domingo, junho 16, 2019

O rumor dos claustros


Não foi há muitos anos. Aquele embaixador caminhava, decidido, nos corredores do Palácio das Necessidades. Era um homem pequeno de estatura, mas erguia a cabeça para tentar ganhar a altura dos grandes da casa. Pelo vigor da passada, pelo modo confiante como observava à sua volta, num fácies grave e determinado, era patente que estava ungido da determinação daqueles a quem, ao virar da esquina do futuro próximo, iriam ser atribuídas novas e importantes responsabilidades.

Os contínuos já o olhavam de uma forma respeitosa, os diplomatas mais jovens com os quais se cruzava baixavam a cabeça, num reverencial temor, ficando a segredar murmúrios em torno do seu nome, que os zunzuns ligavam à futura ocupação do cargo central da hierarquia diplomática.

Ele era, nesses dias de mudança política no ”terceiro andar” (onde se acolhem os ministros e o seu séquito), o objeto privilegiado do chamado "rumor dos claustros" - uma vetusta forma de boataria diplomática que, em casos limite, chega quase a ser constitutiva de direitos.

Forte das bençãos do destino que inexoravelmente se aproximava, faltando apenas o despiciendo detalhe do convite que ainda não fora formalizado, mas já com a segurança dos putativos eleitos, prenhe de confiança que conversas recentes só tinham adubado, abriu a porta de um gabinete e, não podendo conter mais a exploração do sucesso certo que aí vinha, comentou, para uma funcionária, pessoa tida por muito bem informada, pelo seu lugar na geografia funcional da casa, confiante de a ir ouvir ecoar as suas expectativas:

- Então!? Fala-se agora por aí muito no meu nome, não é?!

A senhora, uma distinta servidora da casa, já vira passar muitos mundos, das glórias aos ocasos, testemunhara a chegada e a partida de várias ambições, olhava já para tudo aquilo com uma relativização construída num sereno bom-senso. Pelo que, arvorando um indefinível sorriso, que a doutrina da casa nunca concluiu se incluía ou não o seu grão de sadismo, respondeu ao interlocutor:

- Falava, senhor embaixador, falava! Agora, esta semana, já se fala noutros nomes...

Golfo

Se há algo que as Nações Unidas poderiam e deveriam fazer, no tocante à situação tensa que se vive no Golfo, por virtude de ataques a petroleiros, e antes que os incidentes possam ser motivo justificativo para ações unilaterais, seria criar uma comissão internacional de inquérito, independente, para apuramento de responsabilidades.

Como é mais do que óbvio, o mundo não pode aceitar que seja a versão americana dos factos a única a prevalecer, salvo, naturalmente, se esta viesse a ser confirmada sem equívocos por observadores neutrais.

Os Estados Unidos, relativamente ao Irão, em especial depois do modo como Washington se comportou no caso do acordo nuclear, não têm um mínimo de credibilidade para poderem surgir como um “honest broker”, num terreno em que já tomaram partido por um dos lados.

E a União Europeia, se existisse como potência, já devia ter assumido uma iniciativa no sentido que referi.

sábado, junho 15, 2019

Moro


Julgo que haverá setores da opinião pública para quem constituirá uma imensa surpresa (e talvez mesmo uma coisa sem sentido) se alguém vier lembrar que o juiz é obrigado a permanecer rigorosamente equidistante da acusação e da defesa. Exatamente como Sérgio Moro não se comportou.

O Arnaldinho


Tínhamos convidado aquele jovem casal brasileiro para jantar, em nossa casa, em Oslo, nesse início dos anos 80. Ele era um diplomata que, numa situação transitória, viera fazer uma "encarregatura de negócios" - isto é, substituir o embaixador do Brasil - à Noruega, por alguns meses. A mulher e filho haviam-se-lhe juntado, por algumas semanas. Perguntaram se podiam trazer a criança, porque não tinham com quem a deixar. Dissémos que sim, naturalmente.

Eram pessoas muito simpáticas mas, desde o primeiro segundo, percebeu-se que a criança, o Arnaldinho, aí com uns três anos, era uma figura incontrolada na família. Logo após a chegada, desapareceu sozinho pela casa, sob o olhar benevolente dos pais, entrando e saindo, numa infernal correria, de todas as dependências. 

