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domingo, agosto 05, 2012

Almanaques

Na casa da minha avó paterna, em Viana do Castelo, um belo edifício frente à doca onde hoje se acolhe uma fundação musical, havia um escritório que, por quase uma dezena e meia de Agostos, se transformava no meu quarto. Recordo-me que, ao redor da cama, para além de uma escrivaninha, havia três armários envidraçados, dentro dos quais reluziam belas encadernações de livros, pertencentes a um membro da família que morrera ainda antes de eu nascer, o tio Túlio. A sua figura severa olhava-nos da parede, de uma fotografia em que aparecia com uma farda cinzenta de tenente da Cruz vermelha. Ao lado, num outro caixilho, que tilintava quando se lhe tocava, jaziam as suas condecorações. Os livros estiveram, por muito tempo, inacessíveis à ala mais jovem da família, fechados à chave. Estava por lá tudo o que era literariamente óbvio na pátria - Eça, Camilo, Júlio Dinis, Herculano, etc. - e uma imensa diversidade de obras estrangeiras, que assentava muito no realismo francês do fim do século XIX e, na área do ensaio, tinha coisas muito ecléticas e até cientificamente bizarras. Por razões que a memória da família não acolhe, recordo ainda existirem textos vários, em português e francês, sobre espiritismo. Só lá para os meus 13 ou 14 anos é que tive direito às chaves dos armários talvez porque, verdade seja dita, apenas nessa idade comecei a ter curiosidade em explorar alguma daquela livralhada. De início foi Jules Verne e os muitos Sandokan. Depois, aconselhado em segredo por primos mais velhos, aventurei-me, pelas razões naturais da idade, por literatura com páginas tidas por mais excitantes, num outro mundo de aventuras...

Mas todo este preâmbulo serviu apenas para dizer que, num dos armários, o tio Túlio tinha uma magnífica (e julgo que, à época, muita completa) coleção dos Almanaque Bertrand, umas dezenas de preciosos volumes de que eu bem gostaria hoje de ser proprietário (que será feito deles?). Embora a "cultura de almanaque" de alguns nossos conhecidos fosse sempre objeto de ácidas graças no seio da nossa família, a verdade é que esses belos anuários, que aliavam o caráter de repositório de memórias com anedotas, curiosidades, jogos, curtos textos literários, de humor e de divulgação, foram muito importantes para algumas gerações, num tempo sem televisão e com a rádio apenas a nascer, em que muita imagem era substituída por imaginação.

Nesta ensoleirada tarde de domingo, com a Bertrand do Chiado aberta (viva a crise!), adquiri, por uma muito módica quantia, o Almanaque Bertrand nº 72, relativo a 2012/2013. E, por mais de uma hora, na esplanada da Brasileira, em frente ao "Paris em Lisboa", na qualidade de quase único representante português na maré de estrangeiros que se fotografavam com o metálico Pessoa, diverti-me imenso com essa encadernada fonte de informação e distração. E recordei, com alguma saudade e gratidão, o tal tio Túlio que nunca conheci. 

Do Almanaque deste ano, deixo esta divertida definição (muito injusta, reconheça-se) do "Folar de Chaves": "grossas almofadas confecionadas a partir de restos de croissant e recheadas com bacon, linguíça, salpicão e espanhóis"...

quarta-feira, agosto 01, 2012

Eurico de Melo (1925-2012)

Há poucas horas, ao receber a notícia da morte de Eurico de Melo, que há muito desaparecera da cena pública, pus-me a imaginar quantos, dentre as novas gerações, saberão, afinal, quem era aquele que chegou a ser um dos mais influentes políticos nacionais, e que, aliás, esteve na soleira da chefia do poder executivo. Muito leal a Sá Carneiro e a Cavaco Silva, Eurico de Melo era talvez o mais proeminente representante de um certo PPD de extração não lisboeta, fazendo parte daquilo que a nomenclatura política designava então como os "barões" do partido. Com a sua forma inconfundível de falar nortenho, por muito tempo sempre visto com um inseparável cigarro, a sua saída da cena política coincidiu, não por acaso, com um evidente declínio do peso do norte do país no equilíbrio das decisões nacionais. E a sua morte é mais um marco do termo formal de um tempo que foi muito importante na história da família política do centro-direita em Portugal, que entre nós se convencionou designar por social-democrata.

Em inícios de 1987, e por razões que não vêm ao caso, tive a meu cargo, por alguns dias, a organização da visita oficial de Aga Khan a Portugal. A exemplo do que acontece em alguns outros países, foi escolhido como interlocutor do líder ismaelita a figura governamental imediatamente abaixo do primeiro-ministro. Neste caso, era Eurico de Melo, ao tempo vice-primeiro ministro e ministro da Defesa. O programa da visita incluía um jantar no Ritz. Os representantes de Aga Khan no nosso país solicitaram que, por razões religiosas, não fossem servidas bebidas alcoólicas durante essa refeição. Aceitar ou não um tipo de pedido deste género é uma questão com alguma sensibilidade, porque acaba por ter certas implicações políticas. Entendi, por isso, que seria prudente consultar o gabinete do ministro, tanto mais que também pretendia obter orientações sobre o tipo de presente que ele queria oferecer ao ilustre visitante.

No contacto telefónico que fiz com o gabinete, e logo depois de expor o problema, tive a surpresa de ser confrontado com a informação de que o próprio ministro queria falar comigo. Recordarei para sempre que, com imensa simplicidade e simpatia, Eurico de Melo, com a sua pronúncia inconfundível, me deu as suas instruções: "Quántu ao binho, o sinhôre dâutuar faz o que entiender: si as razuéns de Estado obrigarem, o sinhôre máunda puôr lá binho! E táumbém cuidado com o prieço da priênda. Eles estáum habituados a ter o peso do homem em oiro e nós náum nos pudiemos alargar. Bai cuma baoua Bistalegrezinha é já é bem báum...". Lembrámos esta história, divertidos, num jantar que lhe ofereci, em Estrasburgo, bem como a outros deputados europeus, creio que em inícios de 1996. 

Espero que ninguém se lembre de levar a mal esta memória em transcrição fonética, porque ela representa, da minha parte, uma homenagem colorida a um governante que não se escondeu atrás da sua importância e decidiu disponibilizar-se para falar com um simples e desconhecido funcionário, do outro lado da linha. Um homem do norte, é o que é!

terça-feira, julho 31, 2012

O convidado surpresa

O nosso embaixador havia-me dado me conta de que a sugestão que eu fizera fora vista com alguma perplexidade. Estava numa visita oficial ao Chile, a convite do respetivo governo, naquele final de 2000. No belo edifício que acolhe o Ministério das relações exteriores, o meu homólogo oferecia-me um simpático almoço. Com antecedência, perguntaram-me se eu queria convidar alguém, em especial. Eu disse que sim e indiquei um diplomata chileno, de quem era amigo pessoal.

A questão, para quem a entendesse como tal, é que esse diplomata era um antigo militar do exército de Pinochet, que havia acedido à diplomacia por essa via. O seu percurso na carreira diplomática chilena, no lento regresso da democracia ao país, embora com Pinochet ainda vivo, não estaria a ser muito fácil. Por essa razão, a minha sugestão, se bem que acatada com prontidão, terá sido vista com uma certa estranheza.

Para mim, tudo era muito simples: tratava-se de um amigo, com quem coincidira num posto no estrangeiro e com o qual, ao longo desses anos e nos posteriores contactos, nunca perdera um segundo a discutir política - talvez porque ambos sabíamos que, dadas as nossas opostas posições de partida, esse era, como foi, o segredo para deixar frutificar a nossa amizade.

Na minha intervenção durante o almoço, cuidei em saudar e agradecer a presença do meu amigo. A certo passo, veio à baila da conversa o meu programa de visita em Santiago. Na parte oficial, entre vários outros pontos, incluia-se uma deslocação ao palácio de La Moneda, para apresentar cumprimentos ao presidente da República em exercício. Ao falar-se da parte não oficial, dei conta de, nessa própria manhã, ter ido colocar um ramo de cravos vermelhos na campa de Salvador Allende.

Nesse instante, alguns olhares na mesa cruzaram-se, como que interrogando-se sobre o eventual antagonismo entre o simbolismo dessa homenagem e a escolha que eu fizera como meu convidado pessoal. Estou certo que este último, conhecendo-me bem, foi, seguramente, o menos surpreendido de todos os convivas, em face daquela minha revelação.  

quinta-feira, julho 26, 2012

Bletchley Park

Eu nunca aprendo. Nestes tempos de férias, dá-me sempre para ler coisas que só me fazem perder horas, com escasso prazer literário, apenas levado pela curiosidade. Às vezes, são obras de figuras menores da literatura portuguesa, passada ou presente, que visito para tentar perceber por que razão foram ou são sucessos. Outras vezes, são romances estrangeiros, policiais ou de espionagem, naquele tipo de edições que se podem molhar, sem pena, à beira da piscina. Já devia ter aprendido, mas não: enfio sempre estes barretes sazonais.

