quinta-feira, julho 26, 2012

Bletchley Park

Eu nunca aprendo. Nestes tempos de férias, dá-me sempre para ler coisas que só me fazem perder horas, com escasso prazer literário, apenas levado pela curiosidade. Às vezes, são obras de figuras menores da literatura portuguesa, passada ou presente, que visito para tentar perceber por que razão foram ou são sucessos. Outras vezes, são romances estrangeiros, policiais ou de espionagem, naquele tipo de edições que se podem molhar, sem pena, à beira da piscina. Já devia ter aprendido, mas não: enfio sempre estes barretes sazonais.

Ontem, depois de dia e meio de leitura (quando me aproximo de metade do livro, quase sempre dou uma "oportunidade" ao resto), terminei um livro de um tal Daniel Silva, de que me diziam maravilhas e que não passa de um sofrível "genérico" de Le Carré. A receita de construção da obra é vetusta, feita de pequenos capítulos de "suspense" acumulado, com uma tipificação dos "bons" e dos "maus" do costume, uma pitada ligeira de sexo para os públicos da "Caras" e coisas correlativas, incluindo sempre a figura de um "inteligente", que faz inferências implausíveis, com ar de anti-herói - fórmula bebida em Chandler e outros génios.

O romance passa-se, em grande parte, em Londres e, curiosamente, nas zonas muito próximas da nossa embaixada, o que não deixa de ter a sua graça a quem andou por lá. Mas a obra, em geral, é bastante mauzota. Porque um mal nunca vem só, surge no texto um diplomata português a colaborar com os nazis. Se o tal Daniel Silva é, como ouvi dizer, de ascendência portuguesa, bem podia ter evitado contribuir para mais uma degradação subliminar da imagem da pátria dos seus ascendentes.

Mas a razão por que trago o assunto aqui prende-se com a frequente aparição, no livro, de menções a Bletchley Park, o mítico local onde, durante a 2ª guerra mundial, funcionou uma celebrada estrutura de descriptagem das mensagens alemãs, que terá dado um importante contributo para a vitória aliada.

O local, dependente do famoso MI5 (serviço de contraespionagem), manteve-se fechado durante décadas. Um dia de 1994, li anunciado, numa obscura notícia num jornal, que, a partir desse fim de semana, Bletchley Park passava a ser visitável. Lá fui eu, de imediato, na data indicada, cheio de curiosidade.

À entrada, que surpreendentemente era gratuita, pediram-nos identificação. Disseram-nos então que, infelizmente, Bletchley Park ainda não era visitável pelo "público em geral". Quando fiz notar que estavam várias pessoas a aceder ao parque e às diversas instalações nele existentes, que fora anunciado na imprensa que haveria visitas públicas e que viéramos de Londres expressamente por essa razão, dei conta de algum embaraço nos nossos interlocutores. Depois de um bom quarto de hora de parlamentação e contactos telefónicos, lá fomos autorizados a entrar, num registo que me pareceu ser de alguma exceção. Fomos integrados num grupo de uma dezena de pessoas e, partir daí, fizémos uma interessantíssima visita guiada, durante quase duas horas, sob a orientação de uma senhora que não escondia que era membro do MI5. Ao longo desse tempo, dei comigo a relembrar o que tinha lido do local e dos seus momentos áureos.

No final daquela que fora a primeira visita organizada, desde sempre, a Bletchley Park, devo confessar que estava bastante contente por ter tido a experiência. A caminho da saída, numa troca de palavras com um outro visitante, e ao dar-se este conta de que éramos portugueses e, aliás, os únicos estrangeiros no grupo, interrogou, curioso: "What's your link with the British intelligence community?". Expliquei que não tínhamos a mais leve relação com os serviços de informações britânicos, que eu era apenas um diplomata português colocado no Reino Unido, neste caso movido por curiosidade histórica. O meu interlocutor abriu a boca, de espanto, porque, tanto quanto sabia, no primeiro mês, o acesso a Bletchley Park estava exclusivamente reservado a membros dos "British special services", e respetivas famílias, como era o seu caso. Estavam assim explicadas as dificuldades encontradas à entrada. E, claro, devemos ter ficado nos registos.