Na sala, preocupado com os efeitos dessa peregrinação turbulenta por um apartamento não preparado para agitação infantil, ousei perguntar se não seria melhor mantermos o Arnaldinho por ali. Temi - e, mais tarde vim a verificar, com razão - por um puzzle de milhares de peças com que entretinha parte das longas noites nórdicas, no meu escritório. A custo, percebendo a minha preocupação, o pai lá se decidiu a ir procurar o Arnaldinho. Que chegou, puxado pelo braço, para se sentar junto de nós.

Alguns bibelots que estavam sobre a mesa da sala concitaram, segundos depois, a atenção do Arnaldinho, que se pôs a brincar com umas delicadas peças de cristal. Os pais, esses, sorridentes, mantinham uma serenidade total. A certa altura, não me contive:

- Arnaldinho, não mexa nessas peças, por favor.

A mãe do Arnaldinho lançou-me um olhar onde se lia alguma leve reprovação pelo meu comentário repressivo, aparentemente por estar a limitar a liberdade da criança, que, por acaso, nada tinha partido. Ainda. O pai foi um pouco mais sensível e repercutiu, docemente, o meu alerta:

- Você não toca nessas coisas, querido.

Encolhido num canto do sofá, os olhos do Arnaldinho estudavam opções ofensivas. E logo brilharam ao ver uma taça com cerca de uma dúzia de ovos pintados à mão, uma compra feita, meses antes, em Praga. Eu, nervoso e distraído da conversa, seguia o Arnaldinho pelo canto do olho. Vi-o descer lentamente do sofá e acercar-se a mesa. A sua mão sapuda avançou então, rápida, para um desses ovos, agarrou-o, olhou-o por um instante e esmagou-o sobre o tampo da mesa, espalhando a casca pintada.

Fiquei furibundo por dentro. Não eram peças muito valiosas, mas eram objetos de artesanato que, meses antes, havíamos trazido bem acondicionados, de carro, durante milhares de quilómetros. Vê-las desaparecer por uma destruição gratuita excedia a minha paciência. Mas contive-me, na esperança de uma atitude por parte dos progenitores do pequeno vândalo.

O pai do Arnaldinho teve então a reação máxima que, aparentemente, o estatuto da sua autoridade sobre a criança permitia:

- Arnaldinho, não faz isso! Então partiu o ovo!? Não vai partir outro, não?

O Arnaldinho tomou o remoque como um incentivo e a pergunta como um desafio. E, claro, avançou para outro ovo, que logo teve idêntico destino.

A mãe, "cool", sorriu. O pai "reagiu":

- Arnaldinho! Arnaldinho! Não parte mais nenhum ovo, está bem? Senão papai zanga-se!

“Papai” não ia ter ocasião de zangar-se. Porque, se ia partir, não partiu. Voei para o Arnaldinho, icei-o pelos braços e arquivei-o no canto oposto do sofá. Surpreendido pelo gesto, não tugiu nem mugiu. No silêncio pesado que, por segundos, se fez na sala, coloquei a taça de ovos e, um a um, todos os bibelots que pressenti pudessem ser alvo da sua ação destruidora na prateleira mais alta de um móvel que estava em frente. As mesas ficaram tristemente desertas de decoração. 

O Arnaldinho ficou especado, sem "targets". E os nossos convidados, surpreendidos pelo meu afirmativo "preemptive strike", ficaram, em absoluto, sem graça.

- Então?! E o que bebem?, perguntei, aliviado, mas já com pena dos copos. 

E, já nem sei como, lá se passou mais um jantar... diplomático. Por onde andará o Arnaldinho, nos seus quarenta e tal anos de hoje?

sexta-feira, junho 14, 2019

Escritas


Ela era lindíssima, muito bem “desenhada”, bielorussa, com vinte e poucos anos, funcionária da missão da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em Bishkek, no Quirguistão. Chamava a atenção de toda a gente. 

Estávamos num jantar oferecido pelo chefe da missão a cinco embaixadores, idos de Viena, numa viagem de duas semanas que fazíamos por todos os países da Ásia Central. (Para que não fiquem dúvidas: fiz essa deslocação à minha custa).

O ambiente era descontraído, numa espécie de taverna típica, um pouco fora do centro da cidade, creio que perto de uma estância de ski. Não havia protocolo, a ocupação das mesas era informal, "free seating".

