quinta-feira, julho 23, 2020

Corredoura


No início dos anos 80 do século passado, vivi por alguns meses no Hotel Trópico, em Luanda. Tendo misteriosamente “desaparecido”, antes da minha chegada, por artes mágicas e nunca investigadas, o apartamento que albergara os meus antecessores na embaixada, num edifício na marginal de Luanda, não tive outro remédio senão ocupar, por esse período que me pareceu bem longo, um quarto no hotel, então já bastante degradado.

Era no Trópico que se acolhiam muitos estrangeiros, em especial portugueses em negócios e tripulações de aviões, numa mescla cuja convivência até poderia ter alguma graça, não fossem as dificuldades do abastecimento, nesses dias de guerra civil e recolher obrigatório.

Com o nosso cônsul-geral (este também por lá aboletado, embora por menos tempo do que eu), Fernando Andresen Guimarães, e o ministro-conselheiro da embaixada, José Stichini Vilela, eu almoçava e jantava, quase por regra, no "grill" do hotel, uma facilidade rara, que não era estranha à nossa, localmente muito invejada, condição diplomática.

Nesse tempo, obter uma "reserva" para comer no "grill" era uma benesse pouco comum, muito apreciada pelos portugueses e angolanos que para lá convidávamos. Diga-se que esse privilégio acontecia não obstante as tensões políticas que, à época, marcavam fortemente as relações entre Lisboa e Luanda, o que só revela que alguma afetividade, fruto de certas cumplicidades, se sobrepunha à difícil conjuntura política bilateral que se vivia. Por essas e por outras é que, ainda hoje, tenho amigos lá por Luanda.

Com algum exagero, o humor local corrente afirmava que, no outro restaurante do Trópico, no topo do edifício, que era bem menos sofisticado, havia, ao almoço, "arroz com peixe frito" e, ao jantar, "peixe frito com arroz"... No "grill", as coisas era ligeiramente melhores, mas a variedade de menus também não ia muito longe. Longe, sim, iam os tempos em que os grelhados teriam dado nome ao local. Recordo apenas o cíclico "émincé" de vitela, que nos pousava na mesa várias vezes por semana, e o sempre presente bolo Trópico, uma espécie de pão-de-ló coberto com claras de ovos, com que fechava a maioria das refeições.

O "chefe de sala" era um velho e simpático angolano que havia trabalhado no "Café de Paris", em Lisboa, o Smith. Quando perguntado sobre o menu do dia, costumava ironizar, sabiamente, respondendo coisas como: "Eu hoje aconselhava um magnífico caldo verde, seguido de um bacalhau à lagareiro. Depois, teremos um bife à Marrare. E fecharemos com um pudim abade de Priscos, que está "de truz" ". Esses e outros pratos virtuais, que se deliciava a relembrar, com expressões do léxico luso, fruto da sua longínqua memória da culinária e da vida lisboeta, logo contrastavam com as limitações do pobre menu do dia, a única realidade a que iríamos ter direito.

O vinho era, invariavelmente, o mesmo: português, de uma marca que nunca esquecerei, de que nunca mais ouvi falar - Corredoura. Não o retive, contudo, na minha memória sensorial como um néctar digno de figurar na história vinícola portuguesa, embora, nas condições locais da época, a minha escala de valores em matéria de consumo tivesse então atingido generosos limites de complacência.

O serviço às mesas do "grill", chefiado pelo Smith, coadjuvado pelo excelente Sambo, era feito por alunos da escola de hotelaria local, que rodavam com grande frequência. Eram jovens muito simples, alguns vindos das províncias, inexperientes, terreno fácil para ensaiarmos algumas graças.

A piada cíclica mais fácil era perguntar ao jovens alunos: "Há vinho?". A resposta era sempre positiva, como antecipadamente sabíamos. Essa era então a oportunidade para que um de nós lançasse, variando cada dia de fórmula, uma coisa assim: "Hoje, estava-me a apetecer um vinho português. Talvez um maduro tinto. Por acaso não tem um Corredoura, não?". Ou assim: "Para acompanhar o almoço, traga-me um tinto. Podia ser, por exemplo, Corredoura. Tem?"

Os olhos dos ingénuos e solícitos rapazes brilhavam de felicidade. "Por acaso", tinham - esse que era o único vinho existente, à época, em toda a Angola, "de Cabinda ao Cunene", para utilizar um lema então em voga. E, minutos depois, a uma temperatura sempre sinistra, lá surgia, saído da cave, um Corredoura tinto.

Consumimos então o que me pareceram serem hectolitros de Corredoura. Provavelmente esgotámo-lo. Deve ser por isso que nunca mais ouvi falar desse vinho. Tenho ideia que era dele este rótulo, que hoje encontrei.

13 comentários:

Anónimo disse...

Senhor embaixador, tudo a condizer: uma bela pomada fornecida pelas caves IMPÉRIO, como não podia deixar de ser...
MB

Anónimo disse...

"Caves Império" - deve ter lá ficado de outros tempos...

Anónimo disse...

Foi esquecimento ao não mencionar o vinho ou digestivo que bebia no Panorama ?
No Trópico houve uma acentuada melhoria quando o cozinheiro "virou" português.
Não mencionou também a loja do cidadão na marginal onde o Sr. Embaixador tinha o privilégio
de adquirir marcas diversificadas de vinhos e digestivos de "alta gama" ao preço da chuva.
Sejamos honestos...

Francisco Seixas da Costa disse...

O anonimo daa 13:47 ou tem ma memoria ou tem ma fe. Agora, escolha! 1. Nunca almocei no Panorama, em quatro anos que estive em Luanda. O hotel só servia residentes. 2. Não conheci os cozinheiros do Trópico. 3. A Angodiplo, onde os diplomatas podiam fazer compras do escasso sortido importado, tinha preços altamente especulativos, sempre em dólares. Em moeda local, só alguma “nomenklatura” podia comprar, ao que se dizia. Às tantas, o anónimo fazia parte dela...

Anónimo disse...

Devo dizer que no tempo colonial a escolha de vinho português não era tão grande como as pessoas julgam
Sai de lá em Janeiro de 1975
Fernando Neves

Ex vizinho marxista disse...

Que saudades Patrão do inolvidavel Ccorredoura!

Abraço do Ex vizinho marxista

aamgvieira disse...

Grandes "vidas dos coveiros do dito colonialismo.....

correc disse...

Eu que tenho Corredoura como apelido, nunca tinha ouvido falar deste vinho, curioso.
Carlos Corredoura

Anónimo disse...

Eu também estive um mês no Trópico um pouco antes dessas datas, e o único vinho que existia era das Caves Acácio. Também achava piada ao empregado da sala de jantar, que apresentava a lista com muita cerimonia mas com prato único.

Anónimo disse...

Desculpe, mas só posso sentir tristeza. Grande descolonização a nossa!

Corsil Mayombe disse...

No Paris Versailles,a carta de vinhos era... magnífica!

Corsil Mayombe disse...

Ao anónimo O1:13,
Qual descolonização?

Anónimo disse...

AO anónimo das 21.23

A nossa descolonização, isto é, o nosso abandono, a nossa impotência, a nossa incompetência e a entrega daquela terra a uma guerra civil e a uma ditadura sem fim.... Melhores colonizadores do que descolonizadores, é o que vai ficar para a história!

Vou ler isto outra vez...