Três funcionários suspenderam, por momentos, o trabalho e olharam-me, como que surprendidos pela questão, sem a menor reação. Aproximou-se então um quarto membro do grupo, mais velho, a quem repeti a pergunta e que respondeu: “Quando entrei para a empresa, ainda se falava muito dele. Mas nunca o cheguei a conhecer”. Nem eles sabem o que o nome daquela companhia deve ao senhor Agueira!
No MNE, em matéria de embalagem dos nossos haveres, quando partíamos de Lisboa ou mudávamos de posto, houve duas épocas distintas: o tempo do senhor Aguieira e o tempo que lhe sucedeu. Não sou do tempo antes do senhor Aguieira.
O senhor Aguieira pertencia a uma empresa de transportes que, por um daqueles mistérios que já não vale a pena tentar esclarecer, em outros tempos ganhava, com insistente regularidade, quase todos os concursos para o transporte dos bens dos diplomatas.
Meses antes da viagem, ainda antes dos decretos da nossa nomeação "saírem", quando a nova colocação era apenas um rumor consistente pelos claustros das Necessidades, os diplomatas eram aproximados, pessoalmente ou por carta, pela empresa a que pertencia o senhor Aguieira, com o objetivo de pôr à disposição os respetivos serviços. Outras surgiam, mais tarde, mas quase todos acabávamos por preferir a empresa onde o senhor Agueira trabalhava.
O senhor Aguieira circulava pelos corredores do MNE, sempre de pasta na mão, como se fosse dos quadros da casa. Tinha o ar daquilo a que, em certa época, se qualificava como "um velho ministro de segunda" (sendo que "ministro" significa, no nosso jargão interno, "ministro plenipotenciário", bem entendido!, e “de segunda”, era sinónimo de “2ª classe”, ou melhor, que não era de “1ª classe”, o que fazia toda a diferença). Sempre a caminho ou a sair do "quarto andar" (a área administrativa da casa), o senhor Aguieira distribuía cumprimentos a muitos que ia encontrando pelos corredores, porque era estimado e apreciado genuinamente naquela casa.
Em situações complicadas, o senhor Aguieira "desenrascava" tudo, colocando-nos no estrangeiro, sem custo, caixotes com coisas de que só muito tarde nos tínhamos apercebido que necessitávamos e deixáramos para trás. E, em Lisboa, guardava em armazem, por meses, pacotes ou móveis que não tínhamos onde deixar.
Entrar em contacto pessoal com o senhor Aguieira era uma experiência magnífica. Homem de grande cordialidade e muito educado, tinha toda a rede necessária para nos facilitar a vida.
Na minha primeira mudança para o estrangeiro, não tínhamos a noção da importância de contactar diretamente o senhor Aguieira. A minha mulher ligou um dia para a empresa, para tratar de uma qualquer questão relacionada com esse transporte. Por minutos, a chamada andou de um lado para o outro. Até que, esclarecidos de que se tratava da mulher de um diplomata, a puseram em contacto com o senhor Aguieira. A reação deste foi extraordinária: "Ó minha senhora! Porque não falou logo comigo? Andou aqui pela casa a ser tratada como "louça de Sacavém" quando, afinal, se tratava de "porcelana da Vista Alegre"!". E logo resolveu tudo. De forma inexcedível.
Quando, ainda nessa primeira saída, os meus livros chegaram a Oslo, embrulhados dois a dois, antes de serem colocados nos caixotes de cartão, recordo os olhos dos abrutalhados vikings encarregados da desembalagem, surpreendidos com o esmero do empacotamento do pessoal do senhor Aguieira.
Na minha derradeira mudança, saindo de Paris, tive imensas saudades do pessoal do senhor Aguieira, ao observar o modo primário como por ali se embalavam os livros (“só ligas aos livros”, ouvi alguém queixar-se), sem cuidar da delicadeza de alguns. Tudo a esmo!
O senhor Aguieira já não é vivo. Conhecendo razoavelmente muitos dos meus antigos colegas, tenho a certeza de não estar só neste meu sentimento de simpatia para com a sua memória. O MNE de hoje, mesmo não o sabendo, tem saudades do senhor Aguieira, podem crer.