domingo, outubro 20, 2013

A Europa na Culturgest

Ao longo dos últimos meses, a Culturgest, sob a direção de Miguel Lobo Antunes, organizou quatro debates sobre a questão europeia, num ciclo intitulado "Portugal e a reformatação da Europa: incertezas, riscos, opções".

Quatro deputados europeus - Elisa Ferreira, Paulo Rangel, Diogo Feio e Rui Tavares - mantiveram diálogos respetivamente com João Ferreira do Amaral, João Salgueiro, João Costa Pinto e comigo sobre diferentes facetas dessa realidade.

Cada um desses debates prolonga-se por cerca de hora e meia, estando agora disponível em vídeos. Quem estiver interessado, pode visualizá-los aqui. *

*dá-se "um doce" a quem tiver essa paciência...

sábado, outubro 19, 2013

GOP

Um dos documentos oficiais mais desconhecidos são as "Grandes Opções do Plano", as GOP, para os iniciados, um texto que todos os governos são obrigados, anualmente, a apresentar à Assembleia da República. 

Em tempos passados, coube-me a autoria de algumas páginas desse que sempre foi um dos documentos menos lidos da vida política nacional. Partilhar da produção das GOP é a garantia de se entrar na História pelo mais discreto e menos glorioso dos anonimatos.

Como  gosto de ler textos bizarros, dei ontem uma vista de olhos às GOP para 2014. São só 187 páginas. E, para meu grande descanso e regozijo, verifiquei que nelas o governo prevê, já para 2014, a introdução do Abutre-negro no espaço nacional. 

Finalmente uma boa notícia, caramba!

Luis Filipe Costa


Pode dizer-se que, em Portugal, a informação radiofónica viveu dois períodos: antes e depois de Luis Filipe Costa.

Quem teve o privilégio de apreciar, nesses anos 60 e 70, o jornalismo que era produzido no velho Rádio Clube Português não esquecerá nunca Luis Filipe Costa, a sua voz e as fantásticas equipas que soube conduzir, num período que para sempre ficou na história da nossa rádio. Uma história que passou pelo 25 de abril, onde o Rádio Clube, nessa data fundacional da nossa Democracia, ficou conhecido como a "Emissora da Liberdade".
 
O rigor da produção noticiosa liderada por Luis Filipe Costa fez escola. Esse era um tempo anterior ao jornalismo radiofónico "ofegante", cheio de "ahaaas..." a encher hesitações, com vozes medíocres e atabalhoadas que agora campeia por aí, atingindo mesmo, nos dias de hoje, a bela aventura que já foi a TSF.

Luis Filipe Costa dedicou-se depois à escrita e ao cinema. Ontem, tive o gosto de o encontrar numa livraria lisboeta e com ele lembrei esse tempo fantástico que muito marcou a minha geração.

sexta-feira, outubro 18, 2013

"Fait divers"

O principal partido da oposição teve a luminosa ideia de propor a antecipação do debate do Orçamento, alegadamente para dar tempo ao presidente da República para requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva do diploma. Ideia que se sabia, à partida, que nunca seria aceite pela maioria.

De um momento para o outro, o debate sobre o conteúdo do Orçamento passou para segundo plano. Ao longo do dia de hoje, em toda a comunicação social, deixou de ser a política do governo, expressa no orçamento, a estar em causa para as atenções ficarem concentradas no caráter polémico da proposta da oposição.

Em política, a gestão das iniciativas e do seu tempo é uma das belas-artes.

Comichão europeia

Nasceu por aí uma polémica sobre um relatório onde o delegado em Portugal da Comissão Europeia se permitiu fazer comentários sobre os efeitos decorrentes das possíveis decisões do Tribunal Constitucional português, em face da proposta de orçamento.

Não entendo a surpresa. Se bem me recordo, o presidente da Comissão Europeia ainda há dias teve propósitos idênticos, embora neste caso nos possamos sempre questionar sobre se o fez nessa capacidade funcional ou na qualidade de eleitor residente nos círculos da emigração.

Não me recordo - mas deve ser um lapso da minha memória - de ter ouvido qualquer luminária da Comissão Europeia fazer comentários pressionantes ao tribunal de Karlsruhe, o órgão constitucional alemão, quando toda a Europa esteve suspensa das respetivas decisões.

quinta-feira, outubro 17, 2013

Comparações

O meu pai, que tinha uma profunda aversão pelo regime ditatorial em que viveu mais de metade da sua vida, tinha a tese de que Salazar detestava os funcionários públicos e avançava, a esse respeito, com um conjunto de exemplos de medidas que, na sua perspetiva, testemunhavam essa atitude.