14 comentários:

Anónimo disse...

O Senhor Embaixador deve ter presente que esses rapazes têm as listas de quem andou pela 2ª Divisão e pelo SDCI...

Anónimo disse...

"Maus entendidos" que podem (ou poderiam) ter consequencias. Mas ao irmos para o lado da espionagem esquecemos o livro do Daniel Silva.
José Barros

Anónimo disse...

"descriptagem" é um palavrão feio que pode muito bem ser substituído por "descodificação"

Anónimo disse...

Houve, indiscutívelmente, diplomatas portugueses que colaboraram com os nazis. A espionagem fica a um passo.
Um funcionário de Embaixada em Londres foi preso por espionagem. Salazar intercedeu insistentemente por ele, conseguindo evitar que fosse condenado a morte.


a) Quím. Filbi

Anónimo disse...

O romance pouco importa. Trouxe à liça acontecimentos vividos por si num dos cenários descritos nessa fraca narrativa e, assim já escapa. Quantos assuntos terá que se enquadrem bem em contos ou novelas com a inspiração de alguns recantos de Londres que tão bem ajudaram outros escritores muito apreciados?!

Anónimo disse...

Mas... apelou à velha Aliança, para que o deixassem entrar?

Anónimo disse...

Por vezes apetece comentar comentários, "em bom português"

patricio branco disse...

já agora, recomendo outro silva, o espanhol lorenzo silva, tambem escritor policial mas de qualidade, p.ex. "El alquimista impaciente" que recebeu o Premio Nadal (2000). Intriga bem escrita à volta duma velha central nuclear perto de madrid, com seus problemas que são escondidos.

Interessante texto esta entrada bletchey park, quase uma curta historia de espionagem.

Helena Sacadura Cabral disse...

Julgo que entre texto encriptado e texto codificado há alguma diferença e o primeiro é usado em textos - secretos - a que muito poucos têm acesso, e os segundos em textos que apenas são confidenciais e de uso mais alargado. No meu tempo de BdP era assim. Hoje já não sei, mas acredito que se mantenha!

patricio branco disse...

em código-descodificar
em cifra-decifrar
encriptar-desencriptar
não sei se são sinónimos perfeitos ou se há algumas diferenças entre os 3, tecnicamente falando.
encriptar parece-me um vocabulo mais antigo, dos tempos da guerra, agora em desuso. será?

Santiago Macias disse...

Senhor Embaixador

Os amanhãs cantam sempre. Se não cantassem (depende é da moda, como se diz por aqui) o que andaríamos nós a fazer? E os amanhãs não dependem nem do rating, nem dos mercados. Dependem de nós.

Será, talvez, a costela sevilhana que me dá para estas coisa. Mas acredito firmemente no dia de amanhã.

Anónimo disse...

Acrescente-se, ainda, o "cifrar".

"Encriptar" é um anglicismo trazido (sobretudo) pela informática.

Codificar / Descodificar =
Cifrar / Decifrar =
"Encriptar" / "Descriptar" (tosse)

Qualquer pesquisa na internet revela muitas indicações de equivalência dos termos.

Anónimo disse...

Em Bletchley Park ainda havia (ou foi referido) alguma reminiscência da passagem do infortunado Alan Turing?

boas férias du côté de chez les xenophobes... ;-)
xg

patricio branco disse...

olhando bem, curiosa casa, como que composta de de vários blocos em estilos arquitectonicos diferentes, encostados uns aos outros, flamengo, escocês, até indiano na cupula. Algo de extravagância de quem a quis assim. Mas bonita e muito inglesa.

Os borregos

Pierre Bourguignon foi, ao tempo em que eu era embaixador em França, um dos grandes amigos de Portugal. Deputado à Assembleia Nacional franc...