sou um coleccionador obsessivo de guias sobre o nosso país, portugueses ou estrangeiros, para cujas editoras escrevo, quando as informação (em especial em matéria histórica, cultural e de costumes) considero erradas ou como inaceitáveis distorções. Acho mesmo que a importância deste tipo de publicações na criação de uma ideia de um país no imaginário dos leitores é fortíssima - e digo isto pelo modo como eu próprio reajo ao ler guias sobre outros países. Por essa razão, entendo que a "diplomacia pública" de Portugal passa também pelo modo como soubermos influenciar o que , sobre nós, é dito nesses guias.

Mas é a propósito do velho "Guia de Portugal" - sou um feliz proprietário das 1ªs edições de todos os seus volumes - que gostaria de deixar umas breves notas. Trata-se da recriação portuguesa, embora em moldes de escrita bem mais elaborados, dos guias Baedeker, que tanto sucesso fizeram na Europa no final do século XIX e inícios do século XX.

O primeiro volume do "Guia de Portugal" foi lançado em 1924 e dedicou-se ao tema "Generalidades - Lisboa e Arredores". Foi seu organizador e principal autor Raul Proença e conta com preciosos textos de grandes figuras da cultura portuguesa como Aquilino Ribeiro (Etnografia), António Sérgio (História), Reinaldo dos Santos (Arte), para além imensos textos do próprio Raul Proença e colaboração vária de Matos Sequeira, Afonso Lopes Vieira, Jaime Cortesão, José de Figueiredo, Teixeira de Pascoaes, Júlio Dantas, Pina de Morais, Orlando Ribeiro, Raul Lino, etc. É um volume riquíssimo, praticamente sem par. As descrições de Lisboa e percursos nos arredores, de uma região onde hoje sobram apenas os monumentos e escassos excertos de paisagens, são um imenso prazer de leitura. A capa de Raul Lino é, em si mesma, de uma bela simplicidade.

O 2º volume publicado, ainda pela Biblioteca Nacional, sobre "Estremadura, Alentejo, Algarve", foi impresso no final de 1927 - isto é, já sob ditadura militar. Nele estão alguns dos nomes do volume anterior e, também, outras figuras como Brito Camacho, Carlos Selvagem, Hernâni Cidade, Rodrigues Miguéis, Sarmento de Beires, Teixeira de Sampaio, etc. O prefácio é assinado por Raul Proença, agora já na qualidade de "ex-chefe dos serviços técnicos da Biblioteca Nacional". O regime tinha-o, entretanto, demitido das funções que ocupava desde 1911...

O prefácio que Proença escreve para este 2º volume revela que o Guia não quer ser um "bonzo doméstico", para o "fútil destino de ornamentar as estantes e os móveis das saletas". Quere-o "um companheiro de viagem (...), pronto a ser consultado a cada momento", pelo que necessita de ser "um livro portátil, que se pudesse folhear a todo o momento". Do texto transparece já, todavia, uma amargura profunda em Proença, sintoma do seu destino político e pessoal trágico, depois de ter combatido com armas o novo regime, que o levaria ao exílio, aqui em Paris, onde viveu alguns anos em condições de enorme dificuldade, em St. Germain-en-Auxerrois.

Só em 1944 é que sai o 3º volume, sobre "Beira Litoral, Beira Baixa e Beira Alta", ainda sob a chancela da Biblioteca Nacional, assinalando-se, no prefácio, que a responsabilidade da edição recai agora sobre um "núcleo de amigos" de Raul Proença, depois da morte deste, em 1941. O nome de Sant'anna Dionísio aparece agora como o novo coordenador do projecto e seu principal impulsionador, e assim será até ao final da edição completa, nos anos 70. Note-se que, neste volume, vão aparecer ainda textos de Alberto de Oliveira, Egas Moniz, Eugénio de Castro, Ferreira de Castro, João de Barros, Raúl Brandão, Rodrigues Lapa, Tomaz da Fonseca ou Vitorino Nemésio.

Uma nova interrupção faz com que, só em 1964 e 1965, saiam os dois volumes relativos a "Entre Douro e Minho", o 1º sobre o Douro Litoral e o 2º sobre o Minho, com Sant'anna Dionísio como impulsionador, mas agora sob a responsabilidade editorial da Fundação Calouste Gulbenkian. A qualidade dos colaboradores, há que dizê-lo, baixa drasticamente nestes volumes. Finalmente, em 1969 e 1970, são editados os últimos volumes, sobre "Trás-os-Montes e Alto Douro", um sobre "Vila Real, Chaves e Barroso" e outro sobre "Lamego, Bragança e Miranda". Neste caso, há novos colaboradores conhecidos: João Sarmento Pimentel, Jorge Dias, Miguel Torga, Ribeiro de Carvalho, etc.