Ontem, dei comigo a pensar que, se acaso ele ainda fosse vivo nos dias que correm, era bem possível que relativizasse um pouco aquela sua avaliação. 

Joaquim Durão

Há pessoas que perdemos de vista, às vezes por anos, e que, por um acaso, voltamos a reencontrar. Ontem, voltei a cruzar uma figura que as novas gerações provavelmente desconhecem mas que, décadas atrás, foi um nome destacado do desporto nacional, imensamente popularizado pela televisão. Refiro-me ao xadrezista Joaquim Durão.

Conhecemo-nos em Angola, quando ele foi por lá representar o xadrez português. Encontrámo-nos depois, em outras ocasiões. Curiosamente, seria de novo Angola - ou melhor, uma conversa sobre um artigo que ontem publiquei sobre as relações luso-angolanas - a "juntar-nos".
 
Joaquim Durão tem hoje 82 anos e uma história notável contada no curto filme (6 minutos) que pode ser visto aqui.

quarta-feira, outubro 16, 2013

A política externa portuguesa e Angola*

Num dia dos anos 80, numa conversa em Luanda, quando era por lá diplomata, uma figura que viria a ter responsabilidades nas relações externas daquele país disse-me, mais ou menos, esta frase: "O peso da guerra colonial é muito forte. Portugal e Angola estão "presos", um ao outro. Umas vezes, isso será uma coisa boa, noutras vai ser bastante má. O futuro estará nas mãos dos que melhor souberem gerir a impaciência e a irritação que, durante muitos anos, vai continuar a existir entre nós". Isto foi afirmado num momento menos bom das relações bilaterais, com guerra civil angolana e fortes tensões entre Luanda e Lisboa. Lembro-me dessa frase muitas vezes e ainda não encontrei razões para infirmar a sua justeza.

Durante quase quatro décadas de diplomacia, assisti a todos os registos possíveis na atitude portuguesa face a Angola. Não os vou tipificar a todos, mas sempre direi que foram desde um seguidismo quase subserviente, para "não aborrecer o Futungo", até a atitudes de grosseira ingerência na vida interna do país, deliberadamente provocatórias para o governo de Luanda. No primeiro dos casos, por "realpolitik", económica ou estratégica, noutros casos pelo exacerbar de raivas de quem parece não se conformar com o fim do prazo de validade da atitude neo-colonial. Ambas as posturas permanecem ainda hoje por aí, continuando a ser caricaturalmente ridículas. E perigosas.

A primeira apressa-se a calar qualquer reação a tudo quanto emane, oficial ou oficiosamente, de Luanda. Perante declarações de responsáveis ou editoriais furibundos da imprensa local, que descarregam ácidos comentários sobre Portugal e a figura de alguns portugueses, a propósito da atitude da nossa Justiça face a atos praticados por cidadãos angolanos em território português, logo surge a conhecida legião dos "angolorealistas" a recomendar silêncio, à luz da sacrossanta proteção dos "interesses portugueses em Angola". Nalguns casos, a tese do “apaziguamento” vai até onde agora se viu.

A segunda é a velha escola da contestação da legitimidade do MPLA e das autoridades políticas angolanas em geral. Num primeiro tempo, essa doutrina apoiava-se numa patética hagiografia da UNITA, titulada pelos utentes dos "Jamba tours", cegos para a barbárie do líder do “Galo Negro”. Mais recentemente, essa atitude transmutou-se e surge escudada nas preocupações éticas, apoiadas numa espécie de “droit de regard” paternalista, que parece autorizar a que Portugal possa dar-se ao luxo de ter opiniões firmes quanto ao modo como os angolanos, não apenas organizam o seu poder político, mas a própria distribuição interna dos seus recursos.

