sábado, junho 26, 2010

Brasil - Portugal

O título deste post não tem nada a ver com o jogo disputado na sexta-feira entre Portugal e o Brasil. Refere-se apenas ao modo como as relações bilaterais são tratadas nas memórias do meu amigo Luiz Filipe Lampreia, antigo embaixador do Brasil em Lisboa e ministro das Relações Exteriores do seu país.

No "O Brasil e os Ventos do Mundo", livro que acaba de sair e que já estou a acabar de ler, aprende-se muito sobre o modo como a potência da América Latina olha as relações internacionais e, em especial, aquelas que são mais relevantes para o seu bem merecido processo de afirmação à escala global. Nesse olhar, há um espaço para a relação com Portugal, que deve ser lido na exata medida da importância que esta tem para a política externa brasileira. 

Anoto duas referências.

Na primeira, Lampreia lembra a crise dos dentistas - uma temática sensível. que deixou algumas feridas na memória pública brasileira. A perspetiva do então embaixador brasileiro em Portugal não valoriza suficientemente, a meu ver, um conjunto de fatores importantes na ordem interna portuguesa que condicionaram então a nossa atitude. Tenho esperanças que, da nossa parte, venha a aparecer ainda a público uma leitura deste caso, que possa "dialogar" eficazmente com a visão de Luiz Filipe Lampreia.

A segunda referência, no contexto da densificação das relações político-económicas bilaterais nos anos 90, prende-se com a CPLP. Registo o que diz: "Essa instituição vem prestando bons serviços à aproximação entre os países que partilham a língua portuguesa, ainda que seu escopo seja limitado e que no Brasil não exista nenhum entusiasmo com a instituição. Na alfândega em Lisboa, por exemplo, existe uma fila especial para os portadores de passaporte da CPLP".

O memorialismo diplomático brasileiro, ao contrário dos escassos trabalhos entre nós publicados, é imenso e tem uma grande importância para a fixação da história contemporânea das relações externas do Brasil.

sexta-feira, junho 25, 2010

"Notas Verbais"

A "nota verbal" é a forma de comunicação mais corrente entre os serviços diplomáticos. Tem esse nome porque, no passado, a entrega de um texto consagrava aquilo que fora dito num contacto pessoal.

Fez ontem precisamente sete anos, surgiu, na blogosfera portuguesa, o "Notas Verbais", um blogue dedicado à política externa e à diplomacia. O nome logo despertou  imensa curiosidade nos corredores das Necessidades, bem como nas suas antenas exteriores. O blogue trazia comentários e notícias sobre a atividade do Ministério dos Negócios Estrangeiros, muitas vezes incisivos, outras vezes neutrais ou meramente informativos.

Ao final de uns tempos de dúvida, o seu autor revelou-se: era Carlos Albino, um jornalista que (creio) iniciou a sua carreira no "República" e que viria, mais tarde, a ser responsável por uma secção de acompanhamento da vida diplomática no "Diário de Notícias". Como dado pessoal curioso, lembro que Carlos Albino teve um relevante papel no processo de transmissão da "senha" radiofónica que lançou o 25 de Abril.

Esta minha nota - que é escrita e não "verbal" - destina-se a destacar que, com intermitências (algumas bem longas), Carlos Albino mantém, com determinação, aquele que é talvez um dos mais antigos blogues portugueses. E que é um espaço opinativo que muito de nós, profisionais da diplomacia, visitamos, com maior ou menor regularidade.

Como é da natureza destas coisas, e que também diz bem da independência do autor, não foram (nem são) raras as vezes em que a minha leitura de algumas das questões que o blogue aborda diferiu, às vezes de forma muito contrastante, com a que era sustentada por Carlos Albino. Em alguns desses casos, porque estavam em causa pessoas que muito respeito ou posições com que eu discordava abertamente, entendi ser minha obrigação dizer-lho por escrito, com toda a frontalidade. Carlos Albino sempre teve a simpatia de acolher, sem acrimónia, essas minhas críticas ou divergências - e, como ele bem sabe. algumas mantêm-se ainda hoje...

Souto Moura

Os franceses ficam sempre encantados quando ouvem uma certa geração portuguesa expressar-se bem na sua língua. Embora lamentando muito, costumo acabar-lhes cedo com as ilusões, informando-os que, com algumas exceções, somos, em Portugal, uma "raça em extinção".