A bela bielorussa sentou-se ao meu lado, anunciando, alto: "Eu fico aqui, para falar com o embaixador de Portugal". Desfiz-me num deliciado sorriso, perante a onda de ironia invejosa da esmagadora maioria dos parceiros (pelo menos) masculinos do repasto. A bielorussa logo esclareceu, contudo, as suas castas intenções: "Tenho a maior admiração por um grande escritor português e quero falar sobre a sua obra. Tenho a certeza que o embaixador o conhece bem".

Preparei-me, intimamente, para lhe explicar a grandeza dos sinos ou os encantos da biblioteca de Mafra, a pretexto do "Memorial do Convento", de José Saramago. Ou, no caso de ser Lobo Antunes, tentaria contextualizar uma literatura angustiada, nascida nos traumas da guerra colonial, como em "Os cus de Judas”, embora o significado de um título como esse levasse mais algum tempo a detalhar. Não estava a ver que outro escritor português pudesse mobilizar o interesse de beldades de Minsk e arredores. Embora longe de ser um alargado conhecedor daqueles autores, o que sabia dava-me para garantir uma dose mais do que suficiente para uma agradável conversa.

Foi então que a jovem me lançou um desafio impossível: "Conhece bem a obra do Paulo Coelho, com certeza! É o maior escritor português, não é? Li tantos livros dele...” Passaram muitos anos e, daquele jantar pelas terras da Rota da Seda, só me ficaram memórias vagas. De uma coisa tenho a absoluta certeza: Paulo Coelho, durante esse repasto, foi um português dos sete costados.

O teste do algodão


Estão decorridos menos de seis meses desde a entrada em funções de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil. Salvo para os turiferários de serviço, para quem a realidade é um detalhe que a fé manda ignorar, está hoje bastante generalizado o sentimento, mesmo em alguns setores que votaram no atual presidente, de que o saldo da nova governação fica muito aquém do aceitável. O presidente, muitos agora o reconhecem, é “despreparado”, como se diz no Brasil, cometeu erros crassos na formação do governo, vive rodeado por uma corte incendiária de filhos e por militares que tentam controlar o seu tropismo para a asneira. Porque não tem um partido sólido no qual se possa apoiar, não conseguiu ainda estabilizar uma relação operativa com o Congresso, o que faz com que todas as iniciativas legislativas sejam marcadas por um casuísmo que fragiliza a sua liderança. Os sinais económicos, que alguns pensavam poderem seguir num sentido otimista, são dececionantes, com os últimos dados do Banco Central a apontarem para uma expetativa de crescimento que não excede 1%.

Bolsonaro é um presidente conjuntural. Recebeu o voto útil de quantos, no essencial, queriam, a todo o curso, barrar o caminho ao PT. Colado à imagem da corrupção, o partido que Lula havia levado à conquista política do Brasil isolou-se fortemente de muitos setores da sociedade, radicalizou o seu discurso e foi estigmatizado pela generalidade dos seus opositores, permanecendo hoje num gueto político. Pelo caminho, ficaram Dilma Rousseff, vítima de si própria e do facto de ter sido “criada” por Lula, e o seu infiel vice-presidente, Michel Temer, afinal mais um peão no xadrez das acusações de improbidade que marcam a imagem de grande parte da classe política tradicional.

Para que a “despetização” do Brasil tivesse sucesso, era necessário afastar Lula da cena política. É que a hipótese dele poder ser eleito nas últimas eleições presidenciais chegou a ser muito elevada. Acusado de alguns crimes, o antigo presidente viu o calendário desses processos ser acelerado de uma forma que só por ingenuidade ou má-fé se pode considerar ter sido natural. Independentemente da sua possível culpabilidade, ficou bem patente que houve lugar a uma aliança objetiva entre os setores políticos que desejavam o seu afastamento e a máquina judicial que o acusou e rapidamente o condenou. Nesta última, surge o nome do juiz Sérgio Moro, ainda um herói para uma maioria dos brasileiros, que Bolsonaro foi buscar para seu ministro da Justiça.

Veio agora a saber-se que, na preparação do processo, o juiz que acabaria por condenar Lula havia mantido uma cumplicidade operativa com a acusação pública, o que a lei expressamente proíbe. Algum escândalo está instalado, sendo contudo óbvio que tal technicality não impressionará minimamente Bolsonaro. Por isso, o grande teste, o “teste do algodão” para se perceber se o Brasil passou já a fronteira da preservação das regras básicas do Estado de direito, será a atitude dos órgãos de Justiça que saem da alçada do ministro face a este caso.