Ontem, depois de dia e meio de leitura (quando me aproximo de metade do livro, quase sempre dou uma "oportunidade" ao resto), terminei um livro de um tal Daniel Silva, de que me diziam maravilhas e que não passa de um sofrível "genérico" de Le Carré. A receita de construção da obra é vetusta, feita de pequenos capítulos de "suspense" acumulado, com uma tipificação dos "bons" e dos "maus" do costume, uma pitada ligeira de sexo para os públicos da "Caras" e coisas correlativas, incluindo sempre a figura de um "inteligente", que faz inferências implausíveis, com ar de anti-herói - fórmula bebida em Chandler e outros génios.

O romance passa-se, em grande parte, em Londres e, curiosamente, nas zonas muito próximas da nossa embaixada, o que não deixa de ter a sua graça a quem andou por lá. Mas a obra, em geral, é bastante mauzota. Porque um mal nunca vem só, surge no texto um diplomata português a colaborar com os nazis. Se o tal Daniel Silva é, como ouvi dizer, de ascendência portuguesa, bem podia ter evitado contribuir para mais uma degradação subliminar da imagem da pátria dos seus ascendentes.

Mas a razão por que trago o assunto aqui prende-se com a frequente aparição, no livro, de menções a Bletchley Park, o mítico local onde, durante a 2ª guerra mundial, funcionou uma celebrada estrutura de descriptagem das mensagens alemãs, que terá dado um importante contributo para a vitória aliada.

O local, dependente do famoso MI5 (serviço de contraespionagem), manteve-se fechado durante décadas. Um dia de 1994, li anunciado, numa obscura notícia num jornal, que, a partir desse fim de semana, Bletchley Park passava a ser visitável. Lá fui eu, de imediato, na data indicada, cheio de curiosidade.

À entrada, que surpreendentemente era gratuita, pediram-nos identificação. Disseram-nos então que, infelizmente, Bletchley Park ainda não era visitável pelo "público em geral". Quando fiz notar que estavam várias pessoas a aceder ao parque e às diversas instalações nele existentes, que fora anunciado na imprensa que haveria visitas públicas e que viéramos de Londres expressamente por essa razão, dei conta de algum embaraço nos nossos interlocutores. Depois de um bom quarto de hora de parlamentação e contactos telefónicos, lá fomos autorizados a entrar, num registo que me pareceu ser de alguma exceção. Fomos integrados num grupo de uma dezena de pessoas e, partir daí, fizémos uma interessantíssima visita guiada, durante quase duas horas, sob a orientação de uma senhora que não escondia que era membro do MI5. Ao longo desse tempo, dei comigo a relembrar o que tinha lido do local e dos seus momentos áureos.

No final daquela que fora a primeira visita organizada, desde sempre, a Bletchley Park, devo confessar que estava bastante contente por ter tido a experiência. A caminho da saída, numa troca de palavras com um outro visitante, e ao dar-se este conta de que éramos portugueses e, aliás, os únicos estrangeiros no grupo, interrogou, curioso: "What's your link with the British intelligence community?". Expliquei que não tínhamos a mais leve relação com os serviços de informações britânicos, que eu era apenas um diplomata português colocado no Reino Unido, neste caso movido por curiosidade histórica. O meu interlocutor abriu a boca, de espanto, porque, tanto quanto sabia, no primeiro mês, o acesso a Bletchley Park estava exclusivamente reservado a membros dos "British special services", e respetivas famílias, como era o seu caso. Estavam assim explicadas as dificuldades encontradas à entrada. E, claro, devemos ter ficado nos registos.

quarta-feira, julho 25, 2012

Krivine

"Sabes quem é aquele tipo, ali na mesa do canto? É o Alain Krivine". A revelação do meu amigo, feita no Café de Flore, há algumas semanas, trouxe-me à memória um outro tempo.

As tardes no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, respondendo aos deputados, durante a presidência portuguesa da União Europeia de 2000, tinham alguma graça. O secretariado-geral do Conselho preparava-nos umas respostas em "langue de bois", para as perguntas enviadas por escrito pelos deputados, com antecedência. A "emoção" estava, assim, nas réplicas a que os parlamentares perguntadores têm direito, feitas de improviso, muito mais "livres" e, às vezes, fugindo claramente  ao tema da pergunta. Devo confessar que me dava um certo gozo exercitar a minha criatividade discursiva nas respostas a essa segunda parte de cada intervenção. Quase tanto como olhar, de viés, para as caras ansiosas dos funcionários do Conselho, que tão ciosamente haviam preparado as respostas "by the book" e que viviam esses momentos de liberdade do representante da presidência com clara expetativa e burocrática angústia.

Entre os deputados eleitos para o PE houve e há figuras gradas da política passada de vários países, muito ministros e até primeiros ministros. Mas aqueles que me "saíram em rifa", nesse semestre de 2000, foram quase sempre obscuros parlamentares, com nomes algumas vezes muito estranhos, de sonoridades gregas, eslavas ou nórdicas. É que esse tempo é utilizado, quase sempre, para afirmação da devoção desses deputados a causas muito específicas, o que lhes permite uma saliência mediática de que os seus colegas mais conhecidos já não necessitam.

Numa dessas longas tardes de Estrasburgo, ouço o presidente do parlamento anunciar: "Dou a palavra ao deputado Alain Krivine". Acordei do marasmo com aquela menção e, de imediato, procurei, no imenso areópago quase vazio, colocar um retrato no nome acabado de anunciar. O nome de Alain Krivine dizia-me alguma coisa. Figura histórica do trotskismo francês, havia sido candidato à presidência da República, não me passando a mim pela cabeça que fosse então deputado europeu.

Anos antes, no início da década de 70, numa visita a Paris, eu fora arrastado por uns amigos para assistir a um comício da "Ligue Comuniste Revolutionnaire", que teve lugar na "Mutualité", perto da Sorbonne. A LCR era um grupo trotskista com certa expressão na esquerda francesa e, embora as teorias de Trotsky pouco me dissessem, achei graça assistir a um comício dessa extrema-esquerda - num tempo em que, em Portugal, apenas a União Nacional e a sua sucessora Ação Nacional Popular reuniam em público sem medo de vigilância policial.

A pergunta que Krivine fez à presidência portuguesa foi, como era de esperar, violenta e agressiva, sobre uma temática que já não recordo. Devo confessar que tenho ideia de que a  minha resposta foi mais "soft", nostalgicamente atenuada pela memória de um passado no qual, embora de forma menos radical, eu também acreditava em que os "amanhãs" poderiam vir a cantar. Depois, foi o que se viu...

Naquele final de tarde no Flore, perguntei ao Francis, que vagueava patronalmente entre as mesas, o que é que Alain Krivine estava a beber. Era um Chablis. Pedi outro para mim. Afinal, como dizia Voltaire, "les beaux esprits se rencontrent".

sexta-feira, julho 20, 2012

José Hermano Saraiva

José Hermano Saraiva, que acaba de desaparecer, foi um improvável ministro da Educação do último governo de Oliveira Salazar. Simples professor liceal, terá sido a sua fidelidade ao Estado Novo, aliada a uma inteligência viva e uma inegável capacidade de ação, que lhe assegurou a ascenção política. Ainda estou a ver a fotografia da tomada de posse, em Belém, ao lado de Américo Tomás, de fraque e calças de fantasia, em Agosto de 1968, na qual, recordo, surge também uma outra personalidade que há dias faleceu, embora num relativo silêncio mediático, Justino Mendes de Almeida.

Dias depois, Salazar cairia da cadeira de lona e, semanas mais tarde, os equilíbrios do regime fizeram com que Marcello Caetano confirmasse José Hermano Saraiva no cargo.

Não foi nada fácil a tarefa do ministro. Como ponto "alto" das questões que teve de gerir, recorde-se a "crise de Coimbra", em 1969. Quem viveu esse período lembra-se bem dele, ao lado do presidente Tomás, na inauguração do edifício das Matemáticas, em Coimbra, nesse tenso e verdadeiramente único momento em que Alberto Martins teve a coragem de pedir a palavra, em nome da academia, naquele que viria a ser o início de um dos maiores protestos de contestação universitária vividos em Portugal.

