"O 11 de Setembro de 2001 não derrubou apenas o World Trade Center e uma ala do Pentágono. Fez ruir também o sentimento de confiança que a América mantinha na sua própria intocabilidade, com profundas consequências no modo como a maior potência olha hoje o mundo e o seu papel dentro dele.
Uma das grandes linhas divisivas que afectam a política mundial prende-se precisamente com a impossibilidade, para a Europa, de interiorizar o sentimento de profunda angústia que hoje atravessa a América, face à sua inesperada impotência perante perigos de contorno desconhecido. E isso tem consequências com expressão política, num país onde a agenda pública segue de muito perto o sentimento colectivo, muito em especial quando este coincide com os grandes interesses estratégicos.
Desde há muito, a Europa habituou-se a viver com o perigo. Teve duas guerras trágicas no seu seio, sofreu o nazi-fascismo, os temores da Guerra Fria e os “anos de chumbo” das acções radicais extremistas. Os europeus têm consciência da sua própria fragilidade, mas convivem com ela com alguma naturalidade.
Para os Estados Unidos, o mundo exterior sempre fora um lugar perigoso, de que faziam uma caricatura à medida da suas vivências internas. E se a segurança interna não conseguira prever alguns actos tresloucados, os riscos políticos profundos estavam afastados do quadro de probabilidades, com a rede securitária concentrada na criminalidade, com a droga como inimigo público.
Tive a experiência de viver em Nova Iorque, antes e depois do 11 de Setembro. É sabido não ser a cidade americana típica. Alguém dizia que os europeus sempre tiveram Nova Iorque como a sua principal imagem da América, enquanto, pelo contrário, para a generalidade dos americanos, aquela cidade aparece já como uma espécie de primeira aproximação à vida europeia. Mas, talvez por isso, estando Nova Iorque “mais próxima” de nós, talvez a mudança da atitude de vida nessa cidade nos seja mais perceptível. E a ideia que me ficou do pré e do pós-11 de Setembro é que vivi em duas cidades diferentes.
Fui a Nova Iorque, pela primeira vez, há mais de 30 anos, com o World Trade Center por acabar. Daí para cá, visitei a cidade várias vezes, dela sempre recolhendo a mesma matriz trepidante, palco da ambição individual, de alguma agressividade egoísta, mas com uma indefinível cordialidade, com a assunção de um escasso número de regras de convivência urbana como chave para nos sentirmos em casa.
Em 2001, quando fui viver para Nova Iorque, a cidade recuperara o usufruto pleno de muitas zonas para os seus cidadãos, por virtude da queda do desemprego e de um eficaz combate à criminalidade. Passear à noite, em antigas “no-go areas”, tornou-se rotina. Restaurantes e galerias apareciam e desapareciam no West Village e em Chelsea, com as esplanadas cheias e um ar de prosperidade geral, embora distante do auge do Nasdaq.
Como em todas as sociedades em que a precariedade do vínculo laboral é a lei que reflecte as crises, Nova Iorque reagiu ao 11 de Setembro com brutalidade. Desemprego, encerramento de actividades e retracção de consumo, com a queda vertical do turismo e o afundar temporário da Broadway.
E, também, com a emergência da angústia com a segurança, que nunca mais terminou. Foram os tempos do “antrax”, das ameaças constantes das “dirty bombs”. Os novaiorquinos passaram à “vigilância popular”, a olhar o vizinho, o “diferente” como uma ameaça potencial. O uso da bandeira americana passou a factor de credibilitação, nas lapelas, nas portas ou nas montras, com os não seguidores da regra a serem vistos com anti-patriotas. O “nine-eleven” (fórmula americana para o 11 de Setembro), o terrorismo, Bin-Laden e Al-Queda monopolizaram os discursos, com uma comunicação social marcada por um jingoísmo que abafava reticências.
Com o 11 de Setembro, aprendi que os americanos estão dispostos a sacrificar o mais sagrado da sua liberdade – e poucos povos haverá com um sentimento de liberdade mais arreigado – em favor da restauração, ainda que limitada ou mesmo virtual, da sua própria segurança. Por muitos e menos bons tempos, a América está prisioneira de si própria, pelo temor e pela desconfiança. Mas América que eu conheço e admiro vai, estou certo, conseguir fazer sair o país desta psicose colectiva. E todos ganharemos com isso."
