Na minha infância, colecionei cromos para um álbum de “raças humanas”. Posso garantir que essa criança que então falava abertamente dos “pretos” e dos “índios”, não era diferente da pessoa que sou hoje. No que me toca, o respeito pelos outros, em que peço vaidosamente meças, tem barómetros mais importantes do que o ambiente que faz com que, ao escrever este artigo, me sinta obrigado a “pescar” as palavras, para fugir à severidade de alguns polícias da linguagem.
Mas é sobre outros polícias que eu quero aqui falar. Os graves incidentes – porque foram graves, não nos iludamos – que se passaram nos últimos dias entre as forças policiais e grupos de cidadãos de etnia negra (nem sei se posso dizer isto) demonstram que o problema da convivência inter-étnica está longe de resolvido em Portugal. Desde o fim do ciclo colonial, criaram-se, em especial à volta de Lisboa e em outras periferias, bolsas de pobreza em que predominam cidadãos oriundos de África ou deles descendentes. Fruto da exclusão social e da ineficácia da sua integração, essas pessoas vivem em geografias muito estigmatizadas no imaginário público. Constatar que esses ambientes sociais favorecem o surgimento de criminalidade é apenas uma obviedade. Embora perceber o que potencia o crime não deva ser caminho para desculpá-lo, entenda-se.
A atividade policial nessas zonas torna-se extraordinariamente difícil e assume por vezes formas vistas como hostis por aquelas comunidades. A nossa polícia, embora tenha evoluído muito nos últimos anos em matéria de formação, está ainda longe de poder assegurar uma rigorosa disciplina de atuação em situações de elevado stress. A cultura social de onde muitos dos seus agentes são originários, e em que o seu quotidiano se insere, continua marcada por estereótipos e preconceitos que estimulam o ocasional recurso a formas excessivas de reação, em particular se sujeitos a níveis elevados de provocação física ou verbal. Tentar entender essas condições conjunturais é diferente de fechar os olhos a abusos e à violência desproporcionada.
O que se passou nos últimos dias não pode nem deve ser visto como um mero e isolado incidente. Não somos a sociedade de “brandos costumes” com que gostamos de nos pintar. Enquanto alguns se entretêm com o jogo das palavras tabu, está a nascer por aí um país feito de ódios recalcados. Se os poderes públicos não montarem rapidamente uma ação eficaz, que comporte o binómio diálogo-justiça, a realidade, que também é política, encarregar-se-á do resto.
(Artigo ontem publicado no Jornal de Notícias”)