(Publicado hoje no semanário “Jornal Económico”)

quinta-feira, junho 13, 2019

Politicamente correto


Ou muito me engano ou já não deve tardar que os polícias do politicamente correto venham por aí lançar dúvidas sobre a legitimidade de se continuar a mostrar o Santo António com uma criança ao colo...

Corrupção


Hoje, Valdemar Cruz, na “Newsletter” do Expresso, escreve exatamente o que penso:

“A sucessão de casos de alegada corrupção ou de práticas contrárias à lei nas diferentes estruturas do poder, seja autárquico ou nacional, assume-se cada vez mais, nestes tempos de desmesurada influência das redes sociais, como estocadas demolidoras sobre a credibilidade da democracia.

Geram o discurso fácil e demagógico. Alimentam o populismo larvar na sociedade. A incompetência ou a gula de quantos assumem a política como profissão, errada ainda por cima, e se servem da democracia para daí retirarem vantagens pessoais em detrimento do bem público, faz mais para alimentar o espectro que ensombra as democracias do que muitos dos assanhados discursos de quantos exploram os sentimentos mais primários de uma população que, ao sentir-se cada vez mais marginalizada, tende a assumir o perverso discurso do “nós”, o povo, os puros, contra “eles”, os políticos, generalizadamente apresentados como corruptos e açambarcadores.

São estas, também, as crónicas da idade dos mídia. Não é seguro que haja necessariamente mais corrupção. Há, isso sim, uma sociedade mais vigilante e menos tolerante para com estes desvios que se aproveitam da fragilidade das instituições. Há uma vigilância mais apertada de quem tem por função assegurar o cumprimento da lei, e há uma maior sensibilidade de quem tem o dever de informar. Daqui resulta uma maior visibilidade do que antes estaria escondido e silenciado.”

quarta-feira, junho 12, 2019

Futebóis


Se há uma fronteira difícil de cruzar essa é aquela que divide o futebol de Portugal e do Brasil, no sentido de quem vai daqui para lá. Que me recorde, nunca um jogador português, com o mínimo de nomeada, conseguiu vingar no futebol brasileiro.

Por lá andaram, sem uma notoriedade por aí além, o histórico Rogério "Pipi" e Fernando Peres, tal como Paulo Madeira e Jacinto João, entre muito poucos outros. Do mesmo modo, não me consta que tenha tido algum dia um sucesso marcante qualquer treinador ido de Portugal. Paulo Bento e dois outros colegas são disso a evidente prova. Jorge Jesus, ao assumir agora a sua aposta no Flamengo, corre assim um elevado risco.

Pode dizer-se que, até hoje, o Brasil não levou muito a sério o futebol português. Eusébio nunca, por lá, fez a menor sombra a Pelé e Ronaldo tem ali a sua grandeza bastante relativizada, podem crer. Portugal foi subindo no "ranking" da FIFA, mas isso nunca nos fez ascender em proporção na consideração futebolística brasileira. Ser isso justo ou não é completamente indiferente.

Por muitos anos, o Brasil, incontestável potência mundial na matéria, olhou Portugal como um país de segunda linha nesse domínio, lendo os escassos êxitos internacionais dos nossos clubes como fogachos esporádicos, sem sustentação no tempo. O mesmo vale para as seleções. Espanha, Inglaterra, Itália e Alemanha eram e são os seus verdadeiros competidores europeus, da mesma forma que a Argentina o é na vizinhança geográfica. E não me venham falar dos nossos 3-1, em 1966, ou dos 2-0 em Wembley, em 2007. Como embaixador, eu "sofri" 6-2 em Taguatinga, em 2008! No total, são 13 vitórias para o Brasil e quatro para nós. Ponto. E, em futebol, apenas o que é parece.

Para cá, o Brasil exportou desde bastante cedo muitos seus jogadores - excelentes, razoáveis ou medíocres -, os melhores em mero "stop over" para outra Europa. E também uns poucos treinadores com real mérito, de Yustrich a Otto Glória, de Marinho Peres a Scolari. Pode dizer-se que o futebol português deve bastante ao Brasil e que o futebol brasileiro apenas nos deve o acolhimento aqui dado aos seus.