Ontem, ao ouvir Eduardo Souto Moura ler um belo texto num excelente francês - no qual assumiu a inspiração da sua obra na de Mies van der Rohe -, foi muito curioso ver o público presente na sessão anual da Académie de l'Architecture, aqui em Paris, prolongar essa ilusão de que Portugal permanece como sólido pilar do proselitismo linguístico da língua francesa. Não é verdade, infelizmente.

Souto Moura esteve em França para receber um prémio pela sua obra, dado pelos seus pares franceses, consagrando assim um reconhecimento internacional da arquitetura portuguesa que a todos nos honra.

quinta-feira, junho 24, 2010

Carta ao Mathis

Olá, Mathis

Soube há pouco, por um jornal, que não te deixaram entrar na escola, aqui em França, porque levavas vestida a camisola da seleção portuguesa. Os teus pais, ao que parece, ficaram aborrecidos com isso.

Queria dizer-te que não deves ficar preocupado com o que aconteceu. Pelos vistos, o objetivo da direção da tua escola foi evitar a possibilidade de outros meninos, de várias nacionalidades - a começar pelos franceses -, poderem meter-se contigo e criar alguma confusão. Se calhar, na tua escola, há meninos da Coreia do Norte...

É muito bom que tenhas sentido orgulho em usar a nossa camisola. A França é o país onde vives mas, como se viu, Portugal é o país que trazes no teu coração. É aqui que, provavelmente, irás fazer a tua vida, no futuro, mas isso não te torna menos português. A França é uma terra onde há muita gente que veio de outros países, como de Portugal, à procura de oportunidades para trabalhar. A França deu-lhes essa possibilidade e os portugueses retribuíram com o seu esforço, com a sua seriedade e a sua honestidade, para a riqueza da sociedade francesa. E aqui estão, também em sua casa. Ninguém deve nada a ninguém. E tu és a melhor prova do sucesso da integração dos portugueses em França, com a tua mãe francesa e o teu pai luso-descendente.

Os portugueses que aqui vivem devem ser sempre leais para com a França que os acolhe, da mesma maneira que a França tem de aceitar que tu, tal como os outros meninos que se sintam ligados a Portugal, possam mostrar isso, nas ruas ou nas camisolas. Pode discutir-se se a escola é o lugar mais indicado para andar com as camisolas da nossa seleção, mas, aos teus amigos de cá, deves lembrar que foi a Revolução Francesa, aquela que está na bela "La Marseillaise", que ensinou o mundo a lutar pela liberdade, a defender a igualdade entre todos e a demonstrar a nossa fraternidade perante os outros.

Para ti, caro Mathis, quero deixar-te um abraço bem lusitano e um convite para, um destes dias, vires, com os teus pais, visitar a Embaixada. E também espero que, qualquer que seja o resultado que a seleção portuguesa venha a ter no Mundial, tragas vestida a camisola das quinas. É que nós, os portugueses, temos por tradição ser muito orgulhosos do nosso país, tanto nos bons como nos maus momentos.

Francisco Seixas da Costa

Em tempo: leiam também o que o Tintin no Tibete escreveu. E vejam e ouçam a história, contada com fluência pelo próprio Mathis, aqui.

"Trivia"

Este post é dedicado a um amigo, que às vezes julgo que aparece anonimamente pelos comentários deste blogue, o qual, tal como eu, é dado ao domínio do misterioso significado de algumas palavras e expressões, comigo trocando livros, de há muito, sobre esse fascinante tema. 

Há umas semanas, uma importante personalidade política portuguesa, que viajava ao meu lado num automóvel, pelas margens do Sena, perguntou-me: "De onde é que vem o nome dos 'bateaux-mouches'?

Apanhado de surpresa - mas com a obrigação inerente a um diplomata em posto, que deve ter resposta pronta para tudo - respondi, com a imparável segurança dos que têm inconfessáveis dúvidas, que me parecia que a designação dada aos barcos que andam pelo Sena, cheios de turistas, derivava da suas grandes janelas de vidro, que se assemelhavam aos grandes olhos das moscas. Não fazia ideia de onde me tinha vindo essa súbita "sapiência", mas tinha-a na cabeça e preferi-a à versão, que ouvira ainda há pouco tempo, de que o nome derivava das vagas de moscas que, no Verão, pululavam pelo rio, atormentando os passageiros desses barcos.

