domingo, julho 15, 2018

Folguedo de Cima


Vista parcial do panorama que se observa do solar junto do celebrado miradouro de Folguedo de Cima, nos arredores da aldeia de Mangalhona, histórica localidade (vulgarmente conhecida por outra designação) da zona raiana. Ao longe, o país vizinho. 

sábado, julho 14, 2018

Croácia


A Croácia disputa amanhã com a França a final do Mundial de futebol. Nos últimos dias tenho observado que muitos dos apoiantes da França acabam por sê-lo apenas como forma de se oporem politicamente à Croácia. A sua história durante a Segunda Guerra mundial, bem como o comportamento do novo país durante o conflito jugoslavo, criaram fortes anti-corpos à Croácia em vários setores “com memória”. E o futebol não escapa a estas polarizações.

Vou recordar uma historieta, que talvez venha a propósito.

O escritor Álvaro Guerra foi um dos escassos embaixadores oriundos do mundo fora da carreira diplomática por quem o Ministério dos Negócios Estrangeiros sempre manifestou genuíno respeito. A história que hoje relato passou-se em 1996, ao tempo em que ele era nosso representante junto do Conselho da Europa (CdE).

Numa tarde em Estrasburgo, senti o Álvaro um pouco embaraçado, durante a conversa que comigo teve, no caminho entre o aeroporto e hotel. Eu representaria Portugal, no dia seguinte, no Comité de Ministros do CdE, nesse que era o meu primeiro ano no governo. Notei que estava mais lacónico do que era costume e, uma hora depois, ao deixar-me à porta da residência do secretário-geral da organização, onde os membros dos governos tinham um ritual jantar, surpreendeu-me com a frase: "Logo à noite, espero-o no hotel. Precisava de falar consigo".

Fiquei intrigado. Eu tinha uma excelente relação pessoal com Álvaro Guerra, uma figura da intelectualidade portuguesa que conheci logo após o 25 de abril, cujo humor e simpatia, depois complementados pela vivacidade inteligente da Helena, sua mulher, transformavam as minhas idas a Estrasburgo em belos momentos de amena cavaqueira, onde a política portuguesa era sempre percorrida com apurada ironia. E grande cumplicidade. Que quereria o Álvaro? Um novo posto? Ele estava há pouco tempo no CdE, pelo que talvez me quisesse sensibilizar para algum problema de pessoal. Logo se veria.

Os jantares em casa do secretário-geral do CdE, que tinham lugar todos os seis meses, eram sempre precedidos de uma conversa "au coin du feu", com um convidado. Nessa noite, entrei na sala lado o lado com o ministro croata dos Negócios Estrangeiros, Mate Granic, e, por um acaso, sentámo-nos um em frente ao outro, nos dois melhores sofás individuais da sala.

(Nos cinco anos seguintes, eu e Granic, quase sem exceção, duas vezes por ano, tornar-nos-íamos "proprietários" desse lugares, que passaram a ser "cativos", na invariável coreografia com que o SG Daniel Tarschys e, mais tarde, Walter Schwimmer dispunham a sala. Caprichávamos em não perder esses "nossos" sofás, cujo conforto nos permitia resistir melhor às "secas" que alguns convidados nos pregavam. E gozávamos com isso.)

Eu conhecera Granic, meses antes, em Zagreb. No quadro de um discreto (diria mesmo, secreto) périplo que havia feito à volta da Europa, acordara com ele uma troca de apoios: a Croácia votaria favoravelmente a nossa candidatura a membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas e nós dar-lhe-íamos o nosso voto para a sua pretensão de entrar para o CdE.

Diga-se que esta última candidatura estava longe de ser consensual: o regime croata mantinha ainda falhas no tocante à observância de alguns princípios da ordem jurídica protegida pelo CdE e, por essa razão, alguns Estados membros mantinham reservas quanto a esta adesão. Por "realpolitik" e particular interesse nacional, mas igualmente pelo facto de considerarmos que uma integração da Croácia no CdE era a melhor forma de promover a observância de tais obrigações, o governo português havia optado por dar o seu apoio à pretensão croata, contrariando abertamente a posição que era defendida pela missão portuguesa em Estrasburgo, chefiada por Álvaro Guerra. No dia seguinte a esse jantar, a anteceder a reunião do Comité de Ministros, teria lugar a "foto de família", com os membros do governo e os embaixadores, que consagraria a entrada da Croácia na organização.

