sexta-feira, janeiro 10, 2014

Ainda Eusébio

O debate sobre se os restos mortais de Eusébio devem ou não ir para o Panteão Nacional parece-me enfermar de alguma imprecisão. Vejo muito poucas pessoas preocupadas em olhar para o que diz a lei:
 
"As honras do Panteão destinam-se a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica ou artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade".
 
Uma coisa é clara: o debate sobre se Eusébio merece ou não ser escolhido para poder vir a estar em Santa Engrácia só deve ter lugar depois de se confirmar que ele configura um dos casos tipificados na lei.
 
Alguém quer apostar comigo em como, dentro de um ano, período antes do qual a decisão não pode ser tomada, vai surgir uma polémica sobre a vírgula que figura no texto entre "ao país" e "no exercício"? Alguns dirão, atendo-se ao texto antes da virgula, que ele permite distinguir quaisquer "serviços prestados ao país". Outros dirão que esses "serviços" são apenas os que, após a vírgula, são elencados. E vai ser a Assembleia da República, com a mesma "competência" jurídica que pode ter criado esta ambiguidade, que se vai pronunciar, fazendo a leitura "autêntica" do diploma que ela própria gerou. 

Boas notícias e uma incógnita

Nem tudo são más notícias, do lado da Europa.
 
As últimas previsões, no tocante ao futuro presidente da Comissão europeia, dão conta de que o nome do antigo primeiro-ministro luxemburguês, Jean-Claude Juncker, pode vir a ser o eleito do setor conservador. Do lado dos socialistas, o atual presidente do Parlamento europeu, Martin Shultz, está já definido como candidato.
 
Em ambos os casos, estamos perante figuras que têm uma leitura do projeto e do processo europeu que basicamente se coaduna com os interesses de um país como Portugal. Sabemos que isso não é uma condição suficiente para que as coisas venham a correr bem para as "nossas cores", mas já seria uma boa ajuda.
 
Uma incógnita permanece: o nome do presidente do Conselho europeu, que substituirá Van Rompuy. Esta nova figura institucional, em má hora "inventada" pelo Tratado de Lisboa, é uma espécie de administrador dos poderes que o Conselho recuperou da Comissão. É um lugar decisivo, devendo nós estar atentos ao que o nome a escolher puder significar. Uma coisa teremos de ter por certo: será um nome da total confiança da chanceler alemã.

Estatística

O governo informou que 95% dos pensionistas estarão isentos do pagamento do "complemento extraordinário de solidariedade", que abrangerá as pensões superiores a 1000 euros.

Fica-se assim a saber que, em Portugal, 95% dos pensionistas vivem com menos de 34 euros por dia.

quinta-feira, janeiro 09, 2014

Futurologias

Talvez porque as pessoas já andem muito "escaldadas", tenho a sensação de que são cada vez menos populares as "previsões" feitas no início de cada ano. Lembro-me que, não há muito tempo, éramos inundados por diversos "videntes" domésticos, que nos anunciavam coisas várias para os 12 meses seguintes. Isso parece ter-se atenuado. Confesso que não sou muito atento a estas temáticas, mas esse "pelouro" parece-me que surge quase cativo da esticada Maya, uma espécie de bruxa social de serviço, com ar cada vez mais "asiático", que me surge em "zappings" e capas de revista.

Mas o mercado não está fechado: ontem, nos Restauradores, um africano estendeu-me um papel publicitário de um tal "professor qualquer coisa", que, entre outros "poderes", se declarava vidente e capaz de prever o futuro. Só o meu crescente ceticismo, adubado por meses de previsões para o país que nunca (mas nunca!) acertaram, é que me levou a dar ao papel o destino que espero para todos os videntes deste jaez.
 
Há, contudo, outro modelo de antevisão que se pretende mais sério e credível. Estou, em especial, a lembrar-me da publicação de "The Economist", no início de cada ano, intitulada "O Mundo em ...". Há uns tempos, em férias, encontrei duas dessas publicações, referentes a anos idos, e, por uns minutos, entretive-me a fazer uma comparação entre o que nos havia sido antecipado como possível futuro e a realidade dos factos que vieram a acontecer. Nem imaginam a diferença! Mesmo uma das revistas mais bem informadas do mundo - e talvez a melhor publicação que conheço, independentemente da sua orientação político-ideológica - revela-se incapaz de prever o curso das coisas.
 