A agitação universitária propagou-se a Lisboa. No ISCSPU, José Hermano Saraiva decidiu não "homologar" a lista eleita da Associação académica, de cuja direção eu fazia parte (ver aqui um relato do nosso encontro com o ministro). Ficou claro que Marcello utilizou então Hermano Saraiva para afastar, do ISCSPU, o seu rival político Adriano Moreira, personalidade com a qual, à época, as lideranças académicas decidiram, taticamente, solidarizar-se. Isso veio a redundar numa invasão do Instituto pela "polícia de choque", chefiada pelo capitão Maltez, e pela dissolução dos órgãos legítimos da Associação, que passou a ser dirigida por uma complacente "comissão administrativa".

Com o tempo, Marcello Caetano substituiu Saraiva por Veiga Simão. No que me toca, devo dizer que a mudança não ajudou muito, porque não tive o ensejo de apreciar, em excesso, as credenciais, ditas liberais, do novo ministro: em 1972, como presidente eleito da Assembleia geral dos estudantes do ISCSPU, voltei a ver a minha escolha não "homologada" pelo novo ministro. Mas isso deve ser sina pessoal...

Usufruindo da oportunidade dada pela Democracia, José Hermano Saraiva viria a fazer escola como divulgador televisivo, e não só, da História pátria, confirmando a perceção de que a historiografia permanece como um dos poucos domínios culturais onde o pensamento conservador preserva uma certa notoriedade pública. A sua capacidade de "contador de História" era inegável e, embora muitos achem que isso foi muitas vezes feito em detrimento de algum rigor científico, a verdade é que ele terá contribuído para despertar o interesse pela História de Portugal - e esse será um importante serviço que o país, sem a menor dúvida, lhe ficou a dever.

Em tempo - Não notei, como devia ter feito, que José Hermano Saraiva foi embaixador "político" em Brasília, nos tempos que antecederam o 25 de abril.

terça-feira, julho 17, 2012

Governantes e governantes

Um dia, bem à minha custa, aprendi que, em Portugal, há dois tipos de membros do governo: os que já foram deputados e os que, emergindo da sociedade civil, sendo ou não militantes de partidos, nunca antes se sentaram nas cadeiras parlamentares. E há um mundo de diferenças entre eles.

Embora o não digam alto, os partidos políticos veem com maus olhos a escolha, pelos primeiros-ministros, de personalidades oriundas da "sociedade civil" que, por virtude de alguma especialização temática, são alcandoradas a postos governamentais.

Pode haver alguma razão nesta atitude: quem se dedica à política tem a legítima expetativa de, subindo o seu partido ao poder, poder ter direito a ocupar lugares no executivo. Ver uns "paraquedistas" ultrapassarem-nos, não deve agradar a quem se considera ungido pelo voto popular e, por essa razão, tem muito mais legitimidade para governar. Só que os partidos não desconhecem que a inclusão desse tipo de personalidades acaba por credibilizar os próprios governos, porque lhes garante uma componente técnica valiosa, com reflexos na sua imagem junto da opinião pública. No outro prato da balança, verifica-se que a falta de "calo" político faz com que, muitas vezes, essas figuras de perfil demasiado técnico, quando sujeitas às tensões da vida política e, muito em particular, às exigências da vida parlamentar, possam derrapar. Foi o que me aconteceu, um dia, em 1996.

Eu tinha ido à Assembleia da República para defender já não sei bem o quê, na minha qualidade de secretário de Estado dos Assuntos Europeus. Ao meu lado, na bancada do governo, estava o então secretário de Estado dos Assuntos parlamentares, António Costa.

Fiz a apresentação que tinha preparado e, como é de regra, preparei-me para a chuva de perguntas que se seguiria. Fui tomando notas, para lhes responder em conjunto, no final. 

Uma das intervenções, de um deputado da oposição, tinha apenas uma questão irrelevante, que era um evidente pretexto para um discurso doutrinário de oposição geral, e a meu ver gratuita, à política europeia do governo. Logo que acabou de falar, saiu da sala, sem sequer aguardar pela minha resposta. Fiquei furioso.

No meu período de respostas, deixei para o fim a resposta a esse deputado, que tinha muito baixa estatura. Fazendo-me surpreendido, disse: "Relativamente à questão colocada pelo senhor deputado Fulano - que eu não consigo vislumbrar atrás da sua bancada... - devo dizer que fiquei perplexo, porque não me ficou claro o que pretendia com a sua intervenção. Por isso, e porque considero que não há nada de concreto a que eu possa responder, talvez seja legítimo concluir que o que disse se insere na preparação de curriculum para aquilo que consta serem as suas ambições a futuro líder parlamentar do seu partido".

Mal eu tinha acabado a frase e logo o António Costa, ao meu lado, me disse, alarmado: "No que você se foi meter! Agora, isto vai ser bonito". E foi. Ouvi logo um bruá vindo do lado do grupo parlamentar do partido do tal orador, um evidente mal-estar nas caras dos deputados do partido que apoiava o governo e, de imediato, um pedido urgente de palavra de um deputado ao presidente da Assembleia para "defesa da honra da bancada".

Fui "desancado" pelo deputado interpelante, que considerou que só podia levar à conta da minha "falta de experiência política" o que acabara de passar-se e que exigia um pedido de desculpas da minha parte. O António Costa perguntou-me o que eu queria fazer. Respondi-lhe que desculpa não pedia, porque considerava que a saída da sala do deputado que eu criticara era um gesto deselegante e que a minha reação fora motivada por isso mesmo. Com a sua maior experiência, o António Costa levantou-se, tomou a palavra e deu, com grande habilidade, a volta à situação, deitando "água na fervura", para meu grande sossego.

Na realidade, eu cometera uma grande imprudência e fora vítima do meu estatuto. A imprudência foi, desde logo, ter-me imiscuído na vida interna de um outro partido, o que fiquei a saber não ser aceitável pelas regras parlamentares consuetudinárias. Mas também aprendi que o facto de nunca antes ter sido deputado me criava uma posição "diminuída" perante os eleitos presentes na sala. Eu não era "um deles", pelo que estava longe de poder ter um estatuto para poder enveredar por graçolas que, se porventura fossem ditas por antigos colegas, teriam sido muito melhor toleradas.

domingo, julho 15, 2012

Credenciais

A apresentação de credenciais por um embaixador, junto de um chefe de Estado estrangeiro, é um ato protocolar que difere bastante de país para país, dependendo dos usos e costumes locais, muitos deles marcados pela respetiva história. Em muitos casos, o próprio chefe de Estado introduz alterações às práticas nacionais, de acordo com a sua personalidade.

Foi o que sucedeu, aqui em França, com o presidente Nicolas Sarkozy. Sendo Paris uma das capitais do mundo com maior número de embaixadas, e tendo alguns países a propensão para não deixarem os seus embaixadores "aquecer o lugar", o ritmo de apresentação de credenciais acaba por ser muito intenso. Ao que me dizem, o presidente Jacques Chirac, não obstante o peso desse formalismo, fazia questão de falar uns minutos com cada novo embaixador, deixando perguntas ou comentários que tocavam as relações bilaterais. O seu sucessor, Nicolas Sarkozy, tinha optado por um fórmula mais "leve". Cerca de 20 novos embaixadores eram colocados, lado-a-lado, numa sala e o presidente cumprimentava-os sucessivamente, recebendo as respetivas cartas credenciais, as quais, de imediato, passava para o lado, para um seu colaborador, deslocando-se para frente do diplomata seguinte, até concluir a vintena de cumprimentos.  Nessa altura, os embaixadores eram chamados a colocar-se numa espécie de semi-círculo em frente ao presidente o qual, por escassos minutos, trocava com alguns deles umas palavras de circunstância. Alguns colegas entenderam sempre este método demasiado expedito e menos conforme com a dignidade da sua função como representantes de um Estado estrangeiro. Outros compreendiam que, com uma agenda política carregada e com as relações diretas entre os chefes de Estado e de governo a processarem-se, nos dias de hoje, muitas vezes diretamente, era pouco sensato estar a pedir ao chefe de Estado francês um maior dispêndio de tempo. 

Em 2009, na minha apresentação de credenciais, testemunhei uma cena curiosa. Eu tinha acabado de saudar o presidente francês, deixando-lhe, em brevíssimos segundos, uma palavra de identificação de quem eu era e entregando-lhe as minhas cartas credenciais. Nicolas Sarkozy passara, de imediato, para o diplomata seguinte, uma senhora, representante de um país africano, que procedeu de forma idêntica à minha. Ou quase. Mal o presidente havia seguido para a cena com outro embaixador, senti um toque no braço, por parte da minha colega, que, em voz baixa e preocupada, me disse: "Que acha que devo fazer? Esqueci-me de entregar ao presidente as minhas cartas credenciais!", mostrando-me, com uma cara algo angustiada, o seu envelope. A cena fora tão rápida que o presidente nem notara que, além do cumprimento, não recebera o documento que oficializava a qualidade da embaixadora. Sosseguei-a: "Não se preocupe, dá isso depois a alguém...". E tudo se resolveu, acabada a cerimónia, com a discreta entrega do envelope ao chefe do protocolo, que sorriu, divertido, perante o relato do sucedido.

