Barnier é o atual negociador do Brexit, em nome dos 27, lugar que tem desempenhado com uma competência unanimemente reconhecida. Foi comissário europeu e, por um breve período, ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país. Em 1996, data em que ocorre a historieta que vou contar, ele era o representante da França, como ministro adjunto para os Assuntos Europeus, na Conferência Intergovernamental para a revisão do Tratado de Maastrich. Eu tinha então essa mesma tarefa, por Portugal.
De Boissieu, hoje aposentado, era representante permanente (nome dado aos embaixadores nas estruturas multilaterais) francês junto da União Europeia. Era um profundo conhecedor das matérias europeias e iria chegar, anos mais tarde, a secretário-geral adjunto do Conselho de Ministros da UE. O seu poder derivava, não apenas da sua inteligência e conhecimentos, mas, dizia-se, da sua pertença à família De Gaulle, que lhe garantia um apoio constante em Paris, independentemente da rotação dos governos. Foi um extraordinário servidor público francês, com quem tive algumas “accrochages”, mas por quem ganhei um imenso respeito.
Entre Barnier e De Boissieu a corrente não passava de todo. Fui testemunha de vários episódios, que muito animaram esses tempos negociais. Apesar de ministro, Barnier não conseguia impedir a impertinência iconoclasta de De Boissieu, que divertia toda a gente à volta da mesa.
Um dia, durante uma reunião negocial em Bruxelas, o ministro, com o embaixador a seu lado, decidiu citar uma opinião que recolhera de François Mitterrand, que tinha morrido meses antes. Tratava-se de uma qualquer ideia sobre o futuro ou o sobre passado da Europa, já não recordo bem.
Barnier, como era seu timbre, foi algo pomposo ao fazer a confidência. Mitterrand era de um campo político oposto ao seu (e ao de De Boissieu, já agora), o que dava foros de alguma singularidade à sua invocação. A sala estava silenciosa, talvez menos por reverência e mais por curiosidade. Foi enfático, solene, ao repetir: “Mitterrand disse-me isso, na conversa que tivemos, só nós dois, em sua casa”.
Ora isto era "demais" para o embaixador, o qual, de viés, olhava Barnier com visível ironia, desde o início da intervenção. E não resistiu. Chegou-se à frente, com o seu eterno pullover azul com um furo do cotovelo, inclinou-se para o microfone que partilhava com o ministro, o qual gozava um segundo de pausa, explorando o efeito da sua frase, e "esclareceu", sobre o momento da conversa com Mitterrand:
- “Avant sa mort, bien sûr!”, não fosse alguém suspeitar de qualquer diálogo do governante com os espíritos...
A sala soltou-se em gargalhadas. Todo o efeito pretendido por Barnier se esvaiu, naquele instante. Já ninguém se lembrava mais o que de tão decisivo teria dito o ilustre falecido.
Olhávamos para a cara furiosa do ministro, que se entaramelava a tentar recolar o discurso perante um fundo sussurrante de risotas contidas, e para o ar divertido do embaixador, ao seu lado, ciente de que tinha ganho o seu dia...
2 comentários:
O Pai do DeBoissieu era irmão do genro do De Gaulle. O De Boissieu exagerava, mas devo-lhe muito boas gargalhadas. E já agora, tendo feito a presidência francesa, dava-se mal com a maior parte dos colegas a quem fazia as maiores sacanices
Fernando Neves
"Il en a les traits, la finesse, la civilité, la culture, l'aspiration à l'universel. Mais il a dans ses poches du poison et des dagues."
https://www.lemonde.fr/europe/article/2010/03/25/pierre-de-boissieu-l-eminence-de-bruxelles_1324281_3214.html
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