Isto não significa que a edição do "The Economist" tenha interesse. O modo inteligente como as principais questões são selecionadas e colocadas é já meio caminho andado para nos ajudar a pensar melhor o que aí virá. Porém, daí a acertar em matéria de previsões vai uma grande distância. A realidade é sempre muito mais imaginativa que os homens.

quarta-feira, janeiro 08, 2014

A identidade cultural europeia

Recomendo vivamente a leitura do livro "A identidade cultural europeia", de Vasco Graça Moura. Trata-se de um ensaio muito lúcido e informado sobre o processo europeu. É um texto realista, desencantado sem ser nostálgico, que coloca o sonho europeu no lugar que lhe deve competir, à luz da estratégia considerada adequada para um país como Portugal.
 
Vasco Graça Moura é uma personalidade maior da cultura portuguesa. Poeta, ensaísta e tradutor, é um intelectual com forte presença no espaço público. Não se esquiva a polémicas, não procura ser consensual, defende com desassombro ideias e pessoas, quando as entende dignas desse seu empenhamento. Nesta sua radiografia do projeto europeu, que não pretende subordinar-se ao "politicamente correto" do europeísmo oficioso, assume uma heterodoxia que nos ajuda a pensar fora dos quadros vulgares, chamando as coisas pelos nomes que entende próprios. Podemos não concordar com tudo o que escreve - a mim, isso aconteceu-me várias vezes, ao longo do texto - mas nunca nos deixa indiferentes. Essa é a qualidade que se exige a um intelectual.  

O flagrante


Os protagonistas são de língua espanhola. A historieta é muito antiga e é um clássico das atribulações afetivas da vida diplomática. Foi-me recordada ontem, durante um almoço com colegas.

Numa determinada capital, o embaixador mantinha uma relação sentimental com a mulher de um jovem colaborador. Um dia, por um desencontro de agendas, o diplomata entra na sua residência e encontra o chefe em "vias de facto" com a sua esposa.

Ao embaixador, assumindo a fragilidade em que a situação o colocava, preparado, quem sabe?, para um ajuste de contas, só lhe ocorre dizer:

- Estou à sua disposição!

O jovem diplomata, com um sentido de avaliação da conjuntura e uma capacidade de reação que prenunciava já uma bela carreira, ter-lhe-á respondido:

- Quero um novo posto, com promoção.

terça-feira, janeiro 07, 2014

Estádio Eusébio

Gostava muito que a final da Taça de Portugal, a partir desta época, passasse a ser disputada no Estádio Eusébio.

O mistério

Governantes empolgados louvam a importância das exportações para a nossa economia. Em encontro com a diáspora de sucesso, o chefe do Estado sublinha a necessidade da promoção externa do país, com vista a cativar o investimento estrangeiro. Os empresários turísticos afadigam-se a explicar que Portugal deve promover a sua oferta em cada vez mais mercados. Todos entendem decisivo garantir a valorização do actual esforço financeiro português junto dos nossos parceiros e instituições.

As relações com antigas colónias degradam-se, sendo necessário sustentar persistentes esforços de diálogo, em várias dimensões, para as reconduzir à normalidade. Empresas portuguesas expandem a sua actividade em novos mercados, nos quais importa acompanhar com atenção a sua presença e a dos seus trabalhadores. A emigração portuguesa aumenta exponencialmente para vários países, em números que se equiparam aos dos anos 60 do século passado, requerendo esses novos migrantes e suas famílias apoio e aconselhamento consular.

Escritores, artistas e figuras da intelectualidade portuguesa são hoje admirados pelo mundo, sendo vital aproveitá-las como “soft power” de prestígio para recuperação da imagem do país. A CPLP, sendo a única instância multilateral onde Portugal tem uma posição nuclear, deve funcionar como alavanca para a promoção da língua portuguesa, que tem no ensino no exterior um dos veículos essenciais. Uma política para o mar, onde Portugal dispõe de vantagens comparativas à escala de uma potência, obriga a um esforço multilateral de grande envergadura.

Elenquei alguns dos muitos desafios que competem hoje à nossa diplomacia. A acção externa revela-se um dos terrenos essenciais onde Portugal pode encontrar soluções para a superação das suas debilidades, para ajudar à recuperação da sua soberania e imagem.