Ontem à noite, estava a jantar numa "péniche", uma dessas embarações que estão ancoradas aos cais nas margens do Sena, onde vive um amigo meu de bom gosto e, ao ver passar um "bateau-mouche", suscitei a minha dúvida. E logo um conviva, mais sábio, me explicou: o nome é já do século XIX e deriva da antiga zona de la Mouche, em Gerland, a sul de Lyon, onde se situava um estaleiro em que os primeiros barcos (que viriam a ser utilizados para transporte de carga e passageiros no Sena) foram construídos.

"Voilà"! Às vezes, as coisas são bem mais simples do que pensamos.

quarta-feira, junho 23, 2010

"Bleus"

A propósito da episódica greve ao treino (e da mais prolongada "greve" aos bons resultados) da seleção de futebol de França, um amigo conservador deu-me ontem uma interpretação bem-humorada: "A França é conhecida, em todo o mundo, por ser um país de grevistas. Para estar à altura dessa tradição, só faltava sermos capazes de organizar uma greve de milionários. Agora já conseguimos!"

terça-feira, junho 22, 2010

Aristides Sousa Mendes

Gostava de ter tido ontem comigo, na Embaixada, aqueles que, em Portugal, insistem em não prestar tributo ao gesto do antigo cônsul em Bordéus, Aristides Sousa Mendes, que, nessa qualidade, emitiu alguns milhares de vistos, desobedecendo às ordens recebidas

Gostava de ver essas pessoas confrontadas com a emoção que observei nos olhos de uma cidadã judia, hoje americana, que nesses dias trágicos de Junho de 1940, esteve nas filas do nosso Consulado em Bordéus, entre muitos milhares de refugiados, e que ontem me contou pessoalmente como aí pôde obter um visto gratuito para entrar em Portugal, e daí partir para a liberdade.

Gostava de os ver fazer entender a essa senhora, olhos nos olhos, que Aristides Sousa Mendes não deveria ter emitido o visto que lhe salvou a vida e deveria, com exemplar zelo burocrático, ter seguido as determinações na Circular nº 14. de 11 de Novembro de 1939, segundo as quais "os cônsules de carreira não poderão conceder vistos consulares sem prévia consulta ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (...) aos judeus expulsos dos países da sua nacionalidade ou daqueles de onde provêm".

Gostava.

Coreia do Norte

Muito provavelmente, o meu sentimento patriótico não está, em matéria futebolística, à altura das circunstâncias. Ontem, ao assistir ao descalabro da equipa da Coreia do Norte perante a seleção portuguesa, e embora sabendo que um resultado folgado dava a Portugal uma margem de segurança importante para o apuramento para os oitavos de final, tive um insuperável sentimento de pena por aquele quase anónimo conjunto de jogadores, servido por um guarda-redes digno de um confronto entre-solteiros-e-casados. Para essa atitude contribuiu também o facto - provavelmente, pouco notado por muitos - de que os coreanos, em especial durante a primeira parte, praticamente não cometeram uma única falta, executaram um jogo disciplinarmente irrepreensível.

É que me recordei que, em 1966, no regresso a casa, depois da derrota por 5-3 contra Portugal, e não obstante terem então chegado bem mais longe na competição, os membros da equipa coreana e as suas famílias, segundo reza a história, acabaram por ter alguns problemas no seu país. Infelizmente, com o tempo, os tempos não mudaram muito para os lados de Pyongyang. Ontem, ao ver o resultado avançar para um registo de humilhação nacional, neste que foi o primeiro jogo de futebol transmitido em direto, desde sempre, pela televisão norte-coreana (!), não pude deixar de temer que agora possa acontecer coisa idêntica. A vida ensina-nos que, não raramente, a alegria de uns arrasta a tragédia de outros.

As mulheres e a diplomacia

Há semanas, ao entrar na sala onde ia falar aos novos "adidos de Embaixada" - a categoria de entrada na "carreira" -, não pude deixar de fazer um comentário de alguma surpresa pela circunstância de, entre os presentes, haver muito poucas mulheres. De facto, estava convencido de que, nos últimos anos, havia um progressivo reequilíbrio de género dentro da diplomacia portuguesa, correspondente, aliás, ao maior sucesso académico das mulheres na sociedade portuguesa atual. Pelos vistos, enganei-me.