Jorge Jesus, cuja qualidade técnica não está em causa, é um treinador com um perfil que se tem prestado a alguma exploração mediática menos simpática. O Brasil, onde alguma ácida lusofobia teima em persistir em certos meios, é um terreno para fácil exploração dessa sua fragilidade. Assim, estou em crer que ou a sua passagem pelo Flamengo se converte num grande sucesso ou acabará por ser um imenso fracasso, sem nada de permeio.

(Artigo hoje publicado no “Jornal de Notícias”)

Os marchistas


É noite de marchas de Santo António. Recebi um simpático convite para estar nas bancadas da Avenida da Liberdade, para ver os bairros desfilar. Mas não vou. Desde que regressei de vez a Portugal, a véspera do dia de Santo António tem, para mim, uma receita ritual: sardinhas e sangria, noitada pelas ruas, às vezes pelo Castelo e Alfama, outras pela Bica. Hoje, será na Madragoa, perto de casa, com passeio pelas Madres e pela Esperança, seguramente com uma saltada para um último copo ali em Santos.

No tempo da “outra senhora”, a rivalidade entre os bairros e as suas marchas foi sempre muito forte. A mobilização era bastante mais popular e genuína, não havendo dinheiro para a riqueza dos trajes e para as coreografias de hoje. Não raramente, os conflitos surgiam. por invejas e provocações, com pancada à mistura.

Nos anos 70, as marchas populares chegaram a estar proibidas, por algum tempo. Recordo-me bem de um comunicado da Câmara de Lisboa em que, cripticamente, se falava de “infiltrações políticas”, que estariam a potenciar os dissídios. Nunca vi isto devidamente esclarecido, mas fixei, nessa altura, o modo subtil como o “Diário de Lisboa” tratou o assunto, falando dos “conflitos no seio dos marchistas”, num artigo delicioso, com alusões em que, se substituíssemos “marchistas” por “marxistas”, resultava, para iniciados, um texto que aludia às polémicas da extrema-esquerda da época. “Vantagens” da ditadura...

Francisco Lucas Pires


Há cerca de 12 anos, fui convidado a prestar um testemunho para um volume publicado em homenagem a Francisco Lucas Pires (1944-1998). Agora que se assinalam 20 anos sobre a sua morte, com a exibição ontem, na RTP 2, de um documentário que lhe é dedicado, deixo aqui esse texto:

“Conheci pessoalmente Francisco Lucas Pires em andanças europeias, na segunda metade dos anos 90. Era uma figura que, há muitos anos, me intrigava, política e intelectualmente. Dele tinha desenhado uma primeira imagem caricatural, ligada à aventura conservadora da “Cidadela” coimbrã. Bem mais tarde, pareceu-me poder ler, no discurso que desenvolvia como ministro da Cultura da AD, um tom saudavelmente heterodoxo, particularmente num tempo governativo que chegou a ter inquietantes derivas radicais. Como líder do CDS, fiquei com a sensação de que nem sempre se sentia muito confortável com o espartilho partidário, esforçando-se para compatibilizar o formalismo da função com a intransigente vontade de pensar as coisas pela sua própria cabeça. Mas foi como Deputado europeu que Lucas Pires verdadeiramente me surpreendeu.

Porque oriundo de uma escola de pensamento nacionalista, foi uma revelação encontrar em Francisco Lucas Pires uma das reflexões mais originais sobre o posicionamento de Portugal na Europa. Era um tempo em que, para muitos, o “europeísmo” era apenas um sinónimo de comodidade cínica com os fundos comunitários. Posso imaginar que a sua formação germânica o tenha ajudado a perceber melhor as virtualidades do processo integrador do continente. Mas terá sido, sobretudo, a sua inteligência que o levou a formular a defesa empenhada numa postura pró-activa de Portugal na aventura europeia, convocando em seu apoio clássicos que de que estivera distante, como António Sérgio, Vitorino Magalhães Godinho ou Eduardo Lourenço.

