Aqui deixo uma última história do 25 de abril de 1974.
Os voluntários foram mais que muitos, por
isso houve que selecionar a dúzia de aspirantes e alferes que se
disponibilizaram, naquele fim de tarde de 26 de Abril, para a operação de detenção do
almirante Henrique Tenreiro,
figura emblemática do regime caído na véspera.
À EPAM havia chegado a notícia de que o
idoso marinheiro, que entretanto navegara para a lucrativa indústria das
pescas, estaria refugiado a escassas centenas de metros do quartel, numa
moradia do outro lado da alameda das Linhas de Torres, residência da “Madame
Campos”,
então famosa produtora nacional de cosméticos.
Um bando armado, porque pouco mais era que
isso, lá partiu para o assalto. Montámos o “dispositivo” em torno da casa, num
granel de imprecisão, bem digno de tropas de Administração Militar, que já
haviam esquecido o pouco que Mafra lhes ensinara.
Recordo ser já noite quando o capitão
Leitão (o nome não era bem esse...) e um tenente bateram à porta da casa, conosco emboscados em volta, num
ambiente de alguma tensão, porque se dizia que Tenreiro podia estar protegido
por elementos da Legião Portuguesa.
A sequência à abertura da porta prenunciou
algum drama: a empregada que assomou, de avental e crista, recortada pela luz interior, esvaneceu à
vista das G-3, pelo que vimos o Leitão e o acompanhante arrastando-a, solícitos, para
dentro de casa, cuja porta entretanto se fechou.
Cá fora, entreolhámo-nos, silenciosos, à
cata de algum ruído, quiçá de tiros. Nada. Passaram aí dez minutos. A porta reabriu-se e
o Leitão e o tenente saíram, sorrisos nos lábios, com uma senhora idosa a acompanhá-los à soleira. Abandonámos as nossas discutíveis posições
táticas e juntámo-nos, em molhada, no pátio fronteiro à casa, ansiosos por
novas.
- Então?! O que é que se passou?.
O Leitão respondeu que tudo não fora mais do que um equívoco, que o Tenreiro não estava refugiado na casa, que apenas haviam
assustado três senhoras e a empregada e que, além delas, apenas havia na casa dois
cavalheiros de idade. Tudo, portanto, “nos conformes”. Um tanto de orelha
murcha, iniciámos o regresso ao quartel.
Já na descida da rampa, um céptico
lembrou-se de perguntar:
- E tu conheces o Tenreiro, ó Leitão? Não
seria um dos velhotes?
Estacou o bando, com o Leitão já a flutuar
na dúvida.
- Bem, de facto não conheço o Tenreiro,
mas perguntámos os nomes aos tipos…
Reinstalada a confusão, subsistia uma
questão magna:
- Alguém conhece o Tenreiro?
Um de nós disse:
- De fotografia, sim.
E lá regressou a tropa ao seu objetivo. O
Leitão voltou a bater à porta, entrou, terá explicado aos ocupantes da residência
o dilema operacional que nos atravessava e tem então lugar a seguinte e
edificante cena: fez assomar a uma das janelas os dois cavalheiros
idosos, a fim de ser feito o respectivo reconhecimento visual. Em definitivo, nenhum
era o Tenreiro.
E lá vimos o Leitão a sair da porta às
arrecuas, com muitas vénias para a sorridente senhora, no final de uma brilhante
operação militar, na noite em que não prendemos o Henrique Tenreiro.