Fiz parte do primeiro concurso de entrada de diplomatas para o Ministério dos Negócios Estrangeiros ao qual as mulheres portuguesas foram admitidas. Não por acaso, foi o primeiro realizado após o 25 de abril. Para quem não saiba - e para especial benefício de quantos por aí louvam ainda a bondade de hábitos da ditadura -, convém deixar claro que, até essa data, as senhoras não eram admitidas na diplomacia. Ou melhor, algumas senhoras andavam pelo MNE e pelos postos no exterior, mas apenas em lugares de secretárias, dactilógrafas, funcionárias administrativas e, em muitos escassos casos, como técnicas. Foi nesse concurso de 1975, de cujo júri fazia parte um jovem professor de Económicas chamado Aníbal Cavaco Silva, que foram admitidas as primeiras diplomatas mulheres, graças a uma anterior mudança no regulamento de admissão, da responsabilidade do ministro dos Negócios Estrangeiros Mário Soares.

Várias diplomatas assumem hoje importantes funções dentro do MNE ou em postos no exterior, nomeadamente em chefia de Embaixadas. Impõe-se que, no futuro, isso aconteça cada vez mais, porque se torna importante que a carreira diplomática portuguesa seja um espelho verdadeiro da própria sociedade portuguesa.

domingo, junho 20, 2010

Os sapatos

Seria possível? Seria a mesma loja? Erick olhava deliciado para o pequeno espaço que acomodava o sapateiro, naquela estreita rua da cidade perdida na Bretanha de onde saíra, à pressa, numa tarde de 1939, quando os alemães, que já haviam ocupado a sua Bélgica natal, avançavam pela França dentro.

Erick era então professor na cidade bretã. As suas origens judaicas haviam-lhe recomendado que procurasse sair de França, tão rapidamente quanto possível. Procurou a fronteira espanhola e, com a ajuda de amigos, conseguiu, algumas semanas mais tarde, chegar aos Estados Unidos. Por aí ficou a viver. Só no final dos anos 50 decidira voltar à Europa, à sua Antuérpia, já como turista. A curiosidade e a memória levou-o também a revisitar aquela pequena terreola da Bretanha, que ficara para sempre ligada a um momento complexo da sua vida.

Agora, perante essa pequena loja do sapateiro, uma recordação, que o acompanhara todos esses anos, mostrava-se bem viva: deixara aí uns sapatos para consertar e, na pressa da fuga, nunca os levantara. Quase vinte anos passados, uma imensa curiosidade fê-lo entrar.

A cara do velhote que o olhou, do fundo da loja, não lhe dizia nada. Mas não resistiu a perguntar se, por acaso, já estava por lá há duas décadas. O homem confirmou: era dono da loja desde sempre. Erick contou então a história dos sapatos que deixara para compor e que nunca tivera ensejo de levantar. O sapateiro olhava-o, com uma curiosidade que, contudo, não acompanhava a emoção de Erick. Não se recordava do episódio, naturalmente. Mas, a certo ponto, inquiriu: "que tipo de sapatos eram?". Erick lembrava-se, porque essa imagem ficara-lhe para sempre: "Eram castanhos, com um desenho levemente ondulado na zona lateral".

Abriu os olhos de espanto quando viu o sapateiro, sem uma palavra, dirigir-se para uma arrecadação interior, de onde saíram então uns ruídos de caixas a serem movidas. Até que a voz do sapateiro, lá de dentro, inquiriu: "Eram de cordões ou de pala?". "De cordões", respondeu Erick, cada vez mais perplexo com o jogo que se desenhava. E o sapateiro, ainda de dentro da arrecadação, voltou a perguntar: "Era uma sola descosida no sapato do pé direito?".

Erick não queria crer no que ouvia. Era isso mesmo! O homem descobrira os seus sapatos! Mas, rapidamente, uma núvem de desilusão lhe passou pelo olhar quando viu o sapateiro sair da arrecadação, sem nada nas mãos. O homem olhou-o com um rosto neutro, profissional, e esclareceu: "Estão prontos amanhã. Pode vir buscá-los da parte da tarde".