Noutros quadrantes, as cenas podem ter outro sabor e picante, como, há anos, contei aqui

quarta-feira, julho 11, 2012

Contraditório

Por via de uma vida que me obriga regularmente, com algum gosto, a expor e debater ideias, fiz e continuo a fazer parte de painéis de um imensidão de colóquios, congressos, seminários ou coisas similares. Às vezes bem interessantes, outras vezes nem por isso.

Nesse mundo, há uma figura pública portuguesa, que já teve experiência governativa, com quem me cruzo, desde há muito. Temos visões políticas opostas, olhamos as coisas de maneira muito diferente, raramente coincidimos no modo de abordar as questões. Conhecemo-nos há mais de quase quatro décadas, temos modos muitos diversos de estar na vida e, por coisas que não vêm para o caso, cultivamos ambos uma espécie de insustentável tendência para nos "picarmos" em público. No meu caso, entretenho-me a procurar descortinar pontos que considero fracos no seu argumentário para depois os tentar desmontar de uma forma crítica, quase sempre sem me poupar a alguma ironia. No caso dele, julgo que é pior: quase nem precisa de ouvir o que eu digo para logo me atacar. Andamos neste "jogo" há anos.

Um dia, numa universidade americana, onde ambos éramos convidados para uma conferência, estávamos colocados em painéis diferentes, o que reduzia as hipóteses de um aberto conflito público. Eu fiz a minha apresentação, após o que a pessoa que dirigia a sessão abriu o debate ao auditório. Desse mesmo auditório, levantou-se então esse meu contraditor de estimação que, com ênfase, deixou logo claro que não concordava com o essencial do que eu tinha afirmado e com a perspetiva que eu defendera. E partiu daí para uma longa intervenção, disfarçada em pergunta, na qual, devo confessar, eu reconhecia muito pouco daquilo que tinha dito. Nada que fosse novo.

A meio dessa intervenção, sempre bem articulada e até com alguma graça, um colega de painel, creio que francês, disse-me ao ouvido: "Não percebo por que razão ele o está a contestar!". Divertido, respondi: "Não se surpreenda. É sempre assim. Já é uma velha história, entre nós". Ao que ele esclareceu: "Não é isso! É que ele não ouviu nada do que você disse. Ele entrou na sala no momento em que você estava precisamente a terminar a sua intervenção..."

Ontem, em Lisboa, cruzámo-nos, por acaso, e, naturalmente, saudámo-nos com a cordialidade conflitual que nos torna eternos adversários de estimação. 

segunda-feira, julho 09, 2012

O poder dos intérpretes

É uma rua "paralela" à Étoile: rue de Presbourg. Passei por lá há pouco. O tempo de um semáforo deu-me oportunidade de atentar na explicação de ser o antigo nome de Bratislava, hoje capital da Eslováquia.

Fui a Bratislava, pela primeira vez, como turista, ainda no tempo da Checoslováquia. Em termos de beleza, não se compara com Praga, sendo embora uma cidade bastante agradável para viver, ao que me dizem. Um choque de modernidade provocado no tempo do "socialismo real" construiu-lhe, no centro, uma sinistra ponte sobre o Danúbio, que rasgou o coração histórico da cidade, arrasando um bairro judaico, destruindo uma zona que deve ter tido uma apreciável unidade arquitetónica. Agora que ando pela UNESCO, refletindo nos atentados ao património, tenho pensado nisso com alguma frequência.

Desde então, fui várias vezes a Bratislava, em especial quando vivi em Viena. Em fins de semana, ia por lá à ópera, para simples passeio ou para a feira de antiguidades. E tenho hoje por lá amigos eslovacos.

Um dia, creio que 1997, recebi em Lisboa o presidente do parlamento eslovaco, Ivan Gašparovič. O país era então candidato à União Europeia, mas o governo autoritário eslovaco, chefiado por Vladimir Mečiar, era execrado pelos países comunitários, sensíveis aos justos protestos da oposição sobre as limitações colocadas à liberdade da comunicação social, às inaceitáveis pressões sobre a vida política e aos métodos brutais da sua polícia. 

No encontro que tive com o meu interlocutor eslovaco, para além de expressar a simpatia de princípio de Portugal pelas aspirações europeias do país, repeti, com a necessária delicadeza de termos que a ocasião e o seu elevado estatuto impunham, as preocupações que o estado de coisas que se vivia no país a todos criavam - e neste "todos" incluía outros países candidatos à adesão, que viam o seu processo sofrer atrasos pela singularidade negativa do exemplo eslovaco.

A conversa foi feita por intermédio de um intérprete eslovaco, que insistiu em que eu falasse português. À medida que ia ouvindo a versão que lhe era dada das minhas palavras, notei que o meu interlocutor ia ficando nervoso, crispado e muito tenso. O que eu dizia, porém, bem como a forma que eu utilizava para o dizer, não justificava minimamente esse estado de espírito. Na resposta que deu à minha intervenção, contestou, com alguma rudeza, o que acabara de ouvir. E, de forma um tanto inopinada, apressou o fim da reunião. Fiquei algo perplexo, mas não liguei muito ao assunto.

Dias mais tarde, ao nosso embaixador em Viena, acreditado em Bratislava, chegou um protesto informal das autoridades eslovacas, reclamando pelo modo, tido por menos cordial, como eu tinha interpelado a segunda figura da hierarquia do país. Lembro-me de ter reagido e, já não sei bem como, fiz chegar a minha maior estranheza pela ocorrência ao meu contraparte no governo eslovaco, que conhecera brevemente numa reunião em Bruxelas. Se há tradição que a diplomacia portuguesa tem é a preservação do diálogo e uma constante prática de cordialidade, mesmo em momentos mais tensos, onde a firmeza se impõe. Eu sabia muito bem o que tinha dito, e que diria de novo, e se havia alguém que era culpado de qualquer "misunderstanding" essa pessoa era o intérprete eslovaco. Mas como me era possível provar isto?

Pouco tempo depois, percebi que algo tinha mudado: recebi um convite oficial para me deslocar à Eslováquia. Era uma visita com algum risco, porque não se podia permitir que fosse aproveitada pelo regime como traduzindo um gesto que indiciasse qualquer fragilização da atitude crítica que prevalecia na Europa sobre o comportamento do regime. Insisti, por isso, em encontrar os principais partidos políticos de oposição, tendo visitado a sede de um deles e recebido dois outros responsáveis oposicionistas no hotel. Esta é uma prática que nunca agrada aos nossos anfitriões oficiais, mas coloquei-a como condição sine qua non para a realização da visita. E, para evitar declarações isoladas à imprensa, proferi uma conferência sobre o processo de integração num instituto dedicado aos estudos europeus, com uma surpreendente enchente e um animado debate.

Apenas um pormenor mais. No programa da visita, pedi que fosse incluído um encontro com o interlocutor que encontrara em Lisboa, para lhe apresentar cumprimentos. Não tinha disponibilidade, como eu imaginava. Ivan Gašparovič é hoje presidente da República da Eslováquia.

Várias vezes me tenho interrogado sobre a quantidade de confusões políticas que os intérpretes já devem ter provocado por esse mundo fora.

quinta-feira, julho 05, 2012

A pasta

"Ils sont venus, ils sont tous là", fazia lembrar a canção de Aznavour. Era a conferência de Londres sobre a ex-Jugoslávia, nesse mês de agosto de 1992, vai para 20 anos. À volta de uma longa mesa no Carlton Tower, na Cadogan Place, estavam lá quase todos: Slobodan Milošević, o sérvio, Franjo Tudjman, o croata, Alija Izetbegović, o bósnio muçulmano, além de muitos outros, do Montenegro à Macedónia. Pelo corredores, sem assento na sala, a cabeleira desalinhada do sérvio bósnio Radovan Karadžić desdobrava-se em conciliábulos.

Era a Jugoslávia em desagregação que por ali se discutia, por esses dias. Ninguém pode falar pelos sentimentos dos outros. O meu, porém, sentado na delegação portuguesa, era o de que não havia nenhuns inocentes entre essas figuras, todas elas envolvidas numa luta de ódios ressentidos, de vinganças históricas, de contabilidades mórbidas, procurando desforra de massacres passados, naquilo a que um jornal britânico chamou, à época, as "batalhas dos avós". As potências exteriores relevantes faziam então ares de neutrais, de apaziguadores, mas, por detrás, iam alimentando ou contemporizando com aqueles que davam garantias de contribuírem para um saldo final favorável aos seus interesses estratégicos. 

