Marcelo Rebelo de Sousa teve ontem um gesto de grande coragem política. E pessoal. Ao deslocar-se ao monumento que, em São Tomé, honra os mortos do massacre de Batepá.
Tratou-se de um ato criminoso, cometido em 1953 pela administração colonial portuguesa, sob a responsabilidade dessa figura sinistra que se chamou Carlos Gorgulho - mas com a cumplicidade de muitos outros que a nossa História deve anotar com vergonha. Um milhar de pessoas perdeu a vida nessa terrível repressão feita para mobilizar trabalho forçado. Houve mortos por asfixia em celas onde foram encerrados a esmo. Um nome português ficou honrado na denúncia desse ato: o advogado Manuel João da Palma Carlos.
O massacre de Batepá equipara-se bem, na sua alarve violência, ao de Pidgiguiti, na Guiné, ao da Baixa do Cassange, em Angola, aos de Mueda e Wiriamu, em Moçambique.
A Marcelo Rebelo de Sousa, que na sua juventude não é conhecido por ter tido uma postura anti-colonial, cujo pai foi ministro do Ultramar e governador de uma colónia, há que reconhecer um imenso sentido de Estado ao saber ter este gesto.
O que escrevi até agora é o preâmbulo para um episódio que quero revelar, pela primeira vez.
Na visita que o presidente Ramalho Eanes fez a S. Tomé, em março de 1984, que me competiu preparar, a parte santomense tinha organizado um programa que incluia uma deslocação a uma fortaleza onde se acumulavam, sem o menor cuidado, estátuas do tempo colonial, retratos de figuras portuguesas de Estado e uma exposição fotográfica sobre o massacre de Batepá, com uma determinada legendagem. Nos dias anteriores ao da chegada do nosso presidente, fiz uma volta por todos os pontos desse programa e, ao chegar à fortaleza, concluí que nem todas as coisas se apresentavam aí com uma dignidade compatível com aquela que seria a primeira deslocação de um chefe de Estado do Portugal democrático a São Tomé. No pós-25 de abril, Portugal não rejeita a sua responsabilidade pelos crimes do período colonial, mas não se pode associar oficialmente à sua evocação em moldes que afetem o respeito que lhe é devido como Estado democrático, que fez já o devido "exorcismo" desse tempo. A reação oficial santomense às minhas reservas, ratificadas pelo então embaixador português em São Tomé, Francisco Quevedo Crespo, não foi a melhor, pelo deixámos a decisão final para a delegação presidencial. A qual viria a confirmar a minha perceção. E, se bem me recordo, Eanes não foi aos locais que eu tinha entendido por mais problemáticos.
Nunca tinha contado esta história. Faço-o hoje, ao expressar a minha grande satisfação pelo facto de um chefe de Estado português ter podido honrar a memória dos mortos de Batepá, mas de uma forma condigna. Agradecendo a Marcelo Rebelo de Sousa tê-lo feito, em nome de Portugal.