Não garanto, claro, a veracidade desta história. Contou-ma o meu velho amigo Frederico Amaral Neves, mais ou menos assim, ontem, ao final da noite, na pastelaria Gomes quase deserta, numa Vila Real em tempo de corridas de automóveis. Achei que merecia um lugar neste blogue.

sábado, junho 19, 2010

Diplomacia em livro

Durante algumas semanas, o mundo diplomático parisiense andou agitado com o anúncio da iminente publicação de um livro, escrito por um jornalista, que prometia pôr a nu os bastidores da diplomacia francesa. Porque tenho por vício antigo ler tudo quanto posso sobre a profissão que escolhi, e porque devo também confessar que não sou imune às fragilidades da curiosidade, comprei o volume e, em duas noites, esgotei as suas 394 páginas. E não gostei.

A obra é um potpourri mal escrito, feito de coisas requentadas, de histórias já conhecidas na imprensa, além de um repositório de pequenos ódios de chancelaria, cheio de insinuações e meias-verdades, de tradicionais vingançazinhas de corredor. Escrito "aos solavancos" e desenhado à medida de memórias individuais não inocentes, que têm atrás de si agendas pessoais evidentes e ódios a destilar, este livro acaba por ser "a montanha a parir um rato".

No género, com muito mais graça e muito melhor escrita, volto a recomendar o clássico "Les Ambassades", de Roger Peyrefitte, ou, mesmo, o seu menos interessante "La Fin des Ambassades". E, para quem se quiser rir de forma inteligente com a caricatura da nossa corporação, recomendo sempre o "Esprit de Corps: Sketches from diplomatic life", de Lawrence Durrell. E, mais recente, as divertidas memórias do embaixador brasileiro Guilherme Leite Ribeiro, "Os Bastidores da Diplomacia - o Bife de Zinco e Outras Histórias".

A diplomacia, há que dizê-lo, aparece sempre ligada a um certo glamour, produto de um modelo de outros tempos, que está bem longe de corresponder à sua bem mais comezinha realidade atual. Mas para quem ainda acha graça a cocktails e consegue descortinar um qualquer encanto em jantares formais, o nosso mundo deve parecer um paraíso.

Porque a vida dos diplomatas continua muito presa a esse imaginário, acabando muitas vezes por ser mitificada, ela continua a suscitar um certo voyeurisme, nomeadamente no registo social. que lhe está associado. Confronta-se ainda com uma cultura de despeito que lhe é frequentemente adversa, a qual afeta até alguns políticos - fiquem os leitores deste blogue a saber. Talvez por isso, esta espécie de "exílio" dito dourado é, muitas vezes, vista também com algum ressentimento por algumas outras categorias profissionais. Qualquer pecadilho cometido por um diplomata, por menor que ele seja, cai "como sopa no mel" de um certo jornalismo de escândalo, que desconheceria o facto se acaso tivesse sido praticado por um qualquer técnico de uma direção-geral de outro ministério. Ah! e para esse "jornalismo", o conceito de diplomata é sempre muito extensivo: vai de um profissional de carreira a um funcionário administrativo de chancelaria, passando, naturalmente, por esse mundo muito diverso que são os cônsules honorários.

Ao ler este livro sobre os meus colegas do Quai d'Orsay, onde identifico alguns amigos e conheço ou ouvi falar em muitos outros protagonistas, dou-me conta que, medidas as dimensões diferentes das  nossas carreiras, uma análise similar também poderia ser elaborada sobre os corredores das Necessidades. Valeria a pena? Duvido muito. Não somos muito diferentes. Todas as carreiras diplomáticas têm os seus bons e maus exemplos - no comportamento dos chefes, na vida privada dos funcionários, nos desregulamentos administrativos, etc. São mundos onde se refletem os efeitos do isolamento, das distâncias, dos problemas familiares, das inconstâncias de vida e outras especificidades próprias da profissão.

Correndo o risco de estar a trair um dever de casta, de poder contra mim suscitar uma omertà sem remissão, vou revelar-lhes um imenso segredo: somos exatamente iguais às outras pessoas...   

sexta-feira, junho 18, 2010

José Saramago (1922-2010)

O segundo prémio Nobel português (o cientista Egas Moniz recebeu, "a meias", um Nobel da Medicina, em 1949), ontem falecido, foi sempre um homem polémico. Por razões políticas, muitos não o apreciavam e alguns terão tido motivos pessoais para tal. Na literatura, algumas das suas ousadias estilísticas nunca foram bem aceites em certos meios. No plano pessoal, atitudes suas chocavam algumas pessoas e não ajudaram a consensualizar a sua imagem. Nunca se preocupou muito com isso. Por essa razão, o coro de loas que, na hora da sua morte surge por aí, cheira a muita hipocrisia.