O mundo multilateral de então, pelas mãos de Boutros-Boutros Gali, secretário-geral da ONU, e de John Major, o primeiro-ministro britânico, que co-presidiam à reunião, tentava o impossível para gerar um acordo formal que pudesse atenuar o que já estava a ferro-e-fogo. 

A conferência de Londres foi um fracasso. À hora de almoço, fomos todos para o Queen Elisabeth II Center, onde os britânicos tentavam compensar com um sofrível "catering" o parco resultado de umas conversas de onde cada um julgava ter saído com uma fatia da vitória. 

Eram mesas redondas, com "self-service". Coloquei a minha pasta junto de uma cadeira e fui servir-me. Quando voltei, encontrei o lugar ocupado pelo então diretor político do MNE, o embaixador Pedro Ribeiro de Menezes. Fui sentar-me noutra mesa. 

Passou uma boa meia hora, comigo à conversa com um parceiro do lado. Num certo momento, vi passar junto à minha mesa, em andar apressado, dois ou três figurantes com ar de seguranças, com um tom que se adivinhava de algum alarme. Pensei que fossem atenuar um qualquer conflito, num ambiente político de tensão que só o podia estimular. Vi-os parar junto da mesa onde estava o Pedro, cuja figura alta se destacou então, para, segundos depois, se afastar com alguma pressa. À volta desse lugar, fez-se então um grande vazio de gente, uma espécie de cordão "sanitário". Do meio desse espaço de segurança, nas mãos de um dos polícias, que vejo eu emergir? A minha velha pasta, rotunda de papeladas, lenta e prudentemente transportada ao longo da sala. 

Comprada nos anos 60 na rua da Trindade, no Porto, era do tipo "de engenheiro" e tinha-me custado o suor das minhas economias. Estava sempre atulhada de livros e jornais, pesava "toneladas", como as minhas costas aprenderam. Já fora preta, agora estava descolorada, os seus fechos eram pré-históricos, mas tinha (e tem) um ar decadente ainda hoje me encanta. 

No silêncio que entretanto se criara, quebrado por sussurros, eu disse alto: "It's mine! That briefcase is mine!". Dezenas de olhos voltaram-se então para mim, para o imprudente e descuidado proprietário de uma pasta velha, abandonada junto de uma mesa, no meio de uma reunião internacional onde toda a segurança era pouca. Pensava-se que seria uma bomba e, afinal, foi apenas um momento de grande embaraço para mim. 

terça-feira, julho 03, 2012

A palavra

Portugal esteve hoje presente naquele que é o "exame" anual a que a sua economia é sujeita no âmbito da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), uma instituição multilateral sedeada em Paris, que acolhe 34 Estados democráticos e economias de mercado. Portugal foi um dos países fundadores da OCDE, em 1948, embora o seu regime estivesse então longe de ser democrático, mas a realpolitik da "guerra fria" a isso ajudou. Pode dizer-se, com algum rigor, que foi no âmbito da OCDE que algumas elites político-diplomáticas portugueses iniciaram a sua aculturação àquilo que viria, muitos anos mais tarde, a abrir o nosso caminho a uma integração plena nas instituições europeias.

Por alguns anos, estive ligado à representação governamental portuguesa nas reuniões da OCDE. Foi numa dessas presenças que aconteceu a historieta seguinte.

Naquele mês de abril de 1998, Portugal presidia à reunião ministerial anual da organização. No primeiro dia, o ministro das Finanças, Sousa Franco, dirigira a sessão plenária. Eu ainda lhe "dei uma mão" na respetiva sessão, chegado a meio do dia de Estrasburgo, onde estivera retido por uma qualquer razão.

No dia seguinte, coube a Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, para além de conduzir a sessão, orientar o almoço de trabalho, o qual é sempre é feito em torno de um determinado tema. Dessa vez, tratava-se do AMI (Acordo Multilateral de Investimentos), uma questão muito controversa, tão divisiva que o acordo nunca chegou a passar do papel. Sobre o assunto, eu havia mantido uma polémica, nas páginas do "Diário Económico", com o saudoso deputado do PCP, João Amaral. Creio que nunca lhe cheguei a dizer que vim a concluir que, afinal, era ele, e não eu, quem tinha razão sobre o assunto.

O ministro português dos Negócios Estrangeiros assumiu o seu lugar na presidência dos trabalhos, no topo da grande mesa quadrada, tendo ao seu lado o secretário-geral da organização e, à sua frente, a sofrível refeição que os integrantes têm direito a digerir durante essa hora e meia de exercício declaratório. Como me competia, como secretário de Estado, sentei-me na cadeira da nossa delegação, por detrás da placa onde se lia o nome de Portugal. Claro está que, com o ministro português a assumir a presidência da sessão, eu me preparei para um almoço bem calmo.

Jaime Gama abriu a sessão, fazendo uma intervenção inicial, aí com uns cinco minutos, com que introduziu o debate. Conhecendo antecipadamente o texto, devo confessar que quase me não dei ao cuidado de atentar no que dizia o meu ministro. Só quando, em certo momento, "ouvi" um silêncio, é que percebi que terminara.

O presidente português da sessão convidou então os representantes dos Estados membros da OCDE a intervirem sobre o tema. Como muitas vezes acontece neste tipo de reuniões, nomeadamente em questões muito polémicas, há uma certa inércia em "abrir as hostilidades", com uma retração em fazer a primeira intervenção. E foi isso que aconteceu: ninguém se inscreveu para falar - o que é feito colocando, ao alto, a placa com o nome do respetivo país. Jaime Gama insistiu e voltou a anunciar que estavam abertas as inscrições. O silêncio manteve-se.

Foi então que o presidente da sessão olhou para mim, sentado num lugar bem distante do seu e disse, com a maior naturalidade do mundo: "Dou a palavra a Portugal". 

Julguei ter ouvido mal, mas, ao detetar um leve sorriso na cara de Jaime Gama, percebi que ele me "passara a bola", como forma de resolver o súbito impasse. E, um tanto atrapalhado, lá avancei com um: "Thank you, mr. chairman. Mr. chairman, the Portuguese delegation considers that..." - e já nem sei bem o que disse, durante três ou quatro minutos, em que procurei debitar a doutrina que à época tínhamos sobre o AMI. No final da minha improvisada intervenção, já se viam diversas placas com nomes de países colocadas na vertical. E o debate lá avançou.

À saída, comentei para o ministro: "Pregou-me uma bela partida...". Jaime Gama, irónico, retorquiu: "Mas eu achei que você tinha tinha pedido a palavra...!"

segunda-feira, julho 02, 2012

Gabardines

Leio nos jornais que a família de Humphrey Bogart está a mover um processo à Burberry's pela utilização, tida por abusiva, da foto do ator com a lendária gabardine utilizada no filme no "Casablanca". Segundo se argui agora, afinal Bogart gostava mais dos modelos da Aquascutum. Vá-se lá saber quem tem razão. Devo dizer que, quanto a mim, não sou muito dado àqueles panejamentos do modelo, mas tenho uma imensa reverência pelo filme e pelo seu herói.

E não estou sozinho. Um dia, já há muitos anos, fui numa delegação a Marrocos. Já no regresso, enquanto atravessávamos a pista a pé, a caminho do avião, um dos membros da nossa delegação, um homem bem simpático, técnico superior de um ministério, que já não está entre nós, sacou subitamente de uma pasta de um chapéu, que, até então nunca o tínhamos visto utilizar, colocou-o na cabeça e pediu-me: "posso pedir-lhe para me tirar uma fotografia, com o nome do Aeroporto atrás?" E subiu a gola da gabardine para a pose...

Era de dia, não havia nevoeiro, ninguém por perto se assemelhava à Ingrid Bergman, os guardas marroquinos tinham fardas bem diferentes da do Claude Rains e não precisávamos de visto para entrar em Lisboa. Mas o nosso homem ficou com a sua foto. No avião, sorridente, confiou-me: "Trazia esta fisgada há vários anos..."

sexta-feira, junho 29, 2012

Crise castrense

Na ausência em férias do embaixador, eu estava a chefiar interinamente aquela embaixada, onde chegara apenas algumas semanas antes. Mal conhecia os cantos à casa e, muito menos, os hábitos do posto, que sempre variam alguma coisa, dependendo das culturas funcionais implantadas pelas chefias. 

O telefonema do adido militar para minha casa, bem cedo na manhã, prenunciava coisa grave. A "voz de caso" com que me perguntou se, logo que eu chegasse à Embaixada, eu podia recebê-lo, alertou-me.

