domingo, janeiro 05, 2014

O meu amigo Eros

Salvo para alguns leitores brasileiros, o nome de Eros Grau pouco dirá. Um dia, na embaixada francesa em Brasília, fiquei sentado num jantar perto dessa figura imensa, de barba inesquecível, que eu já tinha visto na televisão. Mas nunca tinha encontrado pessoalmente o juíz do Supremo Tribunal Federal, um dos onze que compõem a instituição. Recordo-me de ter-lhe dito que, na madrugada anterior, estivera deliciado a ouvi-lo, num animado debate jurídico em que ele interviera. Citei mesmo uma frase curiosa, que ele pronunciara nessa circunstância. Eros Grau olhou para mim, surpreendido com a inesperada atenção que eu dava à vida do judiciário brasileiro: "Nem minha sogra viu! Você, embaixador, perde tempo com isso?". E deu uma imensa gargalhada. Foi o início de uma primeira longa conversa.

Eros Grau é um distinto jurista e intelectual brasileiro, professor universitário, autor de dezenas de obras, especialmente na área do Direito económico. Tem em Tiradentes uma fantástica biblioteca de mais de 30 mil volumes. Gosta da vida e gosta dela com a Tânia, com a família, com os amigos, alguns criados ao tempo da luta contra a ditadura brasileira, período em que esteve preso. Entusiasma-se por causas, é um furioso defensor da ética na política, o que lhe tem valido, nos últimos anos, remoques de antigos amigos. É uma das pessoas mais divertidas que conheço, culto "à bessa" (como dizem os brasileiros), com limite curto de paciência para os "chatos de galocha" que o mundo às vezes nos coloca à frente.

Desde essa noite de Brasília, passou entre nós uma corrente de simpatia, que viria a ser cimentada por visões comuns da vida. Com os anos, Eros passou de um conhecido a ser um grande amigo meu. Hoje é um amigo íntimo, como tenho muito poucos, daqueles quecse contam pelos dedos de uma mão. Longas noites passámos na charla, acompanhada de álcoois, histórias e gargalhadas, primeiro no Brasil, depois muito em Paris, onde Eros Grau, hoje aposentado do judiciário, mas bem ativo, tem uma residência e também trabalha. Viajámos juntos pela Europa. Comungamos paixões por muitas coisas, somos cúmplices de outras, trocamos alguns segredos.

Eros escreveu um livro de que já aqui falei um dia e que faz furor junto dos muitos brasileiros que amam Paris: "Paris - Quartier Saint-Germain-des-Prés". Uma noite de domingo, na brasserie Lipp, uma brasileira aproximou-se da nossa mesa, volume em punho, para lhe pedir um autógrafo. Enquanto o Eros laborava na dedicatória, a senhora voltou-se para mim e perguntou: "Você deve ser o Francisco, não?". É que o Eros começa um dos seus capítulos do livro dizendo que, aos domingos, ele e a Tânia juntavam invariavelmente conosco na Lipp...

Hoje à noite, domingo, nessa mesma Lipp, o Jean-Louis "arrumará" uma mesa para a Tânia e para o Eros, naturalmente do lado direito da sala. Aposto que o Eros começará por pedir o arenque Bismark (que não sai da lista desde dos anos 20), seguir-se-á a "leve" choucroute, para tudo acabar num "mille feuilles au kirsch", a partilhar com a Tânia. Ah! tudo regado com um Chablis. Atravessado o boulevard, o café será servido no "Flore" (na mesa à esquerda da porta que, para si, leitor, terá um inultrapassável "reservée" metálico), com o Francis a ordenar a saída do "médicament", nome com que o Eros crismou para sempre uma "poire william" que o meu fígado já não ousa há décadas.

Porque falo nisto hoje? Porque acabo de me dar conta que, no dia 20, segunda-feira, chegamos nós a Paris, vamos jantar à Lipp e nela não estarão a Tânia e o Eros, já então de abalada para o Brasil. Caro Eros, contrariamente ao que dizia o teu querido sósia de Trier, nem sempre a História se repete. Ou melhor, sem ti, como ele também afirmava, é tudo uma farsa.

Em tempo: o Eros e a Tânia acabaram pir alterar a sua partida para o Brasil para jantar conosco, um dia na Lipp (o Eros diz "o Lipp", eu digo "a Lipp", por respeito ao género da "brasserie") e outra na Closerie de Lilas. Noites bem divertidas, que invariavelmente acabaram no Flore, com o Francis a mostrar-nos retratos da sua neta "moitié portugaise".