Tive o ensejo pessoal de me cruzar com José Saramago, em diversas circunstâncias e em vários lugares do mundo. Tinha com ele uma relação pessoal de simpatia, extensiva a sua mulher, Pilar del Rio. Com ambos tinha combinado, ainda em 2008, no Rio de Janeiro, o projeto de o levar a Paris, para uma "Marathon de la lecture", ideia que a fragilidade da sua saúde não permitiu concretizar.

Faço parte de quantos gostam muito de algumas das obras de Saramago e, mesmo não gostando tanto de outras, o têm por um dos raros génios da nossa literatura. Alguns dão-se ao luxo lusitano de não concordar com isso, no que estão no seu pleníssimo direito. A esses, porém, convém lembrar que a sua opinião é indiferente ao mundo, que consagrou já José Saramago como um dos nomes portugueses mais prestigiados de sempre.

Gaullismo

A França com memória celebra, na data de hoje, o apelo feito há 70 anos, pela rádio, de Londres, pelo general de Gaulle, que consagrou o reerguer do seu país sob ocupação estrangeira.

Charles de Gaulle permanece uma figura política polémica, sem que isso signifique que não seja, a todos os títulos, uma figura maior da história francesa. A sua linha de ação política, de que alguns se reivindicam e de que outros se distanciam, continua a ser objeto de análise. As grandes orientações da sua política externa são regularmente evocadas e postas a par das opções contemporâneas que se abrem à França no campo internacional. No ano em que se celebram os 50 anos das independências africanas, o general é lembrado pelas decisões então tomadas nesse âmbito e pelo quadro da "françafrique" que geriu. Algumas das suas opções em matéria de política económica são hoje olhadas com curiosidade, à luz do intervencionismo que os últimos tempos acabaram por ditar. O carater espartano da sua vida e da sua postura é, frequentemente, constrastado com o dos seus sucessores no cargo.

Gostem ou não os franceses do general de Gaulle como líder político e partidário, o que parece incontestável é que, no seu apelo de há 70 anos, ele soube representar o mais profundo do sentimento da França como país. E essa memória permanecerá sempre como a marca mais prestigiante da sua imagem.

A nova ordem europeia

Confesso que não impressionam muito algumas reações de cariz nacionalista que contestam os modelos de coordenação das políticas orçamentais que ontem foram desenhados em Bruxelas. Não se pode ter "sol na eira e chuva no nabal", isto é, reivindicar o "chapéu" de proteção europeia quando as coisas correm mal e, ao mesmo tempo, pretender ter as mãos nacionais completamente livres para o desenho de decisões em matéria de agravamento do défice público, para satisfazer nichos de mercado eleitoral interno.

Não ignoro que o caminho que a presente crise obrigou a seguir comporta, em si mesmo, alguns riscos em matéria de legitimidade política, à escala nacional. Mais cedo do que alguns gostariam, a questão do conflito de competências entre as instituições políticas dos Estados e as estruturas (noto que não escrevo "instituições") europeias vai colocar-se, com grande acuidade. O assunto pode estar a ser menos sublinhado neste período em que todos estão ainda um tanto aturdidos pela crise, no qual as lideranças europeias demonstram que não conseguem mais do que ser reativas face aos mercados, mas estou convicto de que acabará por ser objeto de uma análise mais fria e mais fina, dentro em breve.

Porém, devo dizer que o que mais me preocupa, em todo o cenário que atualmente se vive, é que toda esta aparente "federalização" da gestão financeira europeia começa a assentar, já não nas instituições regulares, mas apenas nos arranjos, um tanto "ad hoc", impostos pela Alemanha e aceites pelos restantes parceiros como inevitáveis, cujo controlo democrático, a nível europeu, é hoje mais do que discutível. Haveria outra solução? Provavelmente não, mas isso não significa que não devamos pensar o problema, porque a democracia não é um conceito instrumental, mas sim uma condição "sine qua non" para a aceitação das soluções pelas pessoas. De certo modo, estamos, nestes dias, a assistir, no seio da Europa comunitária, a uma reprodução do novo modelo G20 à escala global, com a subalterinzação das instituições multilaterais regulares e a fixação de regras casuísticas ditadas pelos "powers that be".