Esses eram os tempos em que algumas temáticas afro-lusitanas nos mobilizavam muito, em que a questão timorense estava no auge, em que alguns delicados assuntos relacionados com o futuro da NATO estavam em discussão, em que a Europa se assustava com a surpresa balcânica e, enfim, em que as dinâmicas da "intelligence" clássica ainda andavam muito na cabeça das pessoas. Além disso, tinha havido mudanças fortes nas estruturas de defesa daquele país onde trabalhávamos, que eu me esforçava por decifrar e que era importante seguir. 

O trabalho dos adidos militares (em rigor, deve dizer-se "adidos de defesa") pode ser de importância para o funcionamento das missões diplomáticas, desde que seja bem executado e articulado com a chefia da missão. Em geral, os adidos dispõem de uma "network" de relações muito própria, que se auto-alimenta em matéria de informação. Vivem centrados em agendas que nem sempre coincidem com as do embaixador, mas tal não é necessariamente uma coisa negativa, porque isso lhes permite focalizar a atenção certas áreas que não estão na nossa ordem de imediata de prioridades. Por outro lado, pela forma corporativa como se articulam com os seus pares locais, têm frequentemente facilidade de "checkar" algumas informações que, aos diplomatas, pode ser mais delicado abordar através dos seus canais habituais. Talvez por ter feito serviço militar, e por julgar perceber alguma idiossincrasia da casta, sempre tive excelente relação com os profissionais desse setor com que trabalhei, independentemente de não serem idênticos os contributos que cada um deu para o meu trabalho. Mas adiante.

Chegado à embaixada, pedi ao adido para vir ver-me. Chegou com um largo dossiê e, com ar grave, disse-me:

- Agradeço a prontidão com que me recebeu e, desde já, queria pedir-lhe se, amanhã de manhã, posso fazer, na sala de reuniões da embaixada, uma reunião. São aí umas 40 pessoas. É que nem sabe o que nos "caiu em cima"...

Não, não sabia, nem conseguia supor a razão de tão urgente reunião. Mas, claro, logo disse que a sala de reuniões estava à disposição, embora fosse necessário reforçar o lote de cadeiras.

Resolvida a dimensão operacional da logística, o adido passou à parte substancial, à justificação da razão que motivava tão largo e urgente dispositivo de trabalho.

- Fomos apanhados de surpresa. Não sei se sabe, mas, todos os anos, uma das embaixadas onde há adidos militares tem a seu cargo a organização de um baile de gala, num dos bons hotéis da cidade. Este ano, era a vez da Polónia. E não é que o meu colega polaco me telefonou ontem, dizendo que, por um inesperado compromisso, não está em condições de poder assegurar a tarefa?! Ora, como é por ordem alfabética, a tarefa passou para nós. E só temos três semanas! Vou convocar já uma reunião de emergência, claro! Imagine a imensa responsabilidade que nos caiu em cima!

Eu imaginava, procurando conter a imensa gargalhada que tinha vontade de soltar, perante o fácies fechado do nosso homem, visivelmente esmagado pelo dever acrescido que lhe havia aterrado nos ombros. E não pude deixar de lembrar-me, na ocasião, de alguns textos de Lawrence Durrell, e, em especial, da imagem, que sempre vive comigo, da admirável figura do adido militar francês, no "Les Ambassades", do Roger Peyrefitte, cuja leitura vivamente recomendo a quem gostar de conhecer os bastidores divertidos da vida nas embaixadas, lugares onde a realidade, muitas vezes, ultrapassa a melhor ficção. Podem crer!

Ah! e para a história, diga-se que, mais tarde, me chegou, de fonte limpa, que o baile terá corrido muito bem.

quarta-feira, junho 27, 2012

Títulos

Faço parte, desde há semanas, de uma comissão, empossada pelo primeiro-ministro português, que tem como mandato proceder à revisão do Conceito estratégico de Defesa nacional. Preside a este grupo o professor Luís Fontoura, uma figura que passou pela política e pelo mundo empresarial, tendo sido das pessoas que, de forma mais determinada, deu um "abanão" positivo à nossa política de promoção das exportações. Homem interessado, desde há muito, pelas questões internacionais, teve nessa área um singular percurso académico, apoiado em várias reflexões publicadas. Por algum tempo, foi secretário de Estado no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Na abertura da primeira reunião da comissão, Luís Fontoura referiu que o nosso labor seria necessariamente discreto, que não trabalhávamos para obter títulos nos jornais. Ao ouvir a palavra "títulos", na sua boca, fez-se-me luz e lembrei-me do primeiro dia em que o conheci.

Na segunda quinzena de 1973, durante o meu serviço militar, integrei uma visita de estudo ao jornal "A Capital", que se situava então nuns andares da avenida Joaquim António de Aguiar. Desse grupo de garbosos militares faziam parte António Franco, Jaime Nogueira Pinto, Manuel Cavaleiro Brandão e outros seis "soldados-cadetes" que, dentre os cerca de 500 que, em março desse ano, tinham feito a sua incorporação na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, haviam sido selecionados para serem formados como futuros oficiais de Ação Psicológica.

A Ação Psicológica era uma das mais interessantes especialidades militares, com disciplinas de Sociologia, Psicologia, Técnicas de propaganda e contra-propaganda, etc. Visitar um jornal estava, assim, no âmbito normal desse curso. E, como jornal, "A Capital" era, à época, um caso singular. Recriado em 1967, num registo de compita com o "Diário de Lisboa", perdera a matriz original e fizera, entretanto, um percurso diferente, distinguindo-se por ser, em Portugal, o primeiro jornal a adotar um estilo gráfico mais agressivo, próximo do de alguns jornais tablóides britânicos. Ao lado dos outros diários lisboetas da tarde, e do "Diário do Norte", do Porto, "A Capital" destacava-se claramente nesse domínio.

Recordo que fomos recebidos por Luis Fontoura, que presidia ao conselho de administração do jornal, e que tinha consigo, como colaborador direto, um grande amigo meu, já desaparecido, o Álvaro Magalhães dos Santos. Apresentou-nos as grandes linhas em que se fundamentava a política do jornal e, à volta disso, lançou-se alguma discussão. A certo ponto, alguém perguntou a Luís Fontoura o que é que ele considerava ser o fator distintivo do jornal, face aos outros similares - o "Diário de Lisboa", o "Diário Popular" e o "República". Sem enveredar pela questão ideológica, talvez subjacente à pergunta, Luís Fontoura retorquiu: "Qual é o único jornal português cujos títulos alguém consegue ler do outro lado da rua? Só "A Capital"."

Era verdade. "A Capital" iniciara o hábito dos títulos fortes, com escassas palavras, que "agarravam" os leitores. O jornal viria a durar mais do que o "República", do que o "Popular " e do que o "Lisboa", mas, ainda que sendo o último sobrevivente dos jornais da tarde, não conseguiu resistir à concorrência noticiosa das rádios e das televisões. Poucos meses depois daquela nossa visita, como a imagem mostra, faria, aliás, um título cuja hábil, prudente e distanciada construção é, em si mesmo, um bom tema de "ação psicológica"...     

terça-feira, junho 26, 2012

De Leninegrado a São Petersburgo

Há mais de 30 anos, ao tempo em que vivia em Oslo, tive a curiosidade de visitar a União Soviética. Achei que os preços das viagens eram surpreendentemente convidativos. Na véspera da minha partida, falei do assunto a um colega norueguês e logo fiquei ciente daquilo em que me metera: a agência de viagens que eu escolhera estava ligada ao Partido Comunista norueguês e, se calhar, fazia "dumping" ideológico. De facto, no grupo em que, durante duas semanas, estive incluído, muitos foram os que, logo que chegados a Leninegrado, colocaram na lapela uma imagem de Lénine...

A visita acabou por ser muito interessante, feita também por Moscovo e por Ialta, comigo sempre a tentar, para desespero da guia norueguesa, fugir ao espartilho dos programas e reagir à irracionalidade do condicionamento de movimentos. Guardo para sempre algumas recordações impressivas desse país, com uma vida que, à época, pressenti misteriosa, cinzenta e triste.

Hoje, por razões profissionais, estou em São Petersburgo - mas já não em Leninegrado. Para além do nome, muita coisa mudou por aqui, como se sabe. Mas, confesso, tentarei não deixar de revisitar, em homenagem àquilo que é a memória sentimental de uma certa geração, a estação da Finlândia, o Smolny, o Aurora e, claro, o palácio de Inverno, símbolos fortes de uma Revolução de outubro, que em dez dias abalou o mundo, e que, por sinal, foi em novembro.

sábado, junho 23, 2012

A política interna e a Europa

Acaba de ser anunciado que, entre os dois maiores partidos políticos portugueses, não foi possível chegar a um consenso sobre temáticas europeias, com vista às grandes decisões que pode vir a ser necessário tomar, em nome do país, nesse plano, nos próximos dias. Não conheço o assunto em pormenor, mas posso imaginar a imensa complexidade desse esforço comum.