A imagem essencial que me ficou de Francisco Lucas Pires é a de um cultor obsessivo da liberdade, um espírito agudo e irónico, alguém queapreciava a vida e que, talvez por isso, se impacientava muito com a estupidez dos que a não sabiam viver. Um dia, num colóquio em Bruxelas,em que éramos os dois oradores convidados, perante a irrelevância e o paroquialismo pateta de algumas perguntas, sussurrou-me: “Veja você o que nós sofremos pela Europa…”. “

terça-feira, junho 11, 2019

Ruben de Carvalho


Era uma força da natureza. Culto, interessado por tudo, tinha uma vivacidade e um permanente gosto pela modernidade das coisas. Militante do PCP, foi, por muitos anos, nesse partido, a alma da Festa do Avante. Nos dias de hoje, no Comité Central, era o único dos seus membros que tinha estado nas prisões da ditadura.

Conheci-o em 1973, num debate no Centro Nacional de Cultura, sobre umas recentes eleições em França. Depois, foram os almoços estivais em casa de Bartolomeu Cid dos Santos que nos voltaram a juntar. Com o Jaime Nogueira Pinto, protagonizou um improvável mas muito interessante programa de debate na RDP.

Com ele, sai agora de cena um certo PCP. Quem o conheceu sabe o que quero dizer com isto.

segunda-feira, junho 10, 2019

O ar do tempo

Há um país que se sente mal neste país. Há um país que acha que o país o não segue ou, quando acaso episodicamente o faz, nunca consegue pôr o país a seu jeito. Há um país com uma infindável raiva, que acha que o país o não compreende, que vive num mal-estar endémico, em “blues” eternos. Há um país que acha que tem uma ideia salvífica para o país, a mezinha mágica para pôr isto direito, mas que o país, pateta, não consegue nunca entender. Há um país sobranceiro, arrogante, feito de gente que, afinal, apenas gostava que o país fosse aquilo que eles acham que o país devia ser. E que, talvez não por acaso, não é.

Esse país, que agora por aí anda com a bílis à solta, não gosta do país que tem, não gosta afinal do país que lhe deu a liberdade de não gostar do país. É o país tremendista do “nós” e do “eles”, em que estes últimos são o sujeito de todos os males, que só não são curados porque a “nós” não é dada a possibilidade de os corrigir. Esse país que agora anda muito vocal, mas que nunca fez nada pelo país, é filho incógnito daqueles a quem, em todas as épocas da nossa História, sempre desagradou o país que tinham. Para esses melancólicos iluminados pelas luzes da outra verdade, isto sempre foi uma “choldra”, uma “seca” feita país, a que urge abrir as portas e as janelas, deixando entrar o ar do tempo. O deles.

No passado, esse país indisposto com o país, era então o estrangeirado. Lá fora estavam todas as soluções, só era necessário importá-las para que a modernidade das ideias, afinal tão óbvia, pudesse aqui frutificar e dar-lhes, finalmente, a glória dos profetas. Com Abril, desembarcaram em Santa Apolónia, com livros e ambições de reconhecimento. O país, que tem da generosidade o sentido da medida, deu-lhes o que era devido. Não mais. 

Mas a semente, qual OGM, mudou de qualidade, transmutou-se. O país do despeito transitou entretanto de geração, ilustrou-se nas Américas, leu Popper e, enterrando o latino, anglo-saxonizou o seu projeto. Andou os últimos anos a fazer livrinhos, acolhido em universidades de receita segura, colunizando-se pelas plataformas da moda. Nos partidos, onde se muda a política com a legitimidade das vontades expressas, entram e saem, nervosos, à medida das ambições, falhos de votos e reconhecimento. Cavalgando as inseguranças de muitos, as dúvidas de uns tantos, os temores de alguns, ei-los agora a adubar de populismo os seus discursos, tentando que os dias do país se confundam com os da sua raça.

Quem os topava bem era o O’Neill, que os citava, definitivos e, no entanto, tão tristemente provisórios: “Não, não é para mim este país!”. E era também um poeta, imaginem!, de Portalegre, Régio de seu nome mas republicano de gema, quem lhes respondia, quem lhes responde, em nome do país: “Não vou por aí!”

Daqui a pouco...


A RTP e o futebol português


Muitos portugueses pelo mundo, que se habituaram a ver a RTP Internacional, mostraram-se ontem bem frustrados por não terem podido assistir à vitória de Portugal sobre a Holanda, na final da Liga das Nações. Esta queixa é, aliás, recorrente noutras competições internacionais transmitidas pela RTP.

Fui tentar saber o que se passou.

Nos grandes campeonatos, negociados pela UEFA/FIFA, cada país só consegue adquirir os chamados direitos territoriais (para o seu território geográfico), e isto acontece com os Mundiais, os Europeus e, agora, a Liga das Nações.