Alguns, talvez com um realismo à flor da consciência, poderão, um tanto cinicamente, ser de opinião de que, se acaso as instituições decorrentes do Tratado de Lisboa fossem aplicadas em pleno como eixo de gestão das medidas para fazer face a esta crise, o resultado acabaria por não ser muito diferente. Para esses observadores, os desequilíbrios demográficos aceites e projetados por esse  tratado no processo decisório europeu, bem como a "subversão" interinstitucional que decorre do acordo que leva o nome da nossa capital, já haviam criado um dulcificado modelo de "diretório". Não sei se esses "realistas" têm ou não razão, apenas é evidente que já nem esses mecanismos são aplicados... A Europa está perigosa.

(Este texto foi publicado no jornal "Público" em 19.6.10)

quinta-feira, junho 17, 2010

Mário Ruivo

Foi o meu primeiro ministro dos Negócios Estrangeiros - dos 19 que já tive (é verdade!). Encontrámo-nos, há dias, por acaso, numa esplanada de Paris. Durante bem mais de uma hora apreciei, deliciado, o entusiasmo que coloca em tudo quanto continua a fazer e as memórias riquíssimas que conserva, de quem atravessou tempos decisivos para Portugal.

O professor Mário Ruivo é, de há muito, a alma por detrás do esforço de tratar os oceanos como uma das nossas mais preciosas riquezas. Em todos os tempos políticos e nas várias e (infelizmente) diferentes vagas de interesse, entre nós, sobre essa temática em que é um reputado especialista internacional, vimo-lo sempre como uma figura indiscutida e indiscutível, cujo prestígio ecoa por toda a parte, com grande benefício para Portugal.

Nessa bela noite de conversa, para além dos oceanos, falou-me de um mar de coisas, desde os seus alvores na política até à sua aventura governativa, dos tempos de Itália e do seu cruzamento com inúmeras figuras que por lá passaram, em momentos difíceis. Mário Ruivo é uma personalidade positiva, com uma dose de compreensão e de entendimento dos outros que traduz a delicadeza de uma grande senhor.

quarta-feira, junho 16, 2010

O sorriso

O ambiente era descontraído, a conversa ia mole, entre homens, com tudo o que isso significa de libertação da linguagem, por vezes a níveis vocabulares que o bom gosto desaconselharia. Esse era, contudo, o preço para garantir uma conversa fácil, entre amigos e amigos de amigos, alguns quase desconhecidos, ligados apenas pela vontade de um hora de convívio, nesse ambiente com sonoridades diversas de língua portuguesa. Da matriz imperativa dessa conversa faziam parte, claro, as mulheres.

O nosso diplomata, já há muito em posto, era uma figura bem conhecida dos meios sociais locais, havia-se cruzado, em todo o largo tempo que levava de vida na cidade, com tudo quanto "era gente", conhecia as figuras e as historietas que a cada uma estavam associadas. Como dizem os anglo-saxónicos, o nosso homem "went native", o que significa, muitas vezes, o risco acelerado de propensão para a asneira. Acontece a todos, podem crer...

Naquele fim de tarde, entre cerveja e whisky, a conversa derivou para uma determinada senhora, um figura pública localmente bastante conhecida, embora não pelos respetivos atributos estéticos, cuja ausência, aliás, contrastava com o seu conhecido proselitismo sentimental.

A certo momento da conversa, o nosso homem baixou a guarda da prudência social e lançou para a mesa: "É horrorosa! É uma das mulheres mais feias do mundo! Não entendo como tem tanto sucesso entre os homens". Parte dos circunstantes, apanhada a boleia da má-língua, logo adiantou comentários similares, alguns a roçar o mau gosto, espraiando-se pelos êxitos afetivos da senhora.

Até que, do fundo de um sofá, se ouviu a voz de um comparsa só conhecido de alguns, que até então se tinha mantido pouco loquaz: "Podem achá-la uma mulher feia, mas devem reconhecer que tem um sorriso muito bonito. Aliás, essa foi uma das razões que me levou a casar com ela".