Uma das grandes linhas divisivas que afectam a política mundial prende-se precisamente com a impossibilidade, para a Europa, de interiorizar o sentimento de profunda angústia que hoje atravessa a América, face à sua inesperada impotência perante perigos de contorno desconhecido. E isso tem consequências com expressão política, num país onde a agenda pública segue de muito perto o sentimento colectivo, muito em especial quando este coincide com os grandes interesses estratégicos.
Desde há muito, a Europa habituou-se a viver com o perigo. Teve duas guerras trágicas no seu seio, sofreu o nazi-fascismo, os temores da Guerra Fria e os “anos de chumbo” das acções radicais extremistas. Os europeus têm consciência da sua própria fragilidade, mas convivem com ela com alguma naturalidade.
Para os Estados Unidos, o mundo exterior sempre fora um lugar perigoso, de que faziam uma caricatura à medida da suas vivências internas. E se a segurança interna não conseguira prever alguns actos tresloucados, os riscos políticos profundos estavam afastados do quadro de probabilidades, com a rede securitária concentrada na criminalidade, com a droga como inimigo público.
Tive a experiência de viver em Nova Iorque, antes e depois do 11 de Setembro. É sabido não ser a cidade americana típica. Alguém dizia que os europeus sempre tiveram Nova Iorque como a sua principal imagem da América, enquanto, pelo contrário, para a generalidade dos americanos, aquela cidade aparece já como uma espécie de primeira aproximação à vida europeia. Mas, talvez por isso, estando Nova Iorque “mais próxima” de nós, talvez a mudança da atitude de vida nessa cidade nos seja mais perceptível. E a ideia que me ficou do pré e do pós-11 de Setembro é que vivi em duas cidades diferentes.
Fui a Nova Iorque, pela primeira vez, há mais de 30 anos, com o World Trade Center por acabar. Daí para cá, visitei a cidade várias vezes, dela sempre recolhendo a mesma matriz trepidante, palco da ambição individual, de alguma agressividade egoísta, mas com uma indefinível cordialidade, com a assunção de um escasso número de regras de convivência urbana como chave para nos sentirmos em casa.
Em 2001, quando fui viver para Nova Iorque, a cidade recuperara o usufruto pleno de muitas zonas para os seus cidadãos, por virtude da queda do desemprego e de um eficaz combate à criminalidade. Passear à noite, em antigas “no-go areas”, tornou-se rotina. Restaurantes e galerias apareciam e desapareciam no West Village e em Chelsea, com as esplanadas cheias e um ar de prosperidade geral, embora distante do auge do Nasdaq.
Como em todas as sociedades em que a precariedade do vínculo laboral é a lei que reflecte as crises, Nova Iorque reagiu ao 11 de Setembro com brutalidade. Desemprego, encerramento de actividades e retracção de consumo, com a queda vertical do turismo e o afundar temporário da Broadway.
E, também, com a emergência da angústia com a segurança, que nunca mais terminou. Foram os tempos do “antrax”, das ameaças constantes das “dirty bombs”. Os novaiorquinos passaram à “vigilância popular”, a olhar o vizinho, o “diferente” como uma ameaça potencial. O uso da bandeira americana passou a factor de credibilitação, nas lapelas, nas portas ou nas montras, com os não seguidores da regra a serem vistos com anti-patriotas. O “nine-eleven” (fórmula americana para o 11 de Setembro), o terrorismo, Bin-Laden e Al-Queda monopolizaram os discursos, com uma comunicação social marcada por um jingoísmo que abafava reticências.
Com o 11 de Setembro, aprendi que os americanos estão dispostos a sacrificar o mais sagrado da sua liberdade – e poucos povos haverá com um sentimento de liberdade mais arreigado – em favor da restauração, ainda que limitada ou mesmo virtual, da sua própria segurança. Por muitos e menos bons tempos, a América está prisioneira de si própria, pelo temor e pela desconfiança. Mas América que eu conheço e admiro vai, estou certo, conseguir fazer sair o país desta psicose colectiva. E todos ganharemos com isso."
Nota: Este texto foi publicado no "Jornal de Notícias" em 11 de Setembro de 2003. Embora datado, achei que podia ser interessante recordá-lo hoje.