Há dias, troquei boas risadas e recordações, ao telefone, com um amigo angolano de há precisamente 35 anos. Conheci-o em Luanda, em 1982. Ele era um jovem diplomata da geração formada depois da independência. Eu chegara a Angola, ido da Noruega, já com sete anos de carreira. Já não sei como nos conhecemos, mas a verdade é que, entre nós, se estabeleceu de imediato uma empatia que dura até aos dias de hoje, transformada mesmo numa forte amizade.
Nessa Luanda com recolher obrigatório, entre a meia-noite e as cinco da manhã, havia muito boa gente que já não se aventurava a circular depois do pôr-do-sol. Uma noite, depois de um jantar no “grill” do Hotel Trópico, onde vivi quatro meses, falei a esse meu recente amigo do mítico bairro popular do Sambizanga, onde frutificara o independentismo angolano. E tendo comentado que devia ser arriscado andar por lá, à noite, ele desafiou-me: “Mas tu queres conhecer o Sambizanga? Podemos ir lá agora beber um copo...”. Fiquei meio sem graça e no meu “Zero Quatro”, um Volkswagen “carocha”, a cair de podre, com buracos no chão por onde entravam baratas, que a tropa tinha deixado à embaixada, e que me estava distribuído, lá fomos nós, pela noite, a caminho das ruelas de terra batida do Sambizanga, beber um copo em casa de alguém. Alguém que logo passei a contar como mais um simpático conhecimento para o futuro. São assim as gentes de Luanda.
Costumo contar um episódio em que, com esse amigo, fui um dia a um cocktail no saudoso e belo Hotel Panorama. A certa altura, quis chamar a sua atenção para alguém que estava do outro lado da sala, que eu tinha a ideia de já conhecer de qualquer sítio. Expliquei então que era "aquele tipo baixo, de casaco escuro, encostado à janela". Havia duas pessoas nessas condições, pelo que foi necessário dar um outro pormenor: "é o que está a fumar". Foi então que o meu amigo reagiu: "Ora bolas! O preto? Já podias ter dito que era o preto...". Era, mas eu, "travado" pelo politicamente correto, estava a hesitar lhe dizer isso a ele, que também era negro. Nada como gente sem complexos para nos colocar à vontade.
Depois de sair de Luanda, continuei a ver esse meu amigo pelo mundo - de Lisboa a Nova Iorque e a Paris. E, de outros locais, íamos trocando mensagens. Até numa tasca transmontana, numa Festa do Avante, revivemos histórias e graças, porque os nossos reencontros são sempre imensamente divertidos. Noto que nunca tive com ele uma troca política de argumentos, talvez porque, como diplomatas, cabia-nos respeitar os interesses próprios dos nossos países, tentando estabelecer as “pontes” onde e como fosse possível, sem nunca agravar as circunstâncias que, em si mesmas, já eram por vezes muito complicadas.
Esse meu amigo angolano teve uma carreira de sucesso. Basta dizer que foi o primeiro embaixador do seu país na África do Sul, entre outros importantes postos e funções. Um dia, entrou para o governo, como secretário de Estado, por vários anos, em pastas diversas. Agora, no novo executivo angolano, sob a autoridade do presidente João Lourenço, o meu amigo Manuel Domingos Augusto tem a cargo a diplomacia do seu país, como novo ministro das Relações Exteriores.
Para as horas que tiver vagas na sua primeira visita a Lisboa, já combinámos uma boa conversa à mesa. O menu terá com certeza pouca política, algum futebol e muita amizade.
5 comentários:
O último parágrafo,é deveras elucidativo das "árduas tarefas" do pessoal diplomático (mordomias não incluídas)...!!!
Quem sabe, se no final do jantar aprazado,, as relações de Portugal e a República Popular de Angola, não ficam mais desanuviadas?
Um amigo angolano
linda foto de Luanda :)
Uma história e um discurso a propósito de pretos:
Era míúdo, com 9 ou 10 anos. Sei que o "terrorismo" (uso as aspas para não ofender o politicamente correcto) já tinha começado. Alguém bateu à nossa porta. Fui abrir. De imediato a minha mãe perguntou: quem é, Manuel? Não conhecendo a pessoa de lado nenhum, respondi, com a maior naturalidade – é um preto, mãe! – "Preto é carvão, eu sou negro", atirou-me de supetão a pessoa que batera à porta. Inocente, fiquei a pensar qual era, afinal, a diferença entre os dois adjectivos. Mas averdade é que nunca mais me saiu da cabeça tão pronta resposta.
Com a descolonização o termo "preto" caíu em desuso. Tinha um sabor colonial. Negro, era o termo usado pela nova linguagem (tal como os cabelos em carapinha passaram a ser moda - agora de novo em desuso!). Já após a independência, provavelmente em 76, ouvi Agostinho Neto num dos seus muitos discursos, para surpresa e tranquilidade minhas, a insurgir-se contra o uso eufesmístico do termo negro. "Sempre fomos pretos, por que motivo havemos agora de ser negros?"!
Nesse momento ficou resolvido para sempre aquela questão que, até ali, nunca me saíra da cebeça.
"Nada como gente sem complexos para nos colocar à vontade."
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