Regressei ao hotel e, no "hall", estava já o Álvaro Guerra. Sentámo-nos para uma bebida no bar e ele revelou-me a razão pela qual queria falar comigo: vinha pedir-me o favor de o dispensar de estar presente na cerimónia do dia seguinte. Álvaro Guerra fora embaixador em Belgrado e, tal como a esmagadora maioria dos colegas portugueses que haviam tido a experiência de servir na capital jugoslava (hoje da Sérvia), Belgrado, Álvaro "went native" e assumia uma posição fortemente pró-sérvia, com muito escassa simpatia (e isto é um "understatement"...) pela Croácia.

Era uma posição política, talvez pouco diplomática, mas as questões limites de consciência são respeitáveis, desde que assumidas de modo correto e não conflitual com os interesses do país. Não vi, assim, nenhum inconveniente em isentá-lo do exercício, que constatei que lhe seria muito penoso. No dia seguinte, ele assistiu, de longe, à fotografia comemorativa da adesão da Croácia, que há dias descobri na minha papelada (com muito menos cabelos brancos, diga-se).

Logo de seguida, sentámo-nos na sala do Conselho de Ministros e o Álvaro perguntou-me: "Quem foi a "alma danada" que, em Lisboa, teve a infeliz ideia de decidir o nosso voto em favor da Croácia?". Com um sorriso irónico, esclareci-o que fora precisamente eu o autor do "deal" com Granic, feito em segredo em Zagreb, escassos meses antes. Álvaro Guerra estava estarrecido! "Você?!". Expliquei-lhe a negociação e a racionalidade subjacente à decisão tomada, mas tenho a certeza que não o convenci. O Álvaro não se zangou comigo, como também o não fazia quando eu combatia, com ardor e ironia, a sua "aficción" tauromáquica.

O Álvaro morreu em 2002. Se fosse vivo, tenho a certeza de que amanhã estaria a gritar: “Allez les bleus!”.

sexta-feira, julho 13, 2018

Ai Brasil !


Há dias, em escassas horas, o Brasil assistiu – e eu, que estava por lá, também - a um debate extremado de natureza político-jurídica, envolvendo, uma vez mais, Lula da Silva. Um juiz de turno, numa instância que, horas depois, viria a ser declarada incompetente para tal, tomou a polémica decisão de mandar soltar o antigo presidente. No emaranhado quase incompreensível que hoje constitui o processo judicial brasileiro, sucederam-se ordens e contra-ordens. As televisões encheram-se de especialistas (como por cá também houve, ao que me disseram, sobre caves tailandesas). Os atores políticos, chamados a pronunciar-se, reagiram da forma expectável, algumas vezes com a ambiguidade de um discurso tático, atentas as eleições que se aproximam. E, sem surpresa, Lula continuou na prisão, onde, aliás, rapidamente teria regressado, se acaso tivesse sido solto.

Os amigos de Lula, que entendem que a sua condenação e posterior prisão não passaram de uma orquestrada fraude judicial com objetivos políticos, exultaram, entretanto, com a possibilidade momentaneamente aberta pelo complacente juiz. Os seus detratores, ao invés, crismaram o agente da justiça de todo arsenal de epítetos injuriosos e, naturalmente, rejubilaram com o desfecho frustrado do episódio. 

Nada disto parece hoje estranho, num Brasil que vive um tenso ano político, com eleições no segundo semestre, com um presidente completamente desacreditado, um governo errático que parece seguir um “script” desligado do mundo real, com as mãos atadas por um Congresso (Senado e Câmara de deputados) onde se “costuram alianças” e se fazem “articulações” que espelham já todas as ambições dos proto-candidatos. O sistema político mostra-se incapaz de uma auto-regeneração, vivendo sob uma patente desconfiança dos cidadãos, que olham com desprezo a continuação dos jogos de distribuição de lugares e verbas orçamentais, imagem de marca da velha e relha política. A máquina judicial, onde, desde há uns anos, passaram a repousar (e ainda repousam) muitas esperanças, surge cada vez mais acusada de instrumentalização, ao serviço das agendas políticas. E nela, cada cidadão brasileiro já elegeu os “bons” e os “maus”.