O “Seminário Diplomático” que ontem e hoje decorre, reunindo governo e diplomatas, vai, com toda a certeza, trazer respostas concludentes para o facto de um Ministério que já tinha uma das mais baixas dotações do Orçamento Geral do Estado (inferior a 1%), nele ter sofrido um dos maiores cortes de todos os departamentos oficiais (11,2%). Vai também, estou certo, explicar porque tem vindo a diminuir drasticamente o número de diplomatas, técnicos e funcionários administrativos do MNE, em Portugal e na nossa rede externa. Deve, seguramente, dar conta clara da racionalidade subjacente à redução e descapitalização funcional de postos consulares em tempo de maiores migrações, à diminuição dos professores junto dessas comunidades emigradas, à imensa quebra das verbas atribuídas ao Camões para a ação cultural. E permitirá, não tenho a menor dúvida, fazer entender o modo como a redução das quotizações e contribuições devidas às organizações internacionais se torna consequente com uma política externa capaz de estar à altura da defesa dos interesses do país. Estou certo que o “Seminário Diplomático” vai esclarecer tudo isso. Até lá, continuará o mistério dos Negócios Estrangeiros.

* Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, janeiro 06, 2014

Confissão tardia

Os brasileiros dizem "caiu a ficha" para designar o instante em que uma certa informação nos desencadeia um reflexo de memória. Foi o que me aconteceu, há dias, quando, ao selecionar os livros que ia doar à Biblioteca Municipal de Vila Real, deparei com "A Sociedade da Abundância", de John Kenneth Galbraith, uma edição de 1963, da "Sá da Costa".
 
O livro original é de 1958 (!) e, à época, foi considerada um obra fundamental daquele famoso economista (e também embaixador americano na Índia, período de que resultou uma memória muito interessante, o "Ambassador's Journal"). A tradução (verifico agora) é de Henrique de Barros, uma grande figura que viria a ser ministro e presidente da Assembleia da República.
 
Aí por 1967 ou 1968, eu costumava passar por aquela Biblioteca, em algumas tardes de férias. Era o tempo em que ela funcionava no rés-do-chão do município, com entrada junto ao liceu. Requisitava um livro ao sr. Agostinho e, lido que fosse, devolvia-o e pedia outro. "A Sociedade da Abundância" terá sido a única exceção a esta regra, talvez por ter sido o último livro que por lá pedi. Fui ficando com ele, julgo que a certa altura já tinha acanhamento de o devolver. Tenho mesmo a ideia de que, às vezes, me furtei ao olhar do sr. Agostinho, pelas ruas da cidade, quando com ele me cruzava.
 
Resolvi há dias esta questão, enviando definitivamente o livro, com muitos outros, para a Biblioteca, no âmbito da doação de que aqui falei. Mas será que ele deve integrar o meu espólio? O Vitor Nogueira que decida...   

História retocada

A fuga da sinistra prisão de Peniche, protagonizada em 1960 por Álvaro Cunhal e nove outros dirigentes do PCP, foi há dias recordada por esse partido.
 
Há poucas semanas, o PCP publicou também uma interessante fotobiografia de Álvaro Cunhal, comemorativa do centenário do seu nascimento.

Não posso deixar de sentir pena que, no primeiro dos casos, durante décadas, o PCP tenha escamoteado, em todos os seus textos, que Francisco Martins Rodrigues fazia parte do grupo que integrou a audaciosa fuga. Porquê? Porque, meses após esse importante momento, Martins Rodrigues viria a abandonar o PCP e protagonizou uma dissidência de esquerda.

E lamento muito que agora, numa clara manifestação de sectarismo, os autores da oficiosa fotobiografia tenham manipulado a imagem em que Cunhal aparece sobre um tanque, na sua chegada ao aeroporto de Lisboa, em 29 de abril de 1974, dela retirando a imagem de Mário Soares, que estava igualmente ao lado do líder do PCP, e que, com esse gesto, dera um magnífico exemplo de solidariedade democrática. Nem Mário Soares merece este ato censório, nem a memória de Álvaro Cunhal fica com ele melhor servida.