Não valerá a pena tentar descrever a mudança no ambiente, depois desta frase de quem, sendo embora divorciado há muito da senhora em causa, havia feito questão, com apreciável garbo, de vir a terreiro defender a respetiva honra. O ambiente tornou-se irrespirável.

Gabriel Abrantes

Chama-se Gabriel Abrantes, é português, nasceu nos EUA em 1984. Está incluído na exposição coletiva «Dynasty», no Palais de Tokyo e no Musée d'Art Moderne, aqui em Paris. Estudou na École National des Beaux-Arts e é co-realizador de dois filmes de vanguarda, embora a sua obra se espalhe por várias outras dimensões artísticas.

Quem já viu os filmes em exibição em Paris diz-me muito bem desse trabalho. Um destes dias, vou passar pela exposição, que estará aberta até 5 de Setembro. 

terça-feira, junho 15, 2010

Osh


Quando Francisco José Viegas, em 1998, no seu romance "Um crime na Exposição", associou o Quirguistão (ou Quirguízia) ao tema da morte, estava, com certeza, muito longe de pensar nas inúmeras vítimas resultantes da guerra civil que agora devasta aquele pobre país da Ásia Central.

A geografia estratégica desenhada na região por José Estaline comporta algumas verdadeiras perfídias de separação étnica, com bolsas de isolamento em países vizinhos que são verdadeiras bombas ao retardador e que configuram hoje a triste herança que a defunta União Soviética deixou na Ásia Central. Há hoje dois "países" no Quirguistão e a zona de Osh, ao sul, não por acaso aquela onde se refugiou o ex-presidente Bakiev, quando há semanas foi afastado do poder no norte, em Bishkek, mantém um conhecido potencial de turbulência entre os quirguizes e os uzbeques. Osh está praticamente na fronteira entre o Quirguistão e o Uzbequistão, em cujo vale de Fergana tiveram já lugar, há anos, incidentes étnicos e religiosos da maior gravidade. A possibilidade de uma conflito entre os dois Estados ou uma tentativa secessionista não estão excluídos.

Há uns anos, andei em trabalho por essas zonas e hoje pergunto-me o que será feito das pessoas que, com grande dedicação, animavam a "clínica legal" criada em Osh, onde assisti a um magnífico esforço de popularização da justiça e do direito, numa iniciativa da comunidade internacional em que tanta esperança se colocava. E, com alguma nostalgia, também me interrogo sobre o destino do belo "bazar" da cidade (na foto), que, por mo terem descrito como um dos mais animados da Ásia Central, insisti em visitar. Da alegria natural daquela população simples, que a "descolonização" apressada de Moscovo deixou nas mãos dos ex-aparatchiks convertidos em novos líderes "democráticos", deve hoje restar muito pouco, depois das quase duas centenas de mortos que se espalham pela cidade.

"Horizons Lointains"

O debate acabou por ser um pouco mais tenso do que eu estava à espera - confesso! -, mas o visionamento do filme sobre Lisboa e a literatura portuguesa, incluído no ciclo "Horizonts Lointains", da cadeia televisiva franco-alemã Arte, baseado numa ideia dos irmãos Patrick e Olivier Poivre d'Arvor (na imagem), animou fortemente, ontem à noite, os salões da Embaixada.

O filme, de cerca de uma hora, constituiu uma visita guiada aos nossos mitos e sonhos, em conversas excelentemente conduzidas por Patrick Poivre d'Arvor com figuras da nossa cultura. Nelas se destaca uma entrevista muito interessante com António Lobo Antunes.

O filme tem a grande virtualidade de "abrir o apetite" para Lisboa e as suas novas escritas, para o Portugal cultural em rápida mutação. O público franco-alemão terá oportunidade de nos olhar um pouco para além do habitual registo de fixação na História e no cultivo de uma endémica nostalgia.

O aberto contraditório sobre o modo de representar filmicamente Portugal, no equilíbrio instável entre a tradição e a contemporaneidade, atravessou o animado debate que se seguiu ao filme, o qual mobilizou o interesse das mais de 100 pessoas presentes. No final, diga-se, fiquei com a sensação de que ninguém se importou em mergulhar em conhecidos "clichés" lusos: vinho do Porto, queijo da serra e pasteis de nata... 

Que triste, "Expresso"!

O "Expresso" considera que declarações "mesmo que feridas de ilegalidade" têm "um fundo de justiça". Estava à ...