Neste maniqueismo obsessivo, o Brasil de hoje pensa com o coração e o “nós ou eles” converteu-se na regra de um jogo muito perigoso. Sabe-se como um contexto instalado de desencanto pode ser pasto fácil para populismos. Por mim, não gostaria de ver o Brasil regressar à América Latina, se bem me faço entender.

quinta-feira, julho 12, 2018

Ramona e outros azares


Na minha infância, recordo-me de ouvir a minha mãe dizer que uma música chamada “Ramona” dava má sorte. Quando os acordes dessa melodia surgiam na rádio (na minha terra não usamos a palavra telefonia e outros vocábulos análogos, que fazem parte do léxico das lisboetices), havia uma corrida imediata a mudar de estação. 

Eu era muito miúdo e impressionava-me que pudesse haver coisas dessa natureza, ou melhor, coisas que ultrapassassem a natureza que tinha à minha frente, que foi sempre o alfa e o ómega da minha maneira de olhar o mundo. Vivi a acreditar no que vejo. E sempre e só nisso.

Nessa eterna e simples perspetiva, sempre vi as sextas-feiras 13, como vai ser o dia de amanhã, como uma crendice com folclórica graça, mas só isso. Não acredito no azar e na má sorte, talvez porque, na vida, sempre tive sorte da boa - ou, quando isso não aconteceu, assobiei para o lado, fiz de conta e passei à frente. 

Não passo por baixo de escadas apenas com medo de que me caia algo na cabeça, não gosto de gatos pretos porque não gosto de gatos em geral, abro sem receio guarda-chuvas dentro de casa para testar o estado das varetas e só não deixo tesouras abertas em cima da cama para não correr o risco de me cortar. Sou totalmente imune a toda e qualquer crença, a coisas ditas “sobrenaturais”, a signos e, repito, a tudo aquilo que esteja para além do que o meu olhar alcança. Eu faço parte de quantos não têm a menor curiosidade em saber o que está para além da curva...

Vem isto a propósito da “Ramona” e de amanhã ser sexta-feira 13. Ontem, numa estrada do Brasil, perto de Congonhas do Campo, vi uma placa com o nome de uma localidade chamada Ramona. Contei então para a pessoa que ia ao meu lado a atitude da minha mãe perante a canção mas, curiosamente, não senti vontade de ir ao YouTube para ouvir a malfadada melodia. Seria por respeito à crença da minha mãe ou porque começo a enfraquecer as minhas defesas face ao desconhecido? Fiquei na dúvida.

Ainda a propósito de “azares”, recordo-me de ter um dia falado, no Brasil, numa conversa de amigos, de um episódio ocorrido no dia da implantação da nossa República, em 5 de outubro de 1910. Estava então de visita a Portugal o presidente eleito do Brasil, que tomaria posse no primeiro dia do ano seguinte. Inopinadamente, ele foi apanhado no meio dos combates. Teve de haver uma parlamentação entre os contendores por forma permitir a saída do dignitário (aproveito para pedir que não escrevam “dignatário”, como se vê muito por aí) estrangeiro, que nada tinha a ver com a nossa peleja interna. 

Porém, quando, no meio dessa conversa, tentei lembrar-me do nome do homem, um dos amigos pediu-me que o não fizesse: é que, aparentemente, referir esse nome, no Brasil, dá azar! 

Fiz-lhe a vontade, mas só então. Amanhã, sexta-feira 13, dia em que por qualquer razão me apetecia estar em Vilar de Perdizes, já posso dizer, para desafiar o azar, que esse político se chamava Hermes da Fonseca (na imagem).

E pronto: aqui fica a minha história para o dia oficial do azar, data em que, por acaso, vou ter a dita de viajar para casa de uns amigos, num local tão aprazível que o crismei do lugar de Nossa Senhora do Folguedo de Cima. É que ainda há dias de sorte e o meu vai ser nesta sexta-feira 13.

quarta-feira, julho 11, 2018

terça-feira, julho 10, 2018

Mundial

Um belo jogo entre a França e a Bélgica. Sei bem menos do que os especialistas da bola, mas, cá na minha, acho que, podendo a Bélgica ter ganho, a vitória francesa se justifica marginalmente, se esquecermos os primeiros vinte minutos de jogo. Como se ouve na minha terra: “digo eu, não sei...”

Tenho pena de amanhã não poder ver o jogo entre a Inglaterra e a Croácia. Mas como me é perfeitamente indiferente o resultado, como já me foi o de hoje, contento-me com um resumo tardio. 

