sexta-feira, agosto 14, 2020

O estrangeiro próximo


O conceito de “estrangeiro próximo” foi crismado por Moscovo para designar, com assumido paternalismo estratégico, as entidades nacionais vizinhas, resultantes da implosão da antiga URSS, após esta ter sido derrotada na Guerra Fria. São 15 Estados, o maior dos quais é a Federação Russa, sua sucessora no plano internacional.

Com desagrado de Moscovo, em período de enfraquecimento, três desses Estados ingressaram na Nato – Estónia, Letónia e Lituânia. Mas Putin conseguiu evitar, num tempo de maior assertividade, que dois outros viessem a ter um destino idêntico – Ucrânia e Geórgia.

Nestes, a longa mão russa continua a manter uma tutela de influência determinante. No primeiro, na região de Donbass, que rejeita a soberania imposta por Kiev. No segundo, nos verdadeiros “bantustões” que são a Abcásia e a Ossétia do Sul, a que (quase só) Moscovo deu a designação de “países independentes”, após anos de disputa com a Geórgia.

A este tipo de situações convencionou-se chamar “conflitos congelados”, i.e., situações que configuram um “statu quo” de guerra suspensa, por disputas territoriais, que irrompe a espaços.

Dos restantes nove estados resultantes da URSS, cinco estão na Ásia Central, todos com regimes ditatoriais travestidos de democracias – Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Usebequistão. Não é uniforme o modo como a Rússia se relaciona com cada um deles, mas pode dizer-se que Moscovo mantém um “droit de regard” sobre todos, garantindo que eles não confrontam os seus interesses geopolíticos essenciais.

Dois outros Estados, no Cáucaso do Sul, a Arménia e o Azerbaijão, mantêm entre si um outro “conflito congelado”, sobre o território do Nagorno-Karabakh, que Moscovo segue à distância.

Restam ainda dois países.

Um é a Moldova, entre a Roménia e a Ucrânia, com outro “conflito congelado”, a propósito do território da Transnístria, onde uma velha base militar garante um pé à Rússia.

O outro é a Bielorrússia, encravada entre a Rússia, a Ucrânia, a Polónia, a Letónia e a Lituânia. Desde 1994, é dirigida com mão de ferro por Alexander Lukashenko, à frente de um regime que limita as liberdades dos cerca de 10 milhões de cidadãos do país. Agora, o ditador voltou a ser “eleito”. Com a Rússia, tem uma relação algo estranha, mas de objetiva dependência.

O país é hoje um “buraco negro” dentro de uma Europa basicamente democrática. O ditador e o seu regime foram já objeto de sanções. Por muita pressão que a União Europeia possa fazer, perante alguma complacência objetiva da administração americana, Lukashenko não cairá, enquanto a Rússia não quiser.

A Guerra Fria suspendeu a História por algumas décadas. Desde que acabou, num registo de humilhação para Moscovo, a Rússia criou, em seu torno, um mundo de Estados com os quais mantém uma tensa e diferenciada expressão do seu poder. Não havendo condições para regressar ao anterior estado de coisas, Putin é hoje senhor do tempo dos outros. Isso provoca alguns, sossega outros e dá a todos a certeza de quem, na realidade, continua a mandar por ali.

9 comentários:

Anónimo disse...

Com estas suas "derivas", monsieur l'ambassadeur sabe que ainda acaba por liquidar algum idoso, não sabe? O coração partido mata!

Jaime Santos disse...

O registo não foi apenas de humilhação, foi também o de uma catástrofe humana e económica. A Rússia perdeu população. Toda a boa vontade que poderia existir na Rússia para com o liberalismo do Ocidente esfumou-se durante os anos de Yeltsin.

Os russos veem em Putin (e julgo que veem cada vez menos) alguém que lhes pode garantir alguma segurança e a recuperação de algum do orgulho perdido. A tutela que mantém sob estados próximos ou onde sempre imperou a influência russa (como na Síria) faz parte dessa estratégia nacionalista de protecção dos interesses do País.

O seu comportamento perante a tragédia do Kursk, a invasão do teatro por forças especiais ou mais recentemente o combate à pandemia mostram-no como alguém que parece ser excelente a fazer aquilo que aprendeu (semear a cizânia no estrangeiro) mas mais ou menos incapaz de providenciar bom Governo ao seu povo...

A Rússia poderá ingressar plenamente no concerto das nações quando tiver uma Economia e um Estado à medida das suas necessidades, tamanho e ambição. E quando dispuser dessa confiança, talvez possa libertar da tutela os seus vizinhos. Mas antes não...