O PCP foi um partido que, como nenhum outro, lutou pelo fim do regime que os militares derrubaram em 1974. Muitos homens e mulheres comunistas sacrificaram anos das suas vidas ao seu ideal, sofreram prisões, torturas e perseguições. Por isso, os comunistas não têm necessidade de esconder a realidade para retocar a sua história.  

domingo, janeiro 05, 2014

O senhor Eusébio


Todos devemos reconhecimento a quem nos fez sentir felizes. Eusébio foi responsável por alguns momentos de alegria que tive. Agora, hora da sua morte, agradeço-lhe por isso.

Eusébio costumava contar que, quando chegou a Portugal, feito pé-de-obra colonial, tinha tanto respeito pelos seus colegas já consagrados que tratava o "capitão" Mário Coluna por "senhor Coluna". Pela consideração que a sua figura me merece, apetece-me hoje tratá-lo por senhor Eusébio.

ps - esta excelente foto de Nuno Ferrari, no momento em que Portugal começou a reduzir os três golos que a Coreia do Norte nos tinha imposto, durante o Mundial de 1966, passou a representar, para mim, a imagem da determinação e da garra que é necessário ter quando as coisas correm mal e é urgente "dar a volta" à vida. 

O meu amigo Eros

Salvo para alguns leitores brasileiros, o nome de Eros Grau pouco dirá. Um dia, na embaixada francesa em Brasília, fiquei sentado num jantar perto dessa figura imensa, de barba inesquecível, que eu já tinha visto na televisão. Mas nunca tinha encontrado pessoalmente o juíz do Supremo Tribunal Federal, um dos onze que compõem a instituição. Recordo-me de ter-lhe dito que, na madrugada anterior, estivera deliciado a ouvi-lo, num animado debate jurídico em que ele interviera. Citei mesmo uma frase curiosa, que ele pronunciara nessa circunstância. Eros Grau olhou para mim, surpreendido com a inesperada atenção que eu dava à vida do judiciário brasileiro: "Nem minha sogra viu! Você, embaixador, perde tempo com isso?". E deu uma imensa gargalhada. Foi o início de uma primeira longa conversa.

Eros Grau é um distinto jurista e intelectual brasileiro, professor universitário, autor de dezenas de obras, especialmente na área do Direito económico. Tem em Tiradentes uma fantástica biblioteca de mais de 30 mil volumes. Gosta da vida e gosta dela com a Tânia, com a família, com os amigos, alguns criados ao tempo da luta contra a ditadura brasileira, período em que esteve preso. Entusiasma-se por causas, é um furioso defensor da ética na política, o que lhe tem valido, nos últimos anos, remoques de antigos amigos. É uma das pessoas mais divertidas que conheço, culto "à bessa" (como dizem os brasileiros), com limite curto de paciência para os "chatos de galocha" que o mundo às vezes nos coloca à frente.

Desde essa noite de Brasília, passou entre nós uma corrente de simpatia, que viria a ser cimentada por visões comuns da vida. Com os anos, Eros passou de um conhecido a ser um grande amigo meu. Hoje é um amigo íntimo, como tenho muito poucos, daqueles quecse contam pelos dedos de uma mão. Longas noites passámos na charla, acompanhada de álcoois, histórias e gargalhadas, primeiro no Brasil, depois muito em Paris, onde Eros Grau, hoje aposentado do judiciário, mas bem ativo, tem uma residência e também trabalha. Viajámos juntos pela Europa. Comungamos paixões por muitas coisas, somos cúmplices de outras, trocamos alguns segredos.

Eros escreveu um livro de que já aqui falei um dia e que faz furor junto dos muitos brasileiros que amam Paris: "Paris - Quartier Saint-Germain-des-Prés". Uma noite de domingo, na brasserie Lipp, uma brasileira aproximou-se da nossa mesa, volume em punho, para lhe pedir um autógrafo. Enquanto o Eros laborava na dedicatória, a senhora voltou-se para mim e perguntou: "Você deve ser o Francisco, não?". É que o Eros começa um dos seus capítulos do livro dizendo que, aos domingos, ele e a Tânia juntavam invariavelmente conosco na Lipp...

Hoje à noite, domingo, nessa mesma Lipp, o Jean-Louis "arrumará" uma mesa para a Tânia e para o Eros, naturalmente do lado direito da sala. Aposto que o Eros começará por pedir o arenque Bismark (que não sai da lista desde dos anos 20), seguir-se-á a "leve" choucroute, para tudo acabar num "mille feuilles au kirsch", a partilhar com a Tânia. Ah! tudo regado com um Chablis. Atravessado o boulevard, o café será servido no "Flore" (na mesa à esquerda da porta que, para si, leitor, terá um inultrapassável "reservée" metálico), com o Francis a ordenar a saída do "médicament", nome com que o Eros crismou para sempre uma "poire william" que o meu fígado já não ousa há décadas.