Quem é que eu gostava que ganhasse o Mundial? Portugal, claro! E, não tendo sido isso possível (às vezes a justiça existe, face à miséria que foi a nossa prestação), teria gostado que o Brasil ganhasse (apesar das “fitas” tristes do Neymar). No resto, é-me indiferente. A sério!

Juízo no Brasil

Nelson Motta, citado hoje em “O Globo”: “No Brasil, o Diabo não veste Prada”, veste toga...”

Tarde desportiva

Que país quero que ganhe o Mundial? Sei lá! Recuso-me a determinar as minhas opções pelas simpatias políticas ou pelo impressionismo do “gosto mais deste do que daquele”. Não acho que tenhamos de tomar opção e adoro ver jogos (sempre, mas sempre!) sem ouvir o som e ir gerindo as minhas preferências em função do decorrer do jogo. É o que vai acontecer.

Época de transferências

Já “fui” do Barcelona por causa do Figo. “Transferi-me” para o Real por causa do Ronaldo. “Puxo” pelo Manchester United (nunca pelo Man’ United, como os locutores a armar ao íntimo) por via do Mourinho. Mas ainda não me vejo a “jogar” pela “Vecchia Signora”...

Tiradentes

(Ainda hoje encontro gente que acha que o herói Tiradentes, lá no fundo,  não será estranho à crise dos dentistas que, para sempre, inquinou as nossas relações com um certo Brasil...)

Viemos a Tiradentes, pela primeira vez, há quase trinta anos. Com o Zé Stichini Vilela, que vivia então no Rio. Ficámos instalados no magnífico Solar da Ponte, onde conhecemos os donos, a Ana Maria e o John Parsons. Voltámos algumas vezes mais. Sempre com gosto. Conversar com a Ana Maria, uma mulher cultíssima e muito interessante, oficiar o ritual do chá às cinco com o John, na sala de cima, soava por ali a estranho, mas era algo belíssimo. E sempre sereno.

O Zé desapareceu, há muito. O John também e a Ana Maria seguiu-se-lhe, há pouco. O Solar lá continua, magnífico, no centro da vila (ou será cidade?). E Tiradentes, embora muito mudada, também.

Essa nossa primeira viagem a Tiradentes foi nos dias eleitorais de 1989, em que um Lula barbudo e de olhar alucinado viria a ser derrotado por um “kennedyano” Collor, uma hábil e desastrosa construção da Globo. Recordo-me de mim a devorar os tempos televisivos de antena (havia aquele fantástico candidato do “meu nome é Eneias”), a ficar deslumbrado com a qualidade (que eu desconhecia) da imprensa diária brasileira, a tentar perceber a complexa política local (“ciência” adquirida que me ajudaria, tempos mais tarde, quando por aqui “embaixei” por quatro anos).

A vila (ou cidade) de Tiradentes era então, nesse ano de 1989 (em que na Europa um certo muro caía), um quase deserto de comércio. Restaurantes não havia, o Solar não servia jantares e recordo bem que errámos pela noite, nas ruas desertas (exceto de cães, que ainda hoje continuam a ser muitos, seguramente descendentes dos desse tempo), com alguma gente a aflorar às janelas das casas térreas, em pose de “maria-sem-vergonha”, olhando-nos com cordial estranheza, até que aportámos a um boteco simples, onde matámos a fome de fim da noite. As pedras rudes daquelas ruas ficaram-me gravadas. Como o desejo de voltar.

A terra, nos dias de hoje, já não é bem a mesma. As ruas de Tiradentes, hoje cheias de turismo, quase deixaram de ter habitantes locais para se transformarem num imenso centro comercial, loja-sim-loja-sim, imensas pousadas (como aqui se chama às nossas pensões), montões de casas que vendem um belo artesanato - aquelas coisas que apetece comprar mas que, depois, regressados a casa, não sabemos nunca onde colocar. Mas, note-se!, são lojas belíssimas, coloridas com gosto, com gente agradável, de uma paciência sorridente para os inquisitivos protoclientes. Até um argentino de “photomaton” opera, sem grande jeito, por ali.

Ah! E como na canção de Chico Buarque, “há um bar em cada esquina, p’ra você comemorar, sei lá o quê!”. Eu, por acaso, sei.

segunda-feira, julho 09, 2018

Cabinexit



Depois de David Davies, agora sai Boris Johnson do governo britânico. Já não é o Brexit, é o Cabinexit.