A Fundação Gulbenkian reeditou, desde então, todos os volumes do "Guia de Portugal". Vale a pena tê-los, porque é uma interessante leitura de um outro Portugal (embora sem a Madeira e os Açores) que aí ficou registada.

Recomendaria ainda às novas gerações que conhecessem um pouco mais a figura honrada e a grande personalidade da nossa cultura que foi Raul Proença, a alma por detrás do "Guia de Portugal". Por exemplo, aqui ou aqui.

domingo, fevereiro 28, 2021

Falar de amigos



Hoje, vou falar de amigos. De alguns dos muitos que têm, como negócio, como vida, um restaurante. Dos que sofrem, por estes dias, tempos bem difíceis, com empregos em jogo, contas para pagar, responsabilidades para cumprir. Dos que se dedicaram, por anos, a gizar um projeto de gastronomia responsável, a “desenhar” uma casa e um nome, com seriedade e muito profissionalismo. Pessoas por quem tenho muito respeito e que estou “deserto”, como se diz na minha terra, por poder abraçar, visitar, frequentar. Quem são eles? Aqui vão, só alguns. Podiam ser muitos e muitos outros!

A dona Ilda, no Carvalho, em Chaves. A Alice e o Eleutério, no Lameirão, em Vila Real. O Óscar e o Tó Luís, no G, em Bragança. O António Machado, no Costa do Sol, em Vila Pouca de Aguiar. O Julião, na Casa de Armas, em Viana do Castelo. O Victor Peixoto, no Victor, em São João do Rei. A Palmira e o José António, no Bocados, em Ponte de Lima. O Pedro Nunes, no São Gião, em Moreira de Cónegos. O Renato Cunha, no Ferrugem, em Famalicão. O José António, no Cozinha do Manel, no Porto. O Rui Paula, no Casa de Chá da Boa Nova, em Matosinhos. A Fernanda e o Luís Castro, no Vallecula, em Valhelhas. A Manuela Cerca e o Eugénio Martins, no Casas do Bragal, em Coimbra. O Luís Frazão Gomes, no Tribeca, em Serr d’el Rei. O Júlio Vintém, no Tomba Lobos, em Portalegre. A Sílvia, no Retiro do Pescador, na Carrasqueira. E, em Lisboa, tantos! O Henrique, no Galito. A Justa e o José Nobre, no Nobre. O João “Espetáculo”, na Imperial do Campo de Ourique. A Vivianne, na Travessa. O Jorge Dias, no Faz Figura. O Octávio, no Gambrinus. A Petra, no Solar dos Duques. O Miguel Júdice, no Eleven. O Manuel e o Aurélio, no Poleiro. O Cardoso, no Comilão. O Duarte, no Salsa & Coentros. E tantos e tantos outros.

sábado, maio 07, 2016

As mesas ao fundo do túnel


A abertura no túnel do Marão, que hoje tem lugar, não facilita apenas a possibilidade dos transmontanos se deslocarem para lá da serra. Abre também o ensejo a que muitos mais os visitem.

Por isso, e, como antes se dizia, "a pedido de várias famílias", aqui vai um brevíssimo guia para quem pretenda aproveitar uma ida a Vila Real e aí experimentar a gastronomia local.

Para comer bem, uma cozinha tradicional com toque não excessivamente contemporâneo, num ambiente muito agradável, serviço atento e simpático, o visitante deve ir ao "Cais da Vila" (259 351 209), num armazém anexo à antiga estação de caminho de ferro.

Uma das mais antigas casas de pasto da cidade, o "Chaxoila" (259 322 654), foi renovada e modernizada e oferece hoje, na antiga estrada nacional para Chaves, em pouco adiante do quartel, uma bela cozinha, com uma lista marcada pela tradição gastronómica da região.

Num registo de preços mais reduzido que os dois nomes anteriores (ambos com espaços ao ar livre, quando o tempo ajuda), uma excelente "terceira via" pode ser o "Lameirão" (259 346 881), muito próximo do "Chaxoila", com uma lista curta de cozinha "autêntica", que varia todos os dias, onde o toque regional e a simplicidade com qualidade é a marca da casa. Que posso dizer mais senão revelar que é a minha "cantina"?