No passado, estive ligado a exercícios similares, alguns com êxito, outros com desfecho menos feliz. Convém dizer que, nas últimas décadas, as relações entre as duas maiores formações políticas portuguesas - ou melhor, entre os governos e o principal partido da oposição - raramente dispensaram a existência de canais discretos de comunicação, como é próprio dos regimes democráticos com maturidade. Às vezes, as tensões políticas internas tornaram esse diálogo mais difícil e menos constante, mas, que eu saiba, nunca foram quebrados, por completo, tais contactos. E isso tem todo o sentido: há mais país, nomeadamente na ordem internacional, para além da inevitável guerrilha política interna.

Em tempos em que tive algumas responsabilidades governativas nessa área, e por instruções expressas do primeiro-ministro e do ministro dos Negócios Estrangeiros de então, esses canais de comunicação estiveram sempre abertos. Mas a vida política faz-se de altos-e-baixos, como a historieta que vou contar demonstra. 

Um dia, a propósito de uma negociação europeia de grande importância, o primeiro-ministro e o líder da oposição reuniram, acolitados por mim e pela minha "sombra" nesse partido da oposição. Tratava-se de tentar apresentar, a público, uma posição comum, a montante de um Conselho europeu. Isso reforçaria o governo no plano dessa negociação e daria ao principal partido da oposição uma imagem de responsabilidade de Estado, naquele que era então um grande dossiê externo. 

A reunião em S. Bento correu bem. Tínhamo-la preparado antes com algum cuidado e, depois de algum tempo de debate, assentou-se num conjunto de pontos comuns. As questões na agenda europeia eram então relativamente consensuais e os interesses portugueses a defender eram claros. Fiquei encarregado de escrever um projeto do texto que se pretendia divulgar, que teria cerca de duas páginas. Pelo que conhecia das preocupações da oposição, não tinha a menor dúvida de que seria capaz de elaborar um documento suscetível de ser assinado pelos dois lados. Em diplomacia, as palavras, se bem usadas, podem servir, simultaneamente, para destacar as convergências e para esconder, de forma elegante, as inevitáveis divergências. 

Escrevi o texto num avião em que fui, nessa tarde, para Bruxelas, onde tinha uma reunião na manhã do dia seguinte. Chegado ao hotel, enviei-o por fax à pessoa que era minha contraparte na oposição. Cerca da meia-noite, ela confirmou-me, como eu esperava, que, por si, não tinha objeções. Restava passá-lo ao seu "chefe".  No dia seguinte, a meio da manhã, ainda antes do meu regresso a Lisboa, recebi a indicação de que o texto podia merecer o acordo da oposição, "em termos gerais". Alguma experiência alertou-me logo para esta reticência.

Entretanto, pela parte do governo, as coisas avançaram rapidamente. Dois ministros leram o texto, por indicação do primeiro-ministro, e mostraram-se positivos face ao respetivo conteúdo. O chefe do executivo considerava, no entanto, essencial obter a concordância prévia do ministro dos Negócios Estrangeiros, que andava algures pelo mundo. Horas depois, veio também a luz verde deste. Marcou-se um encontro com a oposição, no formato do dia anterior, em S. Bento, para cerca da meia-noite.

Na política interna, durante esse mesmo dia, as coisas haviam estado muito agitadas. Por virtude de um facto político de grande expressão mediática, um membro do governo viu-se envolvido numa imensa polémica, com o pedido da generalidade da oposição para a sua demissão. A tarde, na Assembleia da República, fora um "inferno". As declarações do líder da oposição contra o governo subiam de tom. Os telejornais da noite, que antecederam a reunião em S. Bento, foram palco de tomadas de posição muito fortes, de ambos os lados. A crispação política estava no auge.

Quando cheguei a S. Bento, não tive tempo para falar com o primeiro-ministro, antes da reunião com a oposição. À entrada do edifício, a expressão facial da pessoa que era minha contraparte do outro lado do espelho político não prenunciava nada de bom. Vi que alguma coisa tinha mudado, relativamente ao ambiente do dia anterior.

O líder da oposição também entrou tenso. Sentámo-nos. Começou por dizer que tinha lido o texto, que "genericamente" lhe parecia bem, mas que, depois de ponderar, tinha várias alterações a propor. Mesmo à distância, pude ver que havia, no papel que tinha na mão, uma imensidão de anotações manuscritas. Ia ser bonito...

Na cara do primeiro-ministro, notei uma grande serenidade. E logo perguntou: "Se não quiser, não fazemos texto nenhum. Desta conversa pode resultar um compromisso sobre certos pontos, que não precisa de ser anunciado. Basta-me a sua palavra". Pareceu-me que o líder da oposição deu um suspiro de alívio. E, desde logo, apressou-se a concordar. "Então, esquecemos o documento e passemos adiante", disse o primeiro ministro. E o resto da reunião foi rápido, relembrando os pontos comuns que tinham sido abordados no dia anterior. Para quem, como eu, tinha perdido horas a tratar do texto e da sua afinação, era uma desilusão, mas, como costumava dizer esse primeiro-ministro, "é a vida!". Espantou-me, contudo, a rápida cedência do chefe do governo, sem sequer se ter dado ao trabalho de ouvir as divergências que a oposição teria para sublinhar e sobre as quais, até hoje, sempre fiquei curioso.

Quando as duas figuras da oposição saíram da sala, não me contive e perguntei ao primeiro-ministro a razão por que tinha dispensado o documento com tanta prestreza. A sua resposta foi clara: "Você acha que, depois do governo ter sido insultado durante todo o dia, em tudo quanto foi rádio e televisão, o meu partido me perdoaria que, ao fim da noite, eu anunciasse um entendimento, fosse sobre o que fosse, com o líder da oposição?". Fiquei a pensar que, de forma simétrica, deveria ter sido esse também o pensamento deste último. A vida política é assim mesmo.  

sexta-feira, junho 22, 2012

Camarate

No dia 4 de dezembro de 1980, eu jantava na "Farmácia Campos", em Matosinhos, quando alguém entrou e encostando-se ao balcão, disse alto, ouvido por toda a sala: "Morreu o Sá Carneiro. O avião em que vinha para o Porto caiu". Alguns dos presentes levantaram-se e pediram para se ligar a rádio. Era verdade.

Estávamos a escassas horas das eleições presidenciais portuguesas, em que Soares Carneiro defrontaria Ramalho Eanes, na sua tentativa de reeleição. O país estava fortemente polarizado entre as duas candidaturas. Nessa noite, na televisão, a tese do acidente prevaleceu, na voz de praticamente todos quantos se pronunciaram. Num dos dias seguintes, a (única) televisão fez do funeral de Francisco de Sá Carneiro um lamentável e vergonhoso espetáculo. Portugal nunca poderá orgulhar-se desses tristes dias de desbragada manipulação política.

Depois, começaram as dúvidas. Acidente ou atentado? Por mim, pouco atreito às teses da conspiração, e muito convicto de que a teoria do atentado era uma mera arma política de arremesso, acreditei piamente na hipótese do acidente. E o facto, entretanto provado à saciedade, de que Sá Carneiro só se havia decidido, no último momento, pela viagem no avião sinistrado mais me reforçou a convicção de que a ideia do atentado mais não era do que um mero expediente para vender uma versão politicamente "biaisée", como por aqui se diz. E fui desqualificando e ridicularizando, durante muitos anos, a tese do atentado.

Arquivei assim "Camarate", nome pelo qual o assunto ficou para a história, na prateleira das questões políticas que já tinha por resolvidas. Um dia, porém, um episódico antigo colega de governo, o advogado Ricardo Sá Fernandes, publicou um "pavé" sobre o assunto. O qual, segundo ouvira dizer, privilegiava a tese do atentado. Fiquei curioso. Tinha optado, quase em definitivo, por deixar de ler sobre Camarate. Os escritos que conhecia, quase sempre cheios de ódio e de enviesamento político, incitavam-me a isso. Mas, já nem sei bem porquê, decidi-me a ler o livro de Sá Fernandes, Avancei por ele dentro muito cético, bem de "pé-atrás". Era um livro imenso. Em duas noites, li-o. E, confesso, as dúvidas colocaram-se-me, em força. Será que, no fim de contas, teria sido atentado? Seria Adelino Amaro da Costa o alvo?