Lula


Estar no Brasil, nesta hora de Lula-sai-não-sai-da-cadeia, é um verdadeiro privilégio para o turista político que sempre sou. Pelas televisões desfilam legiões de especialistas, as opiniões radicalizam-se e, às vezes, sobem mesmo de tom. Um descnhecido juíz “de plantão” que tentou soltá-lo passou a ser uma vedeta que, instantaneamente, se tornou herói/vilão, dependendo da posição de cada um. A mim, que me exijo neutral como a Suíça, cabe-me explicar ao meus interlocutores que a expressão “a soltura de Lula”, que agora por aqui faz manchetes, em português de Portugal teria outro significado...

O turismo e os presidentes


O Augusto é o dono do “Charm Country”, um restaurante simples, algures numa estrada de Minas Gerais (a identificação geográfica não será muito útil, porque este Estado brasileiro é maior do que a França), onde já parei uma boa meia dúzia de vezes (como hoje fiz) para um feijão tropeiro e um queijo do serrado com goiabada cascão. 

Falámos de Portugal, que o Augusto não conhece, país de que lhe dizem muito bem (a ideia de que a generalidade dos brasileiros sabe bem o que é Portugal é um conhecido mito lusitano). “Parece que agora tem muito turista por lá! É pelo novo presidente, não é?”.

Embatuquei, confesso! Podemos tecer muitas loas, algumas bem merecidas, à ação do presidente, mas esta de ele ser responsável pela onda de turismo foi a primeira vez que ouvi. “A contrario sensu”, como dizem os juristas, poderíamos concluir maldosamente que Cavaco afastava os turistas?

sábado, julho 07, 2018

Tanto mar?


Um fim de tarde de 1989, com o sol a pôr-se ao fundo da montanha, encontrou-me na praça central de Ouro Preto. Olhando em volta, entre a rua Direita e a do Ouvidor, apercebi-me, pela primeira vez, que uma parte de nós mesmos, dos portugueses, ficou para sempre por ali, por mais cantado que agora seja o sotaque, por muito distante que o nosso próprio mundo agora possa estar. Essa imagem ficou-me gravada na memória e atravessou comigo os anos. 

Passou-se mais de década e meia antes de eu regressar ao Brasil e antes de perceber – de novo no casario de Ouro Preto, mas também no silêncio nobre de Alcântara, no bulício africano do Pelourinho de Salvador ou nas esquinas apressadas do centro do Rio – que, verdadeiramente, só se pode entender bem o que Portugal é, e não apenas o que Portugal foi, depois de mergulhar no Brasil.

A comoção de entrar no forte Príncipe da Beira, de tropeçar nos nossos vestígios em Nova Mazagão, de lembrar os Açores em Ribeirão da Ilha, de ficar esmagado pela monumentalidade do Real Gabinete do Rio, de fixar a decadência serena da Beneficência Portuguesa em Belém, de sentir o cheiro forte das lojas de tudo, frente ao mercado de Manaus – tudo isso é preciso para que se prolongue em nós a interrogação, sem resposta, sobre o que é, afinal, ser português no mundo. Não se é português porque se nasceu em Portugal. É-se português pelo somatório das viagens que outros fizeram por nós, dos que foram e voltaram cheios de histórias mitificadas das Pasárgadas que poderiam ter tido, mas também dos que não voltaram, dos que “queimaram as caravelas” e se entregaram aos novos mundos que fizeram seus.”

(Texto retirado da introdução ao meu livro “Tanto Mar? - Portugal, o Brasil e a Europa”, ed. Thesaurus, Brasília, 2008. Recordei-me deste texto, há minutos, ao chegar a Ouro Preto)

Todos a bordo?


Ainda nos recordamos do discurso de Juncker, em 2016, quando anunciou uma espécie de estado de emergência da Europa, fruto das angústias suscitadas pelo Brexit, que se somavam às múltiplas perplexidades que já então atravessavam o projeto integrador. A resposta à tragédia dos refugiados dividiu transversalmente a União, tal como, noutro sentido geográfico, a questão da solidariedade perante a crise financeira o havia já feito. O alerta pessimista, assumido por um otimista profissional como é o presidente da Comissão europeia, foi então bastante forte.