É a própria UEFA (FIFA, no caso do Mundial) que vende diretamente estes jogos para os territórios internacionais (EUA, Ásia, África), não permitindo aos canais internacionais dos operadores europeus transmitirem estes jogos, aliás obrigando a fazerem o “geo blocking”, ou seja colocar outro conteúdo nessa emissão ou colocar uma nota a dizer que não existem direitos de transmissão. Todos os outros operadores internacionais, aliás, têm o mesmo problema, como se perceberá se os tentarmos sintonizar nessa altura. Se acaso a RTP procedesse de forma diferente, teria de arcar con muitas milionárias.

A RTP sabe bem que esta é uma frustração para os portugueses que vivem pelo mundo, mas a solução não está, de todo, na sua mão, nem aliás, como referido, de nenhum outro operador europeu, quando se trata de grandes competições organizadas pela UEFA/FIFA.

É esta a explicação. É pena, mas é assim!

O fado colonial



Anos 80, Luanda. António Pinto da França, o magnífico embaixador de Portugal em Angola com quem eu trabalhava, nesse tempo muito difícil das relações entre os dois países, procurou usar a comemoração do Dia de Portugal para acentuar uma forte nota portuguesa na capital angolana. Pelo que decidiu fazer uma receção que tinha o fado no seu centro.

Na embaixada, o assunto foi discutido, com alguns de nós a achar que a Angola oficial podia ver a iniciativa como saudosista e passadista, como um sublinhar de um Portugal de outros tempos, que por ali então se condenava, nos ataques quase diários na imprensa de que éramos objeto. 

António Pinto da França via, em geral, as coisas com muito mais presciência que nós e, diga-se desde já, a receção acabou, contra as nossas reticências, por ser um grande sucesso. 

Nas vésperas, contudo, havia ainda algum nervosismo sobre a eficácia do gesto. E eu, divertido, contribuí para aumentar a confusão. 

A fadista vinda de Lisboa, convidada pela embaixada, chamava-se Luz Sá da Bandeira. E para o que me deu então? Em conversas à margem de um jantar oferecido à artista, na véspera do 10 de junho, deixei discretamente “cair” junto de algumas pessoas que a embaixada soubera que, às autoridades angolanas, estava a causar alguns engulhos o facto do nome da fadista ser, precisamente, o de uma das principais cidades do país, cujo nome tinha sido mudado pela independência.

Para varrer a memória colonial, Angola tinha procedido a uma forte alteração toponímica, que afetara as ruas de Luanda (as quais, à época, se assemelhavam ao glossário de uma História do Movimento Operário...) e da grande maioria das cidades: Nova Lisboa passara a Huambo, Carmona a Uíge, Serpa Pinto a Menongue, Henrique de Carvalho a Saurimo, etc... E a cidade de Sá da Bandeira chamava-se agora Lubango. 

Nas conversas, perguntei a algumas pessoas, como quem não quer a coisa, se tinham ouvido alguma reação ao assunto, por parte de alguém. Ninguém tinha ouvido nada, mas, naquele microcosmos que era o Portugal expatriado que vivia à volta da embaixada, a minha referência colocou logo o assunto a correr.

A certo momento, António Pinto da França aproximou-se de mim e perguntou: “Ouviu alguma coisa sobre uma reação dos angolanos, por causa do nome da fadista? É que correm por aí uns zunzuns”. Fiz uma cara séria e disse: “Sabe, eu não lhe quis dizer nada, mas também já me chegou isso. Mas acho que havia uma solução fácil”. O embaixador olhou para mim com ar perplexo e expectante. “A melhor maneira de dar a volta ao problema era, amanhã, na festa, ao apresentar a senhora, começar por dizer “Temos aqui connosco hoje Luz Sá da Bandeira ou, se quiserem, Luz Lubango...””

António Pinto da França olhou para mim como se eu tivesse ensandecido. Começou a reação com um “Ó Francisco, você não pode estar a falar a sério...” E foi o meu sorriso, subitamente aberto numa gargalhada, que, num segundo, o convenceu que estava perante uma patranha inventada pelo seu jovem colega. Caramba! Ele que era um mestre em “partidas”, em invenção de cenas falsas em que alguns de nós frequentemente “caíamos”, recebia finalmente uma de volta...