Anónimo disse...

Um dia um porta voz da UE dizia que a Rússia tinha de compreender que as “zonas de influência “; o tal “estrangeiro próximo “ tinha Cabado. Passdo um bocado usou esse mesmo termo “zona de infeuropeia” , para explicar a política de vizinhança.
Fernando Neves

dor em baixa disse...

Designa-os de "estrangeiros próximos"? Pensava que era "nuestros hermanos", em russo, claro.

Anónimo disse...

pensava que o sr. embaixador fosse daqueles que acha que o povo é quem mais ordena... mas vejo que não, parece achar que o estilo "para angola e em força" é mais eficaz...

cumprimentos

Anónimo disse...

Qual será a posição do PCP, esse grande defensor dos povos oprimidos?

Anónimo disse...

E de Grenoble, nem uma reação! Estou perdido, não sei como dizer que isto é culpa dos EUA. Faltam-me argumentos. Ajudem-me!

Joaquim de Freitas disse...

Fernando Neves

14 de agosto de 2020 às 14:49: "a Rússia tinha de compreender que as “zonas de influência “; o tal “estrangeiro próximo “ tinha Cabado." Nao para todas as potências, nao é assim? Ver a França no Libano, os EUA no mundo inteiro,e particularmente na América Latina, etc....

Joaquim de Freitas disse...

Jaime Santos : 14 de Agosto de 2020 às 12:19, disse: (A Rússia) …”A tutela que mantém sob estados próximos ou onde sempre imperou a influência russa (como na Síria) faz parte dessa estratégia nacionalista de protecção dos interesses do País.”

Sr. Jaime Santos: Como se chama a interferência permanente nos países da América Latina, e outros, duma potência que se permite mesmo de “confiscar” nas águas internacionais carregamentos de gasolina destinados à Venezuela, transportados por navios doutro pais?

Na década de 1580, a Rainha Isabel I de Inglaterra emitiu licenças a flibusteiros ilustres, para atacar e capturar navios inimigos no alto mar, carregados de ouro e outros produtos de valor, e partilhar os lucros com a Coroa.

Tal como os britânicos naquela época, os EUA deram-se hoje o direito de apreender propriedades no alto mar que pretendem serem propriedade de entidades que consideram como organizações terroristas estrangeiras.

No entanto, os métodos mudaram certamente.

Os EUA não licenciaram particulares para actos de pirataria Não…Nem, neste caso, recorreram a uma acção militar.

Um alto funcionário norte-americano disse à Associated Press que nenhuma força militar foi usada nas apreensões. Em vez disso, as ameaças de sanções potencialmente incapacitantes contra os proprietários, seguradoras e capitães dos navios persuadiram-nos a entregar as cargas.

Mas o conceito alterou-se pouco em 440 anos — porque aqui temos uma das potências navais mais proeminentes do mundo a aprovar as suas próprias leis, permitindo-lhe apreender tesouros dos seus inimigos no oceano.

No far west chamávamos-lhes os “Fora da Lei”.

Assim procedem os americanos hoje…São os seus descendentes …

Os carregamentos apreendidos pelos EUA aos quatro navios - cerca de 1,16 milhões de barris de gasolina iraniana, valem cerca de 61 milhões de dólares.

Os fundos realizados com a venda dos carregamentos roubados serão, em parte, dirigidos ao Fundo de Terrorismo Patrocinado pelo Estado dos Estados Unidos. Quase 80% das reclamações sobre esse fundo estão relacionadas com o hediondo ataque ao World Trade Center em 2001. Mesmo se o Irão não foi implicado nesse evento…

Além de privar o governo iraniano de fundos e a Venezuela de gasolina tão necessária, a apreensão das cargas destina-se a dissuadir futuras vendas de petróleo iraniano. O mandado de captura foi emitido contra as cargas de gasolina, não contra os próprios navios, pelo que estes serão provavelmente libertados assim que a gasolina tiver sido descarregada.

Espera-se que altos funcionários da administração Trump realizem um evento para marcar o desembarque dos navios em Houston.

Não pude deixar de pensar na Rainha Isabel I a presidir um banquete para Francis Drake em Deptford, no rio Tamisa, em 1581, e fazê-lo “Sir”, no convés principal do seu navio, o Golden Hind, que tinha acabado de regressar cheio de tesouros espanhóis.

Os EUA, a ONU e Gaza

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