O parlamento português foi entretanto constituindo sucessivas "comissões parlamentares de inquérito", umas vezes dominadas pela direita, outras vezes pela esquerda. Sem surpresas, nesse balançar opinativo, por entre testemunhos de diferente credibilidade, muito para alimento dos tablóides, tais "comissões" iam concluindo, umas vezes pela hipótese do atentado, outras pela do acidente. Com o tempo, setores da esquerda juntaram-se à primeira das hipóteses, credibilizando-a um pouco mais.

Noutro patamar, a justiça foi também caminhando sobre o assunto, ora seduzida pelo mediatismo e pelo espetáculo, ora presa ao formalismo. Em todo o caso, as conclusões a que chegou, sempre prenhes de incidentes e das inevitáveis prescrições, foram pouco mais do que nenhumas. Dava a sensação de ficar entretida entre as fantasias de José Esteves e os mistérios de Lee Rodrigues, registando, pelo meio, algumas gratuitas insinuações, sem fundamento sólido comprovado, sobre figuras da nossa vida pública. E, claro, os processos não chegaram a nenhuma conclusão, ficando a aguardar "melhor prova". 32 anos depois?

Mas a que vem isto, aqui e agora? É muito simples: estará em curso, ao que leio, a constituição da 10ª (!!!) "comissão parlamentar de inquérito" sobre o "desastre" de Camarate ("desastre" ou "tragédia" é o refúgio lexical de quantos não têm certezas sobre o assunto).

Como dizem os brasileiros: dá para acreditar?

quinta-feira, junho 21, 2012

Cultura geral

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Numa decisão que está a provocar alguma polémica, a prestigiada escola de ciências políticas de Paris, Sciences-Po, decidiu que, já este ano, iria "aligeirar" os requisitos que, à entrada, exigia aos seus candidatos, em matéria de cultura geral.

O conceito de "cultura geral" é um tanto vago e, como é notório, varia muito entre as gerações. Lembro-me de que o meu pai se referia a certas pessoas como tendo uma "cultura de almanaque", porque podiam saber as capitais dos países, nomes de escritores ou de artistas, mas eram incapazes de discretear, com um mínimo de profundidade, sobre ideias, sendo que o seu nível de leitura muitas vezes se ficava pelas lombadas dos livros.

Recordo a forte e muito negativa impressão que me fez a experiência que tive, nos anos 90, como membro do júri de admissão de novos diplomatas. Nesse tempo - não sei como é que as coisas hoje se passam - a chamada "prova de apresentação" consistia numa conversa do candidato com três dos cinco membros do júri, durante cerca de 20 minutos. O objetivo era perceber se o putativo diplomata tinha um mínimo de condições para ser admitido, isto é, se sabia expressar-se razoavelmente, se mostrava um conhecimento global das grandes temáticas internacionais e, igualmente, se possuía uma "cultura geral" aceitável. Tenho para mim que esta prova, feita com seriedade, deixa claro, em definitivo, quem não serve para diplomata, embora esteja longe ajudar a esclarecer se serve. (Num aparte: como, nesse tempo, eu tinha deliberadamente espalhado que "quem tivesse uma cunha chumbava", notei, divertido e triste, a quantidade de atestados médicos que surgiam, a pedir o adiamento da prova, quando alguns candidatos sabiam, por conhecimentos familiares ou outros, dentro do MNE, os dias em que eu fazia parte do júri).

A essa "prova de apresentação" chegavam só os candidatos que já tinham ultrapassado as provas escritas e iam ainda fazer a prova oral - hoje bem mais simples, diga-se, do que nos tempos da minha admissão. A grande surpresa que tive foi encontrar licenciados, por vezes com média elevada, oriundos de algumas universidades sérias (há, claro, algumas universidades "não sérias", cujas classificações de curso são meras curiosidades estatísticas), que revelavam, por exemplo, nunca terem lido um romance, não conseguirem dizer o nome de um pintor português ou confessavam nunca terem visto filmes que fazem parte do património universal. Um deles, um dia, confessou mesmo que "nunca tinha lido um livro inteiro", porque, na universidade, só era obrigatório ler "capítulos ou fotocópias de páginas de livros"! E ficção, nem vê-la!

Para mim, contudo, bastante mais grave era, por vezes, o desconhecimento absoluto das questões internacionais mais comezinhas, que ficam na óbvia fronteira com a cultura geral básica. Vou dar um exemplo (verídico) de um diálogo que tive, com um desses fantásticos candidatos:

- Escolha um país europeu cuja situação política conheça bem.

- A França, talvez.

- Muito bem. Como é que vê a situação política em França, os seus equilibrios internos e o papel do país no quadro europeu?

(Pausa longa)

- Bom, na França, o governo tem tido muitos problemas... é tudo o que posso dizer!

- Sim, isso é verdade, para a França e para a generalidade dos países... Não quer falar de outro país europeu?

- Talvez da Inglaterra... 

(Chamar "Inglaterra" ao "Reino Unido" era, em si mesmo, uma falta de rigor. Mas como o Anuário do MNE continua, snobmente, a designar o país por "Grã-Bretanha", adiante...).

- Ótimo. Falemos então do Reino Unido. Deve saber que há, numa parte do país, um grupo político-militar que leva a cabo atos violentos, de natureza terrorista: o IRA. Em que zona do Reino Unido isso se passa e qual é o objetivo político desse grupo?

- Ah! Isso sei bem: é na Escócia! É o movimento de libertação da Escócia!

Nesse instante, ansiei por um bom malte escocês! Apeteceu-me mesmo perguntar-lhe se acaso ele sabia a diferença entre "whisky" e "whiskey". Mas o candidato não tinha obrigação de saber isso, da mesma maneira que eu não tinha obrigação de estar a perder mais tempo com um ignorante daquele calibre. Com aprovação tácita dos meus colegas de júri, mandei o rapaz embora. Deve andar hoje por aí num qualquer emprego onde, como "cultura geral", só lhe devam exigir conhecer os últimos resultados do Euro.

sexta-feira, junho 15, 2012

Garaudy

Quando, num final de tarde de 1969, entrei na Moraes, o único cliente presente naquela livraria lisboeta, que falava com o livreiro, voltou-se e encarou-me ostensivamente, com cara de poucos amigos, como que incomodado pela minha presença. Eu conhecia-o, ele não fazia a mínima ideia de quem eu era. Ele chamava-se Francisco de Sousa Tavares, era advogado e um conhecido membro da oposição. O livreiro, distendeu o ambiente: "Não há nenhum problema", disse para Sousa Tavares, sorrindo. E acrescentou: "É um amigo"...

A situação era curiosa. Ambos íamos à procura de um livro, acabado de sair em França, que tínhamos encomendado semanas antes e que nos fora dito que chegaria naquele dia. O livro era "Le grand tournant du socialisme" e o seu autor, Roger Garaudy, era um intelectual dissidente do PC francês.

Ao tempo, obter alguns livros, portugueses ou estrangeiros, menos conformes com os gostos do regime, era uma tarefa que implicava conhecimentos "de confiança" em algumas escassas livrarias. A Moraes, tal como a Barata na Avenida de Roma, proporcionava-nos essa cumplicidade. No caso da Moraes, dava-se mesmo a curiosidade da livraria se situar no mesmo quarteirão onde estava a PIDE... Por isso, todos os cuidados eram poucos.

Garaudy era, à época (e já perceberão porque escrevo "à época"), uma espécie de precursor daquilo que se iria chamar o "eurocomunismo", isto é, uma evolução, tendencialmente democrática, dentro do comunismo na Europa. Fazia parte daqueles a quem os ortodoxos, em especial os maoístas, chamavam "revisionistas", por advogarem uma linha política que começava a colocar em causa as premissas da orientação moscovita, então ainda dominante na generalidade dos partidos comunistas ocidentais. Antigo resistente e prisioneiro durante a ocupação alemã, Roger Garaudy integrou o comité central do PC francês, tendo sido eleito deputado e, mais tarde, senador.

Mas o percurso de Garaudy não iria ser linear. Opositor da invasão russa da Checoslováquia, foi expulso do PCF, passou a atacar o ateísmo, fez uma deriva pelo catolicismo, converteu-se ao Islão, tornou-se anti-sionista feroz para, finalmente, contestar a própria existência das câmaras de gaz no nazismo. Um percurso, pelo menos, bem singular.

No que me respeita, confesso que já quase me não lembrava dele. A sua morte, hoje conhecida, acabou por ajudar a recordá-lo e, também, a recordar o tempo em que o que ele escrevia era interessante para alguns de nós. E talvez não seja por acaso que a sua desaparição foi anunciada por um "site" de extrema-direita... 

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...