sábado, dezembro 16, 2017

Justiças


O acolhimento em Portugal, após a sua fuga de Timor-Leste, do casal de cidadãos portugueses condenados pela justiça daquele país suscita uma questão muito séria. Não faço a menor ideia se são culpados, da mesma forma que ignoro se são inocentes. Só sei que foram condenados.

Um certo relativismo cultural, que tem atrás de si uma subliminar xenofobia e mesmo algum racismo, considera que certos sistemas judiciais são “inferiores” aos outros, pelo que há alguma legitimidade em fugir à observância das suas regras, em especial quando estão em causa cidadãos “nossos” e decisões que entendemos serem controversas

É evidente que a segurança jurídica não é igual em toda a parte, que há sistemas mais perfeitos do que outros. Mas, se um país como Portugal assume a sobranceria, muito pós-colonial, de contestar a legitimidade de órgãos de soberania de países em desenvolvimento que foram suas colónias, então não se deve admirar e tem de aceitar que outros também desconfiem da nossa justiça.

Um dia, nos anos 90, quando trabalhava na nossa embaixada em Londres, ocorreu, no Algarve, o assassinato de criança britânica. A imprensa tablóide inglesa desencadeou uma campanha contra a insegurança em Portugal, alegando a incompetência da nossa polícia e, no fundo, acusando “os portugueses” (querendo, com isso, significar, uns “selvagens”) pela morte da menina. Foram tempos complexos, com deputados e outras figuras a visitarem, façanhudos, a embaixada, como se o Reino Unido não fosse, ele mesmo, uma “escola” criativa dos mais hediondos crimes, como a história e a literatura regista.

Semanas depois, confesso ter sentido algum gozo íntimo quando, afinal, veio a descobrir-se que o assassino era... um inglês, amigo da família. A imprensa acalmou, por algum tempo, “recolhendo a viola no saco”, nomeadamente quanto à capacidade da nossa polícia.

Pensava eu que o assunto estava encerrado quando, um dia, recebi representes de uma estrutura chamada “Prisioners abroad”, uma associação que defendia os direitos dos cidadãos britânicos detidos no estrangeiro. A filosofia básica subjacente à associação era considerar que o sistema prisional da esmagadora maioria dos países onde estavam encarcerados britânicos seguia práticas que se afastavam do modelo ideal - que, não surpreendentemente, era o britânico... 

Um membro da delegação da “Prisioners abroad” insinuou, no início da conversa, que as autoridades policiais portuguesas poderiam ter forjado uma acusação contra o cidadão britânico. Recordo-me de, com a calma possível, lhe ter dito: “Se ouço a senhora repetir isso, coloco-a fora da porta da embaixada em 30 segundos”. A mulher emudeceu e os seus colegas passaram então a expressar-me as suas preocupações pelas condições de detenção do seu compatriota. Perguntei-lhes: “Mas têm alguma queixa sobre o modo como o detido britânico está a ser tratado?”. Responderam-me que não mas que, no passado, sabiam de casos em que as coisas se tinham passado em moldes que se afastavam dos padrões que entendiam por adequados. Levantei-me, dando a conversa por terminada, dizendo-lhes: “Se acaso, no futuro, tiverem queixas concretas, terei muito gosto em canalizá-las para as nossas autoridades, embora o canal adequado deva ser o advogado do suspeito. Nesse caso, agradeço que me façam chegar isso por escrito. Poupamos tempo”. E levei-os à porta.

3 comentários:

Anónimo disse...

Em tempos recuados em algumas capitais europeias como Lisboa havia aquilo a que se chamava o Cônsul da Nação, para resolver alguns casos de justiça. Estes Cônsulos eram eleitos pelos membros de cada nação residentes em Lisboa, para fazerem o contacto jurídico entre as autoridades locais e os estrangeiros aqui residentes; por os crimes desses cidadãos poderem ser interpetrados aqui de uma forma diferente da do seu país.
Com a massificação da justiça tudo isso acabou e deu nisto. Há quem entenda que apenas há uma justiça mas na selva profunda isso não é assim.

Unknown disse...

Sim, mas o "Cônsul da Nação", na comunidade internacional tinha o valor que tinha... E sabe-se.

Anónimo disse...


Concordo com o texto, Sr. Embaixador.

João Pedro

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