Para quem andar pelo centro da cidade, uma escolha agradável, num ambiente típico, é o "Terra de Montanha" (259 372 075), um pouco acima da Capela Nova. Na zona do circuito (não sabem o que é o Circuito de Vila Real?), em Abambres, vale a pena fazer uma visita ao "Maria do Carmo" (259 322 407), onde, na minha juventude, passei muitas tardes de "lerpa", a beber "lapardana" (uma mistela com cerveja, vinho branco e açúcar que não só já não servem como eu não aconselharia).

Finalmente, para uma refeição de petiscos, coisas simples e boas, experimentem o (ainda novo) "Tralha" (nas instalações onde funcionou o saudoso "Espadeiro", junto ao Jardim da Carreira) e o velho "Cardoso", perto do Cabo da Vila, com as suas famosas "francesinhas".

Ainda duas notas. Quem visita Vila Real não pode deixar a cidade sem se munir da histórica bola (leia-se "bôla") de carne e dos ultra-famosos covilhetes, também de carne, da Pastelaria Gomes, na avenida Carvalho Araújo. Ali a dois passos, junto à igreja da Misericórdia, dê uma saltada à Casa Lapão, para dali levar as cristas de galo, um imperdível pastel com recheio de ovos.

Aqui fica um mini-guia de Vila Real, para quem gosta das coisas boas da mesa.

sexta-feira, janeiro 29, 2016

Mesas


Na "Evasões" - á revista que às 6ªs é distribuída gratuitamente com o "Diário de Notícias" e o "Jornal de Notícias" - publico hoje mais uma despretensiosa croniqueta sobre um restaurante do país.

Desta vez foi o restaurante "Carvalho", em Chaves.

Pode ter o texto aqui, mas tem muito mais graça lê-lo na revista, que nos traz muitas outras dicas.

sábado, outubro 24, 2020

“Geographia” do Portugal colonial


Na sua imperdível página de crítica gastronómica - uma permanente bússola para mim - na revista do “Expresso”, Fortunato da Câmara faz hoje uma análise a um dos restaurantes da minha vizinhança próxima, o “Geographia”.

O “Geographia” situa-se na rua do Conde, numa das alas laterais ao chafariz que dá para o Museu Nacional de Arte Antiga, junto às Janelas Verdes.

De quando em vez, passo por lá, embora sem uma regularidade que faça a devida justiça à qualidade da casa. A oferta do “Geographia” é muito interessante e original, porque deliberadamente percorre os sabores do percurso da expansão portuguesa pelo mundo. Isso mesmo é sublinhado por invejáveis mapas antigos que ali estão espalhados pelas paredes.

No seu texto, Fortunato da Câmara refere, a propósito, que a sensibilidade do “politicamente correto” terá inviabilizado uma referência à palavra “colonial” na designação de outro recente projeto restaurativo em Lisboa. A palermice que por aí anda não tem limites!

Ao ler isso, veio-me à memória o “Colonial”, um clássico café da Almirante Reis, nos Anjos, a que um dia cheguei, no final dos anos 60, pela mão do meu amigo portuense (mas, portista, nunca!, ele é do Leixões!) Manuel Amorim de Carvalho, um eterno “expert” em locais exóticos - desde um endereço que não revelo, na Alferes Malheiro, no Porto, até coisas lisboetas como o “Calhau”, “Rancho Grande”, o “Cabeça de Touro” ou um snack-bar abrilhantado por uma tal Marta de la Cranche. Com ele, com o Alexandre Chaves e o Daniel Polónio, aportei algumas tardes ao “Colonial”, na transição dos anos 60 para 70, tentando estudar mas acabando sempre numas cervejolas com tremoços, a meio da tarde.

No “Colonial” comia-se, por esses tempos, um bacalhau à braz que o José Cardoso Pires me disse um dia ser “único, em Portugal & colónias”. O Zé, noutros tempos, tinha parado por lá e alimentava a tese de que o café “estava sempre infestado de fascistas”, pelo que uma ida ali era “apenas para comer o bacalhau e zarpar”. Nunca percebi se tinha razão, mas ele normalmente tinha.

As colónias já se foram, o Cardoso Pires e o “Colonial” também. Existe agora o “Geographia”, que “vaut le détour”, posso garantir, como dizem os guias verdes da Michelin.

O futuro