sexta-feira, julho 31, 2020

Saudades do senhor Aguieira


Ontem, perto de minha casa, ocorria uma mudança. Uma camioneta recolhia caixas de cartão, com os pertences de alguém. Estou numa idade em que já me permito o luxo de fazer coisas menos curiais. Abri o vidro do carro e perguntei: “Na vossa empresa, ainda alguém se lembra do senhor Aguieira?”

Três funcionários suspenderam, por momentos, o trabalho e olharam-me, como que surprendidos pela questão, sem a menor reação. Aproximou-se então um quarto membro do grupo, mais velho, a quem repeti a pergunta e que respondeu: “Quando entrei para a empresa, ainda se falava muito dele. Mas nunca o cheguei a conhecer”. Nem eles sabem o que o nome daquela companhia deve ao senhor Agueira! 

No MNE, em matéria de embalagem dos nossos haveres, quando partíamos de Lisboa ou mudávamos de posto, houve duas épocas distintas: o tempo do senhor Aguieira e o tempo que lhe sucedeu. Não sou do tempo antes do senhor Aguieira.

O senhor Aguieira pertencia a uma empresa de transportes que, por um daqueles mistérios que já não vale a pena tentar esclarecer, em outros tempos ganhava, com insistente regularidade, quase todos os concursos para o transporte dos bens dos diplomatas. 

Meses antes da viagem, ainda antes dos decretos da nossa nomeação "saírem", quando a nova colocação era apenas um rumor consistente pelos claustros das Necessidades, os diplomatas eram aproximados, pessoalmente ou por carta, pela empresa a que pertencia o senhor Aguieira, com o objetivo de pôr à disposição os respetivos serviços. Outras surgiam, mais tarde, mas quase todos acabávamos por preferir a empresa onde o senhor Agueira trabalhava.

O senhor Aguieira circulava pelos corredores do MNE, sempre de pasta na mão, como se fosse dos quadros da casa. Tinha o ar daquilo a que, em certa época, se qualificava como "um velho ministro de segunda" (sendo que "ministro" significa, no nosso jargão interno, "ministro plenipotenciário", bem entendido!, e “de segunda”, era sinónimo de “2ª classe”, ou melhor, que não era de “1ª classe”, o que fazia toda a diferença). Sempre a caminho ou a sair do "quarto andar" (a área administrativa da casa), o senhor Aguieira distribuía cumprimentos a muitos que ia encontrando pelos corredores, porque era estimado e apreciado genuinamente naquela casa. 

Em situações complicadas, o senhor Aguieira "desenrascava" tudo, colocando-nos no estrangeiro, sem custo, caixotes com coisas de que só muito tarde nos tínhamos apercebido que necessitávamos e deixáramos para trás. E, em Lisboa, guardava em armazem, por meses, pacotes ou móveis que não tínhamos onde deixar. 

Entrar em contacto pessoal com o senhor Aguieira era uma experiência magnífica. Homem de grande cordialidade e muito educado, tinha toda a rede necessária para nos facilitar a vida. 

Na minha primeira mudança para o estrangeiro, não tínhamos a noção da importância de contactar diretamente o senhor Aguieira. A minha mulher ligou um dia para a empresa, para tratar de uma qualquer questão relacionada com esse transporte. Por minutos, a chamada andou de um lado para o outro. Até que, esclarecidos de que se tratava da mulher de um diplomata, a puseram em contacto com o senhor Aguieira. A reação deste foi extraordinária: "Ó minha senhora! Porque não falou logo comigo? Andou aqui pela casa a ser tratada como "louça de Sacavém" quando, afinal, se tratava de "porcelana da Vista Alegre"!". E logo resolveu tudo. De forma inexcedível.

Quando, ainda nessa primeira saída, os meus livros chegaram a Oslo, embrulhados dois a dois, antes de serem colocados nos caixotes de cartão, recordo os olhos dos abrutalhados vikings encarregados da desembalagem, surpreendidos com o esmero do empacotamento do pessoal do senhor Aguieira. 

Na minha derradeira mudança, saindo de Paris, tive imensas saudades do pessoal do senhor Aguieira, ao observar o modo primário como por ali se embalavam os livros (“só ligas aos livros”, ouvi alguém queixar-se), sem cuidar da delicadeza de alguns. Tudo a esmo!

O senhor Aguieira já não é vivo. Conhecendo razoavelmente muitos dos meus antigos colegas, tenho a certeza de não estar só neste meu sentimento de simpatia para com a sua memória. O MNE de hoje, mesmo não o sabendo, tem saudades do senhor Aguieira, podem crer.

13 comentários:

Anónimo disse...

Em todos países onde cheguei com a as embalagens do Aguieira aconteceu o,mesmo do que com os teus Vikings, o espanto com a qualidade ímpar do Galama. O Aguieira desapareceu e aquilo veio por água abaix
Fernando Neves

Rui C.Marques disse...

Repito-me na formulação do desejo de publicação de livros de memórias.
Estarei na primeira fila para os adquirir.

Anónimo disse...

