Pierre Moscovici é hoje ministro da Economia e Finanças da França, uma das figuras proeminentes do executivo desse país. O primeiro cargo ministerial de Pierre Moscovici foi de ministro para os Assuntos europeus, no governo socialista que iniciou funções em 1999. Moscovici sucedera a Michel Barnier, hoje comissário europeu, de sinal político contrário, com o qual eu tinha excelentes relações, ao tempo em que era secretário de Estado dos Assuntos europeus. Se o entendimento com Barnier fora quase sempre muito bom, de início nem tudo iria correr bem com Moscovici.
Durante o primeiro semestre de 2000, período da presidência portuguesa da União, coube-me a presidência do grupo negocial da Conferência intergovernamental para a revisão do Tratado de Amesterdão. Moscovici convidou-me então a ir a Paris e, desde logo, ficou evidente que a nossa perspetiva se opunha abertamente à posição francesa perante aquela negociação. Foram seis meses muito tensos no debate institucional, reuniões houve em que o "clash" atingiu um tom de rara confrontação e, por mais de uma vez, fui forçado a fazer declarações públicas que chegaram a causar algum mal-estar político entre Lisboa e Paris. Porém, as coisas, para nós, eram muito simples. Não estávamos dispostos a deixar que o período da nossa gestão da negociação (que sempre se soube que só se iria fechar sob a presidência francesa, no segundo semestre do ano) pudesse ser aproveitado pela França (e por outros países que tinham posições idênticas às de Paris) para fixar certas linhas tendenciais que, posteriormente, pudessem colocar em causa o peso futuro dos países de pequena e média dimensão no processo decisório dentro da União. Pierre Moscovici defendia a sua perspetiva, eu defendia a nossa (e a de muitos países que conosco concordavam). Nada de mais natural na vida diplomática internacional, mas, seguramente, algo que contribuiu para manter as nossas relações, durante todo esse ano, num registo algo tenso.
No início da presidência francesa, em julho de 2000, a França viu-se forçada a organizar uma reunião informativa sobre as negociações do novo Tratado, com os países então candidatos ao alargamento. Meses antes, Paris havia colocado reticências a uma iniciativa idêntica tomada por Portugal. Porquê? Porque, tal como alguns dos maiores "poderes" dentro da União, a França entendia que os Estados candidatos não tinham nada a ver com a discussão institucional em curso, que deveria ficar fechada a "quinze" antes da sua adesão. Nós tínhamos uma posição absolutamente oposta: se as decisões a tomar iam ter implicações no peso futuro desses países no contexto comunitário, nada mais justo que ouvi-los, a montante da sua entrada. Também não nos era indiferente, devo confessar, o facto da esmagadora maioria desses Estados ser de pequena e média dimensão, o que "confortava" as posições que Portugal defendia. O modo positivo como os países candidatos haviam acolhido a iniciativa da reunião que promovemos "obrigou" então a França a proceder, embora claramente "à contrecoeur", de uma forma idêntica à nossa.
Pierre Moscovici decidiu organizar essa reunião dos "quinze" com os países candidatos em Sochaux, perto da sua circunscrição eleitoral, Montbéliart, no cenário muito curioso do museu da Peugeot, nessa cidade perto da fronteira com a Suiça.
Depois de uma longa introdução, em que sintetizou à sua maneira a leitura do curso dos debates durante a presidência portuguesa, que acabara uns dias antes, Moscovici, ciente de que eu não deixaria de fazer uma outra interpretação dessa negociação, decidiu provocar-me:
- Esta é a leitura que a presidência francesa faz do modo como as coisas correram durante a presidência portuguesa. Mas, porque tenho a certeza que o nosso amigo Francisco Seixas da Costa, que chefiou as negociações no primeiro semestre, tem uma perspetiva diferente, passo-lhe de imediato a palavra, embora ele ma não tivesse solicitado...
A sala sorriu. Eu, que já estava "picado" com a interpretação "biaisée" feita pelo meu colega francês, decidi ir a jogo de forma ácida:
- Muito obrigado, Pierre. Se não te importas, falarei em inglês (e mudei para essa língua, o que foi a primeira "resposta" à provocação). Devo dizer que fiquei impressionado pelo modo criativo como leste os debates havidos nos últimos seis meses. De facto, tens toda a razão: não vejo as coisas assim. Ao ouvir-te cheguei mesmo a pensar que tínhamos estado em reuniões diferentes. Mas isso pouco importa. Aos nossos amigos dos países candidatos, eu gostaria de dizer que o que se passou, até aqui, na Conferência intergovernamental e que se prolongará nos próximos seis meses, configura essencialmente uma luta pelo poder. Podemos dar-lhe outros nomes, argumentar com questões de eficácia ou legitimidade, mas é basicamente de poder que se trata. Ora o poder, no seio da União, tem diversas expressões. Por isso, convido os nossos amigos a olharem com atenção para esse pequeno aparelho plástico que têm diante de vós e que vos permite mudar a língua em que querem ouvir as várias intervenções. (Todos os olhares convergiram então para os cumutadores de interpretação). Se bem repararem, as opções de línguas possíveis são três: francês, inglês e alemão. Nenhuma outra língua vos é proposta. Percebem agora melhor o que quero dizer quando falo de uma questão de poder dentro dentro da União?
Continuei a minha intervenção num tom duro, confrontacional, expressando a nossa visão da negociação e deixando claro que, ao assumi-la, estávamos, por antecipação, a defender uma posição interessante para a maioria dos futuros membros. Às vezes, olhava de soslaio para Pierre Moscovici, que mostrava um fácies descontente com o rumo que eu estava a dar à reunião. Atrás de mim, Josefina Carvalho, a minha colega portuguesa, a nossa maior especialista em questões institucionais europeias, gargalhava baixo, juntamente com a minha adjunta, Ana Leitão. A maioria dos nossos colegas dos países do alargamento, que eu me esforçara na reunião anterior por "catequisar" para a bondade das nossas soluções, sorria, com alguma ironia, começando a perceber que a União onde iriam entrar podia ter momentos divertidos de discussão.
À saída de Sochaux, as minhas relações com Pierre Moscovici tinham esfriado muito. Até dezembro desse ano, iriam piorar ainda mais. "To make a long story short", a Conferência intergovernamental veio a desembocar no Tratado de Nice, onde os maiores países da União, muito graças à relutante atitude dos Estados de pequena e média dimensão, não viriam a conseguir os objetivos por que haviam lutado (quem quiser saber um pouco mais sobre isto pode ler
aqui). Anos depois, esses "grandes" países da União iriam conseguir esse seu desiderato através do Tratado chamado de... Lisboa! Mas isso é outra história...
O meu entendimento com Pierre Moscovici, que entretanto se "queixou" da minha obstinação num livro que publicou, viria a melhorar muito, depois desses tempos bem tensos. No quatro anos em que vivi em Paris, voltámos a encontrar-nos por diversas vezes, da mesa do "Café de Flore" a diversos almoços, antes e depois da sua nomeação como ministro. Conversámos bastante sobre a Europa dos dias que correm. E continuando a não pensar sobre ela rigorosamente o mesmo, convergimos hoje imenso sobre algumas das medidas de política necessárias para fazer face à crise que o projeto atravessa. E também sobre o que não deve e está a ser feito nas instituições europeias. E em alguns países.