terça-feira, julho 31, 2012

O convidado surpresa

O nosso embaixador havia-me dado me conta de que a sugestão que eu fizera fora vista com alguma perplexidade. Estava numa visita oficial ao Chile, a convite do respetivo governo, naquele final de 2000. No belo edifício que acolhe o Ministério das relações exteriores, o meu homólogo oferecia-me um simpático almoço. Com antecedência, perguntaram-me se eu queria convidar alguém, em especial. Eu disse que sim e indiquei um diplomata chileno, de quem era amigo pessoal.

A questão, para quem a entendesse como tal, é que esse diplomata era um antigo militar do exército de Pinochet, que havia acedido à diplomacia por essa via. O seu percurso na carreira diplomática chilena, no lento regresso da democracia ao país, embora com Pinochet ainda vivo, não estaria a ser muito fácil. Por essa razão, a minha sugestão, se bem que acatada com prontidão, terá sido vista com uma certa estranheza.

Para mim, tudo era muito simples: tratava-se de um amigo, com quem coincidira num posto no estrangeiro e com o qual, ao longo desses anos e nos posteriores contactos, nunca perdera um segundo a discutir política - talvez porque ambos sabíamos que, dadas as nossas opostas posições de partida, esse era, como foi, o segredo para deixar frutificar a nossa amizade.

Na minha intervenção durante o almoço, cuidei em saudar e agradecer a presença do meu amigo. A certo passo, veio à baila da conversa o meu programa de visita em Santiago. Na parte oficial, entre vários outros pontos, incluia-se uma deslocação ao palácio de La Moneda, para apresentar cumprimentos ao presidente da República em exercício. Ao falar-se da parte não oficial, dei conta de, nessa própria manhã, ter ido colocar um ramo de cravos vermelhos na campa de Salvador Allende.

Nesse instante, alguns olhares na mesa cruzaram-se, como que interrogando-se sobre o eventual antagonismo entre o simbolismo dessa homenagem e a escolha que eu fizera como meu convidado pessoal. Estou certo que este último, conhecendo-me bem, foi, seguramente, o menos surpreendido de todos os convivas, em face daquela minha revelação.  

6 comentários:

gherkin disse...

De artigo a artigo, este nobre Embaixador e amigo, já não me surpreende! Pena que preciosas reminiscências como esta e outras tantas com que nos tem brindado não seja coligida em Livro, como já tive a oportunidade de lho mencionar. Contnuação de boas semi-férias, já que, obrigatoriamente retido em Londres, limito-me, limito-me aos ...Jogos Olímipicos pela televisão, já que, na expetativa de férias em Portugal não me acreditei para os ver pessoalmente. Entretanto, continuo à desesperada espera de uma medalha de ouro para o Team GB. Abraço. Gilberto Ferraz

Anónimo disse...

Amicitia tibe iunge pares.

gherkin disse...

Afinal, tenho a satisfação de assinalar, que, em vez de uma medalha de ouro, houve duas no mesmo dia. A primeira no remo, na categoria de mulheres e, a segunda, em ciclismo, ganha pelo vencedor da Volta a França, Bradley Wiggins. Portanto, a fome de "ouros" foi debelada. Agora, resta outro OURO, este para o seu trabalho como duplo Embaixador. Abraço e votos de excelentes semi-férias. Gilberto Ferraz

patricio branco disse...

interessante episódio.

Isabel Seixas disse...

Ainda bem que consegue articular o respeito do protocolo profissional com o respeito por Si sem abdicar das suas escolhas e dos seus sentidos.
Oh,claro que é coragem.
Bem interessante.

Anónimo disse...

O carácter faz o seu caminho na cultura e no modo de vida de cada um de nós. Escolher o caminho e aguentar com as consequências que possam advir da escolha fazem a "índole" de uma maior ou menor grandeza moral. De narrativas como esta tira-se uma boa lição.

A Europa de que eles gostam

Ora aqui está um conselho do patusco do Musk que, se bem os conheço, vai encontrar apoio nuns maluquinhos raivosos que também temos por cá. ...