Depois, surgiu do outro lado do Atlântico o choque Trump. Passado o primeiro trauma, a sua mensagem provocatória teve o condão de funcionar como um inesperado fator agregador, tanto mais que, por uma vez, a América não se entreteve apenas a dividir a Europa – coisa que faz, com sucesso, sempre que quer, como “poder europeu” que é. Ela deixou claro ter como deliberado objetivo enfraquecê-la como um todo, enquanto projeto coletivo, económica e estrategicamente concorrente. Isso começou com o anúncio do fim do TTIP e expressou-se, logo depois, nas reticências sobre a NATO, parcialmente revertidas, não obstante a persistência da relação pessoal obscura de Trump com Putin. O vai-e-vem dos principais líderes europeus a Washington, com diferentes coreografias, às vezes caricatas, deixou desde logo claro aquilo com que, nos próximos anos, a Europa podia contar. O que veio depois apenas confirmou as piores previsões.

Lembrar-se-ão também de que, por esses tempos, os cenários caricaturais para o futuro do projeto europeu estavam na moda: maior ou menor integração, núcleos mais ou menos duros de países. Era um “déjà vu” pouco estimulante, prova indireta de que esse projeto atravessava um estádio de auto-interrogação. Era também a confissão de que talvez tivesse chegado ao fim a ambiguidade em matéria de finalidades do modelo que, por décadas, conseguira criar a ilusão de que todos caminhavam alegremente rumo ao mesmo destino. A Europa da “bicicleta de Delors” (se deixamos de pedalar, caímos para o lado) parecia ter colocado finalmente os pés no chão e ter parado para refletir. Mas, como as mais das vezes acontece no errático debate europeu, o dia seguinte levantou logo uma poeira que toldou o sentido desse esforço de reflexão.

Foi então que surgiu no palco político uma surpresa chamada Macron. Fruto evidente de uma conjuntura particular, o novo líder de Paris acarretava consigo a ambição, muito franco-francesa, de querer aproveitar a futura ausência britânica para colocar o seu país bem no centro da liderança do processo. Deixou claros os fatores de reforço integrador que entendia necessários para suportarem o projeto da moeda única, desafiou alguns tabus soberanistas primários e, com naturalidade, procurou Berlim como parceiro motor para esse novo impulso. O “timing”, porém, era o menos adequado, do lado de lá do Reno. Merkel entrava no declínio do seu poder interno, fruto de vários fatores, de que a sua coragem ética e política perante os refugiados não era o menor. Até no seio do seu próprio partido, como se viu nos últimos dias, o peso da Chanceler segue em perda de velocidade. A capacidade alemã para dar alimento, mesmo financeiro, ao motor europeu, sendo essencial, já não pode ser dada por adquirida.

Ora a Europa, depois de ter atravessado, “tant bien que mal”, várias crises cumulativas ou sucessivas, necessitaria precisamente de uma terapia intensa de reforço da vontade comum, quer no plano institucional de preservação do euro – como Centeno recordou na sua recente carta ao Conselho europeu -, quer na adoção de um conjunto de políticas que pudessem traduzir a assunção da vontade comum, que nos habituamos a ver como devendo emanar daquilo a que chamamos uma potência. 

E o que vimos neste Conselho europeu? Um postergar de decisões, avanços semânticos para não perder a face, a clara sujeição a agendas populistas e demagógicas, já sem um pudor político mínimo. Aquela que era para ser uma “cimeira do euro” acabou por se transformar numa manta de retalhos, em matéria de decisões, refém do discurso dos medos, uma cimeira securitária que consagrou surpreendentes recuos. Para utilizar uma imagem destes dias, a Europa acaba de beneficiar o infrator. 

Posso estar enganado, mas sinto que o termo de mandato da presente Comissão europeia, cujo fôlego dá mostras de exaustão, e a circunstância de irmos entrar num período de eleições para o Parlamento Europeu, com dossiês muito complexos, como o saldo do Brexit e as consequências das conflitualidades com os EUA, vai inaugurar um tempo novo e decisivo para o projeto da União. Vamos assistir ao acesso ao futuro parlamento de Estrasburgo de muitos representantes da Europa dos medos e da insegurança, do soberanismo nacionalista, dos prosélitos das políticas securitárias, declamadores de uma narrativa populista, com alguns Estados a garantirem-lhes um suporte institucional no Conselho de Ministros. Mais ainda: a quererem assegurar uma fatia importante de poder na futura Comissão, onde eles sabem que se caldeiam as propostas de mudança de política que são essenciais para o seu objetivo: mudar a Europa e fechá-la ao mundo.