Porque falo nisto hoje? Porque acabo de me dar conta que, no dia 20, segunda-feira, chegamos nós a Paris, vamos jantar à Lipp e nela não estarão a Tânia e o Eros, já então de abalada para o Brasil. Caro Eros, contrariamente ao que dizia o teu querido sósia de Trier, nem sempre a História se repete. Ou melhor, sem ti, como ele também afirmava, é tudo uma farsa.

Em tempo: o Eros e a Tânia acabaram pir alterar a sua partida para o Brasil para jantar conosco, um dia na Lipp (o Eros diz "o Lipp", eu digo "a Lipp", por respeito ao género da "brasserie") e outra na Closerie de Lilas. Noites bem divertidas, que invariavelmente acabaram no Flore, com o Francis a mostrar-nos retratos da sua neta "moitié portugaise".

sábado, janeiro 04, 2014

A realidade nos matraquilhos

("Um verdadeiro sportinguista não deveria contar esse episódio no blogue", disse-me o meu leonino interlocutor, com ar pré-censório, quando ontem lhe relatei que ia escrever o que se segue. É isso: eu não devo ser um "verdadeiro" sportinguista, sou, muito simplesmente, um sportinguista sincero, que não teme os factos. Por isso, aqui vai a historieta.)

Foi num dia da primeira metade dos anos 80, perto de S. Bento da Porta Aberta. Aquele meu amigo, então com casa no Gerês, onde passávamos belos dias de férias, era - e é - um leixonense dos quatro costados. Nessa qualidade, detesta tudo o que lhe "cheire" a Futebol Clube do Porto. Assisti a episódios homéricos, decorrentes desta inultrapassável fobia.

Por esses dias, o seu objetivo era adquirir uma mesa de matraquilhos, se possível em segunda mão, para apoio lúdico à moradia no Gerês. Nessa tarde de verão, tínhamos parado para beber uma cerveja, num café de estrada. À entrada, notámos um letreiro: "Vende-se mesa de matraquilhos". Vinha mesmo a calhar!

Enquanto eu me deliciava com um "fino" atremoçado, o meu amigo partiu para a cave, com o dono do café, para ver a mesa à venda. Não eram decorridos mais do que uns breves instantes quando ouvi uma troca de argumentos e vi o meu amigo emergir da escada, arfando e exclamando: "Era o que faltava! O gajo é 'andrade'!". E, passando por mim, a caminho do carro, anunciou: "Já não bebo nada! Aqui nunca mais venho". E saiu, disparado. Fiquei curioso: seria apenas pelo facto de ter constatado que homem era portista que o meu amigo se recusara a fazer o negócio? Mesmo para um leixonense radical, era demais!

Quando, acabado o "fino", regressei ao automóvel, decifrei o mistério. Não, não fora a circunstância do proprietário do café ser adepto do FCP que provocara a cena. A reação devera-se ao facto de uma das "equipas" dos matraquilhos ter o azul do equipamento portista. Para o meu amigo, a saída do verde-vermelho tradicional era lamentável. E então ter "o Porto" em casa, isso seria impensável!

Para mim, esse acabaria por ser um momento significativo. Nunca vira, em Portugal, uma mesa de matraquilhos cujos bonecos não tivessem as cores do Sporting e do Benfica. Mas o mundo tinha mudado. O Porto entrava, por legítimo direito, nesse "campeonato" do imaginário. Não era uma constatação que deixasse feliz um sportinguista. Mas era o que era.

sexta-feira, janeiro 03, 2014

Interesses estratégicos

Notícia que acabo de ler no "Diário Económico":

"Passados mais de dois anos de ter sido incumbido de criar um regime extraordinário para acautelar privatizações que coloquem em causa a segurança e os interesses estratégicos nacionais, o governo apresentou finalmente a proposta de lei no parlamento. O documento, a que o DE teve acesso, deu entrada na Assembleia da República a 9 de dezembro e especifica que o governo passa a poder vetar negócios que "afetem a disponibilidade das principais infraestruturas ou ativos estatégicos afetos â defesa e segurança nacional ou à prestação de serviços essenciais nas áreas da energia, transportes e comunicações".