Neste 10 de junho, sinto muitas saudades do meu amigo António Pinto da França.

sábado, junho 08, 2019

A agenda do presidente

Passou bem mais de uma semana. E, desde então, as palavras do presidente da República, ditas perante legisladores americanos, foram glosadas até à exaustão.

Para o que aqui me importa, Marcelo Rebelo de Sousa disse na altura que, muito provavelmente, o país iria assistir a uma crise na direita, mas que ele, um presidente oriundo dessa mesma direita, funcionaria como um fator equilibrador.

O presidente não “dá ponto sem nó”. Depois ter ter sido tão estranhado o seu silêncio na chamada crise dos professores, mesmo com a ameaça de demissão de António Costa, ele decidiu colmatar esse seu pontual défice de presença pública e veio a terreno, um tanto inopinadamente, comentar, no fundo, os efeitos que, a prazo, o resultado das eleições europeias poderiam vir a ter.

O presidente deixou claro a sua perspetiva de que, salvo um imprevisto, as próximas eleições legislativas acentuarão o declínio dos dois partidos da direita. Implícito ficou que, nessa possível conjuntura, poderia ocorrer uma instabilidade nas respetivas lideranças, em especial se ficarem com  grupos parlamentares reduzidos e, por isso, impotentes.

Nesse contexto, da perspetiva de uma governação forte titulada pela esquerda, com uma orfandade nos setores tradicionalmente votantes à direita, ele, Marcelo Rebelo de Sousa - repito, oriundo dessa direita - surgiria, sob autoridade constitucional, como um fator compensador do regime, um contraponto, não deixando que uma parte do país o sentisse “acaparado” pela outra, na expressão nacional dos poderes. No fundo, Marcelo Rebelo de Sousa quis, muito simplesmente, dizer que, por esse motivo, sente um imperativo em se recandidatar.

Podemos perguntar-nos se é natural um presidente exprimir-se publicamente desta forma, ao jeito de comentador, sabendo que a sua palavra pesa bastante e pode impactar sobre a própria realidade. Não é, mas Marcelo pressente que tem o dever (político, não institucional) de atenuar a inquietude que atravessa o campo conservador que maioritariamente o elegeu, atalhando o desespero que aí pressente existir. É claro que isso pode levar à questão de saber se um presidente “de todos os portugueses” deve sugerir-se como especial representante de alguns. Não deve, mas Marcelo faz uma interpretação muito peculiar do seu papel presidencial e deve achar que esta eventual subversão de papéis públicos pode acabar por ser um fator de “acalmação” no país.

Na política, como na História, nada se repete. Porém, vale a pena lembrar como Mário Soares acabou por funcionar como contraponto, para a esquerda, nos “anos de chumbo” que esta passou sob a governação de Cavaco Silva. No final, recorde-se, Soares saiu incensado em glória e na memória coletiva da esquerda, com muita direita aos seus pés. Estou em crer que um cenário simétrico não desagradaria a Marcelo de Sousa

sexta-feira, junho 07, 2019

Escrito, faz hoje 10 anos, neste blogue

A vida política do Reino Unido tem, para o equilíbrio global da Europa, uma importância muito maior do que às vezes se supõe. A crise que atravessa a liderança britânica, no que pode vir a representar de mudança no paradigma de comportamento de Londres face ao projecto europeu e do seu potencial impacto na "special relationship" com os Estados Unidos, acaba por ser um tema que diz respeito a todos nós.”

(7 de junho de 2009)

quinta-feira, junho 06, 2019

O Foguete


”Apanhava-se” em São Bento. Era um comboio prateado, a jóia da coroa da CP. Do Porto a Lisboa, levava um pouco mais de quatro horas. Ia a “cem à hora”, imaginem! Era o máximo! Andei nele, pela primeira vez, em 1955. 

Na poesia de António Gedeão, Filipe II tinha tudo o que queria, mas ”o que ele não tinha era um fecho éclair”. Ora o Foguete, nesses anos 50, tinha imensa coisa, mas não tinha WiFi (e, estranhamente, ninguém dava por isso). 

Pois, pois! Hoje, o Alfa Pendular, que demora menos de três horas a ligar as duas cidades, também não.

A matemática das bolachas

Quase todas as madrugadas, pé-ante-pé, para não suscitar críticas caseiras, deslizo até à cozinha em busca de um sustento complementar, porq...