Esta pode – e a meu ver deveria – ser a hora de verdade para os grandes grupos políticos à escala europeia, da democracia-cristã à social democracia, passando agora também pelos liberais, entre os quais, no passado, se processou a grande aliança implícita que permitiu a construção da Europa. Esses grupos, hoje padecendo de uma heterogeneidade que os começa a descaraterizar, necessitariam de reconstruir entre si um novo pacto de valores e princípios, por cima das suas diferenças programáticas. Mesmo que isso tivesse de conduzir à expulsão, do seio dessas famílias políticas, de partidos “irmãos” que hoje envergonham a sua imagem. É que nada há de mais degradante do que esta paz podre instalada nos sorrisos coletivos nas fotografias de família dos Conselhos europeus. Só dignificava alguns dirigentes terem a coragem de afirmar, alto e bom som, que alguns desses parceiros já não integram o barco comum europeu. Separar as águas seria um ato saudável de coragem e dignidade. A próxima campanha eleitoral para o Parlamento europeu seria o momento certo para se definir quem fica a bordo e quem deve escolher outras companhias. 

sexta-feira, julho 06, 2018

Negócios da China


Há poucas realidades geopolíticas, com dimensão global, sobre as quais os discursos mantenham uma maior precaução relativizadora do que aquela que existe em torno da China. Prevalece o entendimento de que a realidade chinesa tem, dentro de si, especificidades que limitam a utilidade de se lhe serem aplicados os quadros interpretativos tradicionais. Daí que a abordagem da realidade chinesa seja, quase sempre, temperada por inúmeros pontos de interrogação. No passado, olhava-se para o que sobre o Império do Meio escreviam alguns “sinólogos”, às vezes numa espécie de curiosidade quase antropológica. Hoje, há especialistas que se dedicam a tentar descodificar a nova China, que todos, a começar por eles, em especial se forem bons, reconhecem muito mais complexa do que o que temos efetiva capacidade de apurar. Por isso, talvez só a lógica dos interesses nos possa ajudar.

Durante algumas décadas, a política externa chinesa foi sobredeterminada pela existência no país de um regime comunista, o qual procurou, por algum tempo, emular e contrariar o proselitismo ideológico soviético pelo mundo. O fim da liderança de Mao, depois da drástica Revolução Cultural, viria a trazer um banho de pragmatismo à política de Pequim, onde hoje floresce um capitalismo de Estado que, com histórico ineditismo, projeta uma indiscutível eficácia nos seus resultados económicos. Em termos de política externa, e como herança das guerras, regionais e não só, ficaram a tensão histórica com o Japão, um “modus vivendi” com Moscovo pós-URSS, uma acomodação, depois dos incidentes sérios, com a Índia e com o Vietnam. Permanecem, claro, o tema sensível do Tibete, e, muito em particular, a questão de Taiwan, com os americanos a reservarem-se na área algum “droit de regard” neste e noutros dossiês do Mar da China, com o alibi de procurarem acomodar os receios de segurança dos seus aliados.

Para sermos rigorosos, há que convir que a China, para uma potência da sua dimensão e interesses, surge em geral contida e sóbria na sua afirmação externa, onde é bem patente, por exemplo, a sua intervenção, quase discreta, nas temáticas do Médio Oriente. Noutras zonas de confluência de poderes das potências com vocação universal, a China parece interessada em não deixar criar desequilíbrios que possam afetar o seu peso relativo face a outros atores. A sua intervenção na questão da Coreia parece ilustrar isso de forma exemplar.

Passados assim que foram os tempos de proselitismo ideológico, a China prioriza hoje na ordem externa a proteção das ambições comerciais e empresariais que hoje dão corpo ao seu poder como grande potência económica. À importante presença em diversos mercados africanos, e às alianças que gizou com países como o Brasil, Pequim tem vindo a somar, nos últimos anos, uma estudada afirmação na área económica europeia – de que o interesse nosso país é apenas um exemplo que nos é mais próximo. 