É muito curioso que esta iniciativa legislativa surja depois das principais privatizações nestes setores estarem já concluídas. 

Criação de emprego

Alguns comentadores com mau feitio não se cansaram de criticar os números sobre os novos empregos gerados graças às políticas deste governo, que há dias foram jubilosamente anunciados pelo primeiro ministro. 

Cá por mim, até acho que os números apresentados foram modestos! 

É da mais elementar justiça colocar a crédito das políticas públicas deste executivo as centenas de milhares de empregos de que os portugueses têm vindo a beneficiar - em Angola, Moçambique, Reino Unido, França, Brasil, etc.

Já é vontade de dizer mal...

"Ilustração Portuguesa"

São 37 volumes. Encadernados em belo couro. É a "jóia da coroa" da minha biblioteca. É a coleção completa da "Ilustração Portuguesa", esse retrato ímpar da vida portuguesa, de 1903 a 1924. São 947 números recheados de fotografias. Está lá tudo - a decadência (escondida) dos últimos Braganças, o regicídio, os números empolgantes sobre o 5 de outubro, toda a saga da Primeira República, com a Grande Guerra pelo meio. Os últimos números denotam já um certo cansaço. Era o regime a esvair-se, a caminho da ditadura.

A "Ilustração" figurava em destaque em casa da minha avó, em Viana do Castelo. Fora colecionada, durante mais de 20 anos, por uma figura que só conhecíamos pelo retrato fardado na parede e pelas medalhas pendentes num caixilho envidraçado: o Tio Túlio. O meu pai falava sempre desse cunhado, desaparecido ainda antes de eu nascer, como uma figura de pendor intelectual, dado a conhecimentos bizarros, do esperanto ao espiritismo, das técnicas policiais a estudos sobre tipos tipográficos. Já um dia por aqui falei desses armários recheados de belas encadernações, situados no apelativo escritório, uma sala onde, a partir de meados dos anos 50, durante os meses de verão, era armada a minha cama. Cresci com esse cenário das três paredes de livros que me rodeavam nas férias. Só muitos anos mais tarde essas vitrines me foram acessíveis, embora com decrescentes limitações. Foi a partir de então que pude começar a folhear a "Ilustração", mas também a coleção do ABC, uma revista iniciada nos anos 20 e que iria desaparecer nos primeiros tempos do Estado Novo, com um toque gráfico modernista, mas já sem a qualidade de conteúdo da "Ilustração Portuguesa".

Por um daqueles percursos das coisas que ocorrem na vida das famílias, aquela coleção da "Ilustração" surgiu um dia à venda, em meados dos anos 60, num alfarrabista do Porto. O meu pai soube do facto e pediu a um amigo, que se deslocava regularmente àquela cidade, para se informar sobre o preço que era pedido. O custo pedido ainda era significativo e os tempos não eram fáceis. Para minha surpresa, o meu pai, que não era muito dado a consultar-me para coisas da vida, perguntou-me se eu estaria interessado em ter a "Ilustração" para mim. Disse logo que sim, a "Ilustração" era um sonho que nem sequer ousara ter. O amigo viajante encarregou-se da compra e, um dia, lá chegou um pesado volume. A "Ilustração Portuguesa" passou, desde então, a ser "minha".

quinta-feira, janeiro 02, 2014

Viena

Durante anos, dava-me algum trabalho conseguir assistir em direto, na televisão, ao concerto de Ano novo que, em cada dia 1 de janeiro, a orquestra filarmónica de Viena executa no Musikverein, a mítica sala da capital austríaca. Às vezes não estava em casa, noutras tinha por lá gente, outras ainda andava em viagem. Os sistemas de gravação automática dos canais de cabo permitem-nos agora ver o espetáculo quando nos apetece, o que nos deixa sem desculpa para não assistir a um dos grandes momentos do ano musical à escala global. Foi o que fiz ontem à noite.