Bom ainda aguentou razoavelmente, com a mão do Sr. Esteves, o patrão. O sobrinho foi-se embora abrindo outra empresa concorrente, a Pantera Negra.
Conheci ainda o Sr. Aguieira. Uma simpatia. E depois fui bem tratado e sempre bem recebido pelo Sr. Esteves, o patrão.
A Galamas perdeu muito com o desaparecimento de ambos.

Filomena Aguieira disse...

Aqui vai a minha modesta e singela contribuição.

Senhor Embaixador Seixas da Costa,

O texto do Sr. Embaixador acerca do meu pai deixou-me especialmente sensibilizada. Como pode calcular, após tantos anos que o meu pai nos deixou, as recordações que referiu, invocam, de facto, a natureza, o espirito e a sua disponibilidade.

O meu pai, para além de um ser humano fabuloso (bem sei que sou suspeita!), era alguém com um apurado sentido de justiça e de sólidos princípios éticos, respeitador e responsável, sempre, por aqueles que dele dependiam, antes de mais os seus trabalhadores e colaboradores (como eu própria testemunhei) e depois a sua família. A sua responsabilidade era e sempre foi uma questão de dignidade, ele era mesmo assim, nada existia acima dos princípios e dos valores éticos!

Quer durante a sua vida, quer após a sua morte, tive demonstrações e provas dessa dedicação única e da sua postura muito própria acerca do cumprimento das suas obrigações e do seu dever. A educação e a cordialidade que refere, não constituíam um esforço ou um importe, não eram a sua forma de ser e estar, antes o respeito devido a quem se serve. A lealdade e a seriedade não só não as distinguia, como faziam parte do seu ADN pessoal e profissional. Foi sempre assim, mesmo quando lhe referiam que não tinha de assim ser!

Como filha, o texto sr. Embaixador interpelou-me e trouxe à minha memória todas essas marcas do meu pai, a quem devo a educação esmerada (como o esmero que colocava nas coisas simples que refere no seu texto), mas também a Liberdade que me ensinou desde pequena, como a mais responsável forma de saber estar na vida, sem constrangimentos com um único balizamento, o respeito pela liberdade dos outros.

Bem-haja Sr. Embaixador.

Com estima e a consideração,
Filomena Aguieira

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Filomena Aguieira. Recordo-me de uma conversa com o seu Pai em que este me disse que gostaria muito que uma filha (ou um filho?) ingressassem na carreira. Lembro-me que lhe dei algumas indicações, mas nunca soube da sequência do assunto. Tinha a ver consigo? Amigos cumprimentos. Francisco Seixas da Costa

Filomena Aguieira disse...

Estimado Sr Embaixador
Efetivamente esse desejo tinha a ver comigo , foram várias as conversas que partilhámos juntos,mas a minha opção foi a Medicina.Mais tarde tentou com os três netos que optaram pela carreia de Economia e Finanças,mas também nenhum seguiu a carreira Diplomática.
Respeitosos cumprimentos
Filomena Aguieira

Maria Filomena Aguieira disse...

Boa noite Sr Embaixador Seixas da Costa
Quando leio e releio todos os comentários aqui referentes ao meu querido pai não posso deixar de lhe estar mas agradecida pela estima que tinha por ele , e fico cada vez mais orgulhosa do pai que ele representou para mim e também para a comunidade.
Queria nesta data desejar um excelente Ano 2022 para o Sr Embaixador e respectiva família e aproveitar para lhe manifestar o prazer que me daria de um dia poder pessoalmente conversar com vossa Excelência.
Sou com estima e consideração.
Maria Filomena Aguieira

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Maria Filomena Aguieira. Nada tem a agradecer. Nós, no MNE, é que ficámos gratos pela simpatia e extremo profissionalismo do seu Pai. Por isso, pode crer, dele só ficaram recordações positivas. E tenho o maior dos gostos em podermos falar um dia. Podemos combinar pelo email franciscoseixasdacosta@gmail.com .
Excelentes Festas para si, com votos de excelente 2022.
Francisco Seixas da Costa

Maria Filomena Aguieira disse...

Boa noite Sr Embaixador Seixas da Costa
Tomei conhecimento agora da edição do seu livro “Antes que me esqueça “que julgo ser um livro de memórias.
Bem Haja por nos deixar o seu legado.
Terei o maior gosto de ter um exemplar , de o ler com a maior atenção e quando possível uma dedicatória de vossa excelência se me é permitido.
Aproveito para desejar umas Felizes Festas.
Sou com estima e consideração
Maria Filomena Aguieira

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Filomena Aguieira. Muito obrigado. Este post faz parte do livro, que lanço na Gulbenkian às 18:30 de 3a feira, onde teria muito gosto que fossem. Cumprimentos

Maria Filomena Aguieira disse...

Sr Embaixador Seixas da Costa
Será uma honra para mim este seu convite .
Irei sim com o meu marido , apenas necessito confirmar se é esta 3.ªf dia 28.
Gostaria que me confirmasse se é nesta data.
Com estima e consideração
Maria Filomena Aguieira

Francisco Seixas da Costa disse...

Cara Maria Filomena Aguieira. É amanhã, terça-feira, dia 28. Até lá!

Maria Filomena Aguieira disse...

Bem Haja Sr Embaixador
Lá estaremos com o maior prazer .
Até amanhã

Respeitosos cumprimentos
Maria Filomena

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