Essa expressão de poder por parte da China não colhe, contudo, um juízo generalizado de bondade por parte de alguns dos seus competidores. Os Estados Unidos foram os primeiros a dar sinais de que uma expressão forte da China à escala global, num registo de sucesso, poderia vir a ser detrimental para os seus interesses – quer financeiros, quer estratégicos. Trump foi mesmo mais longe e lançou uma ofensiva comercial sem precedentes contra Pequim. Mas também na Europa, tituladas por alguns dos países mais fortes da União Europeia, parece estarem a desenhar-se reticências à expansão dos investimentos chineses, em especial quando associada a áreas tidas por estratégicas.

Ora a China, que lançou oportunamente um banco com pretensões globais e que tem no projeto da Nova Rota da Seda um dos seus desideratos mais importantes, só pode pretender manter um crescimento sustentado dessas suas ambições se vier a abandonar a atual tibieza diplomática e desenhar um novo tipo de intervenção, seguramente muito estribada em modelos generosos de financiamento, que possam convencer os seus potenciais parceiros futuros. Isto para já não falar da necessidade de parcerias que Pequim terá de continuar a gizar, para manter a liberdade dos mares, como forma de continuar a obter fornecimento de combustíveis fósseis e a preservar as rotas de expansão comercial que hoje fazem a sua prosperidade. Tal justifica também o reforço do seu poderio naval e, repito, uma muito maior afirmação diplomática.

Obrador


Ao refletir sobre a vitória de López Obrador nas eleições presidenciais mexicanas, veio-me à memória um livro do jornalista francês Marcel Niedergang, publicado nos anos 60, intitulado “As vinte Américas Latinas”. À época, ele ajudou bastante a minha geração a entender, simultaneamente, a heterogeneidade e as similitudes entre os países do centro e sul do continente americano.

Nenhum deles tem a extraordinária complexidade do Brasil, de onde estou a enviar esta crónica. Mas recordo ter ficado para sempre com a sensação de que, no mundo latino-americano, raros são os Estados que apresentam desafios da dimensão daqueles que o México há muito suporta, a que a sua geografia também não é alheia.

Fortemente dualista no plano social, o México tem uma história riquíssima, mas convulsa. Usufrui de uma democracia que acabou corporizada num modelo político-partidário que, tendo ajudado a construir um país, não conseguiu ultrapassar contrastes sociais que acabaram por se cristalizar. Nos dias de hoje, gerou uma sociedade onde, lado a lado com bolsas de excelência, persistem fenómenos de violência extrema, regiões raptadas à autoridade do Estado, áreas onde impera a criminalidade organizada, frequentemente ligada ao narcotráfico. A corrupção, a instrumentalização de setores da vida pública por grupos de interesses ilegítimos, acumulou tensões que acabaram por fazer romper a malha política em que, por décadas, o país parecia ter-se habituado a viver.

López Obrador é um velho “routier” da política mexicana. Como Lula, no Brasil, conseguiu ascender ao poder, após várias tentativas frustradas. Também ele, tal como o antigo presidente brasileiro, carrega consigo um formidável capital de esperança, a vontade de regenerar um país cansado dos vícios da política tradicional. Homem sem mácula de suspeição de compromissos patrimonialistas, prometeu a felicidade a um país sedento de desenvolvimento que atenue a endémica pobreza, que ataque as profundas desigualdades e, em especial, que consiga pôr cobro à insegurança – pública, económica e social - que hoje instabiliza a existência de milhões dos seus compatriotas. O seu estilo pessoal, espartano mas tido por populista, assusta alguns, pelo que será o seu realismo que vai estar sob atento teste.

Um dia, Porfírio Díaz, um longínquo antecessor de Obrador no cargo presidencial, caraterizou assim a tragédia do seu país: “Pobre México! Tan lejos de Diós y tan cerca de los Estados Unidos”. E nem ele suspeitava que iria surgir um Trump...

terça-feira, julho 03, 2018

Madonna

As redes sociais são isto: os indignados com o espaço de estacionamento facilitado à Madonna e os que atacam quem se queixa por entenderem que isso é só vontade de dizer mal da Câmara. São os “isto é tudo um bando de gatunos e serventuários dos poderosos” e os “o que eles querem é atacar o Medina e, através dele, o governo do Costa”.

Russos

A porta-voz do governo russo pronunciou-se sobre as relações do seu país com Portugal: estão no mais baixo nível de sempre. A menos que Port...