14 comentários:

Anónimo disse...

Estive no Flore no dia 26 e lá fui informado que Eros Grau havia regressado ao Brasil há poucos dias. A Iréne está bem na sua reforma provincial. O Francis estava de folga mas o Frédéric lá se encontrava, sempre disponível para marcações noutros restaurantes, incluindo o Armani Caffé, onde se come muito bem e onde oficia, com humor e rapidez, o nosso amigo Kamel. No dia 20 estaremos em Paris. Que tal um encontro no Flore pelas 22.30? Um abraço para os dois. Mafalda e JPGarcia

Anónimo disse...

Registo saboroso e quase queirosiano. Ainda sobrarão em Portugal personagens destas?

Fred Ribeiro disse...

Todos os países mereceriam ter um Eros Grau no topo do Poder Judicial.
Não creio no entanto que isso seja possível em países com influência árabe, como ocorre com os mediterrânicos.

Anónimo disse...

Hoje, assim em cima da hora, não me será possivel ir ao Lipp nem ao Flore mas fico já muito feliz em conhecer pelo duas ou três coisas o seu amigo Eros Grau. Já a anticipada informação para o dia 20, ainda por cima uma segunda feira, pode obrigar aqueles estabelecimentos a "afficher complet"...
José Barros

Portugalredecouvertes disse...


Il a une bonne bouille!

Anónimo disse...

Uma boa noticia sem "amuse bouches parisienses" :

"Nomes ligados ao PSD lançam jornal digital. Dinamizado por Alexandre Relvas e Carrapatoso, "Observador" será dirigido por David Dinis. Novo órgão de comunicação social, "100% português", deverá conhecer a luz do dia ainda no primeiro semestre de 2014."

Alexandre

zpf disse...

Caro Embaixador Seixas da Costa,
Muita falta fez no circo mediático que foi o triste julgamento do "mensalão" no STF a figura do ministro Eros Grau que certamente teria conferido uma outra dimensão aquilo que pouco mais foi que uma fogueira de vaidades onde, quem hoje é presidente daquele corte e alguns dos seus pares, mais preocupados com as câmeras da TV Justiça que com qualquer outra coisa, deram da justiça brasileira uma triste e penosa imagem…
Um abraço,
ZPF

Anónimo disse...

Pelo que nos conta, uma vez mais sinto que lhe devo dar os parabéns, Senhor Embaixador, por conseguir ser uma feliz e harmónica conciliação de contrários: socialista por princípios e convicções, capitalista por hábitos e gostos.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Anónimo das 22.04: não sabia que os "hábitos e gostos" tinham côr política. Imagino que, para o comentador, um socialista não deva passar de famélicas tascas...

Anónimo disse...

Famélicas tascas a que muitos dos seus compatriotas, camaradas ou não, sequer têm acesso...

Anónimo disse...

Não há melhor "trouvaille" do que a chamada "esquerda caviar": esquerda, para alívio da consciência social dos seus adeptos; caviar, para não abdicarem de nenhuma das delícias da sociedade de consumo.

Anónimo disse...

Peço licença para entrar nesta troca de galhardetes. É óbvio que os gostos não têm cor política, embora o carnavalesco brasileiro Joãozinho Trinta dissesse que quem gosta da miséria são os intelectuais porque o povo gosta é do luxo. Mas o que me parece estar em causa é a contenção e o decoro que deve haver na fruição desses gostos e hábitos, sobretudo numa épocas de crise como a que atravessamos. Descrever publicamente um jantar requintado num dos melhores restaurantes ou numa das mais famosas "brasseries" de Paris, a um preço certamente exorbitante, não é uma agressão, um desrespeito para com aqueles que pouco mais podem fazer do que se contentar com uma sopinha ao fim do dia? Ou será isto demagogia e inveja de quem bem queria mas não pode fazer o mesmo?

Anónimo disse...

bom eu nao sabia que brasserie Lipp é um dos restaurantes mais caros de Paris mas graças aí à classe média remediada fiquei a saber... assim ja sei onde manjar quando tiver algum

cumprimentos

Glória Reis disse...

Gostei muitíssimo dos comentários do "Änônimo" sobre a esquerda caviar representada também pelo jurista Eros Grau que pouco parece brasileiro, totalmente alheio à realidade do seu país.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...