Quando vivi em Viena, nunca por lá passei os períodos de fim-de-ano, pelo que também nunca me vi obrigado a lutar para obter entradas para este concerto. Fui ao Musikverein diversas vezes, a mais curiosa das quais terá sido num dos meses iniciais de 2003, para o "Ball Der Industrie und Technik", um dos grandes bailes anuais da capital austríaca. Apesar de ser um "pé-de-chumbo", lá engalanei a labita de grã-cruzes para o evento, como é de regra. O Musikverein é uma das salas de espetáculo mais fascinantes que conheço, pelo que, confesso, tive pena de nunca ter estado, ao vivo, num seu concerto de Ano novo. Participar no tradicional acompanhamento, pelos espetadores, da marcha Radetzky, de Johann Strass, a tradicional última peça do concerto, foi algo que (ainda?) me ficou por fazer.

Viena foi um posto diplomático que me deixou "mixed feelings". Em 2002, fui para lá viver contra a minha vontade, interrompendo inopinadamente o trabalho que estava a fazer noutras funções. Coube-me então a responsabilidade de dirigir uma imensa representação nacional (só entre diplomatas, militares e técnicos vários, éramos, creio, 18 pessoas, além do pessoal administrativo), num período complexo, durante a presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa). Saído dessa tarefa intensa, passei, de um dia para o outro, e contrariamente ao que estava acordado, a um período que costumo qualificar como a minha "osceosidade". Porque estar sem praticamente nada para fazer se coaduna muito pouco com o meu feitio, optei por me dedicar a palestrar sobre um tema bem especioso, as chamadas CSBM ("Confidence and security building measures"). Em representação e a expensas da OSCE, andei então por sítios tão diversos como Trieste, Astana, Tóquio, Amman, Varsóvia, Tbilisi, Seoul ou Charm-el-Sheik, entre outros. Se Portugal me dava uma indesejada sabática, aproveitei para viajar e trabalhar. E, nas folgas, ouvir música.

Lembrei-me ontem disto e de muito mais ao ver e ouvir o magnífico concerto vienense de Ano novo, sob a direção de Daniel Barenboim.   

quarta-feira, janeiro 01, 2014

O novo ano

Deixei, há muito, de acreditar na ritual ideia de ter o início do ano civil como ponto de partida para um novo tempo na vida pessoal. Se, ao longo do ano anterior, não fomos capazes de mudar atitudes e práticas, dificilmente será a simples entrada de janeiro a dar-nos a força e, em particular, a  persistência que até aí não tínhamos tido - seja o arrumar daquela estante ou arrecadação, sejam os contactos pessoais em atraso, seja recomeçar a escrever um texto há muito adiado ou qualquer outro ato que seguramente nos ajudaria a melhorar e organizar a vida. Mas percebo muito bem que alguns persistam em tentar utilizar essa marca temporal como o momento para o abrir da ilusória cortina que nos separa de um futuro de maior racionalidade.

Pesando bem as circunstâncias, contudo, iniciar uma dieta hoje não seria uma má ideia...

terça-feira, dezembro 31, 2013

Governo

José Leite Martins é o novo secretário de Estado da Administração Pública. Conheço-o bem, em especial ao tempo em que dirigia os serviços jurídicos do MNE. É uma pessoa que me merece simpatia. Recordo o dia em que me deu conta da sua vontade de não continuar no lugar que ocupava, não obstante o governo a que eu então pertencia não ter intenção de vir a substituí-lo. Foi ele quem insistiu em sair, por opção de carreira. Tempos depois, seria testemunha privilegiada de que outros tempos trazem outras formas de fazer política.

António Costa Moura, o novo secretário de Estado no Ministério da Justiça, foi o meu mais direto colaborador em Paris, em 2009, tendo depois ido ocupar a chefia do consulado-geral em São Francisco. Ficámos amigos. Também ele antes tivera oportunidade, bem de perto, de testemunhar o sectarismo político a comandar a administração pública. Noutro ciclo político, claro. Falámos muito sobre isso.

Todas as felicidades que a ambos desejo são, naturalmente, pessoais. Como eles compreenderão.

A Misericórdia dos Mercados

Neste último dia do ano, deixo-os, por ora, com o magnífico poema - "A Misericórdia dos Mercados" -  que fui buscar ao sempre imprescindível Tim Tim no Tibete:

Nós vivemos da misericórdia dos mercados
Nào fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a
própria criação.
Nós é que não fazemos falta.

Botão errado

Foi ontem à tarde, na Fundação José Saramago. A homenagem ao Nuno Júdice era no 4° andar. Distraidamente, carreguei no botão do 3° andar. Ia...