A relação entre Portugal e Angola é demasiado importante para ficar limitada por esta dicotomia. Como antigo profissional da diplomacia portuguesa, só posso lamentar que o nosso entendimento bilateral com Angola esteja, em permanência, dependente de humores induzidos do exterior ou motivada por agendas ideológicas. Da mesma forma, a nossa política externa não pode continuar num tropismo quase exclusivamente reativo, enredando-se, ciclicamente, em epifenómenos tristes e degradantes. E, embora nada tendo a ver com isso, devo admitir que isso possa também corresponder também ao interesse de Angola, um Estado com um crescente perfil internacional, uma potência regional que não parece poder ter a menor conveniência de deixar-se arrastar, diretamente ou por intemediários oficiosos, numa espécie de esquizofrenia diplomática com a antiga potência colonial, a qual, a prolongar-se neste registo, se arrisca a conferir-lhe uma imagem de imaturidade no plano internacional.

Separemos, de uma vez por todas, as coisas: à Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política!

Meço bem estas palavras: aos responsáveis angolanos deve ser dito, de forma clara e frontal, que não podemos deixar de considerar inamistosos comentários oficiosos, ou sem visível reação de distanciação oficial interna, que põem em causa a imagem de Portugal, bem como a honra e o funcionamento das nossas instituições judiciais, a pretexto de incidentes que envolvam figuras angolanas no nosso território; da mesma forma que não seria admissível, da parte oficial portuguesa, a expressão de suspeitas sobre o comportamento da Justiça angolana, num conjunto de casos em curso, que, embora pouco conhecidos, envolvem hoje interesses e a liberdade de cidadãos portugueses que vivem ou trabalham em Angola.

Cá como lá, nenhum operador da Justiça está acima da crítica, mas convém lembrar que os sistemas judiciais dispõem de meios próprios de contestação e recurso, que permitem regular posições que se opõem. A Justiça faz-se nos tribunais, não nos jornais. E, em Angola como em Portugal, ela deve atuar de forma independente, sem atender aos apelidos e às “cunhas”.

Temos o dever, de uma vez por todas, de acabar com a ideia de que Portugal e Angola são dois países eternamente reféns um do outro, através de misteriosas conspirações, chantageados por interesses ou por ódios ideológicos ou outros. É obrigação dos responsáveis de ambas as partes dar passos através de um diálogo político frontal, no sentido de descrispar este ambiente, que não é salutar nem digno de dois Estados soberanos, unidos por muitos e legítimos interesses, que estão muito para além dos "fait-divers" de conjuntura.

Para o futuro, temos a obrigação de saber estruturar com Angola uma relação diplomática madura e sem tabus, por muito que isso possa desagradar aos "enragés" da vingança pós-colonial, de ambos os lados da fronteira, a qual, aliás, não existe entre nós. Resta a convicção, de que, com o tempo, e também de ambos os lados, esses persistentes militantes da acrimónia bilateral acabem por cair no "caixote do lixo da História", citando um clássico que, cá como lá, já esteve mais na moda.

 
*Artigo hoje que hoje publico no "Diário de Notícias".

terça-feira, outubro 15, 2013

A expressão

Eram lendárias as hesitações daquele diplomata. Rebuscado cultor do perfecionismo, colocava em cada texto um esforço de "afinação" de escrita que ia sempre muito para além daquilo que o próprio bom-senso recomendaria. As matérias mais simples levavam-no a um trabalho insano, que demorava horas, porque não desejava deixar, a quem potecialmente o lesse, a ideia de um descaso ou de menor atenção face àquilo que os arquivos dele iriam recolher para a História. De duas circunstâncias ele se não dava conta: por um lado, que o que ganhava em rigor perdia em leitura, porque a atualidade e interesse dos seus textos iam fenecendo na razão inversa do tempo que ele lhes dedicava. E, por outro, os postos onde operava estiveram quase sempre longe da linha de prioridades de quem tinha a responsabilidade por tomar conta da nossa política externa, o que levava a que essa sua elaborada escrita tivesse sempre um escasso universo de leitores.

Uma dia, no país de um posto onde estava colocado, ocorreu uma grave tragédia natural, com perda de muitas vidas e haveres. Não obstante as agências noticiosas terem multiplicado pelo mundo, desde a primeira hora, relatos pormenorizados sobre a situação, o embaixador foi adiando, ao longo de todo o dia, para grande desespero dos seus colaboradores, o envio de uma comunicação a Lisboa, menos para relatar o que já seria conhecido mas, essencialmente, para dar conta da sua avaliação sobre as medidas que, no entendimento da embaixada, Portugal deveria tomar para se associar ao esforço internacional de solidariedade que já se desenhava.

As comunicações, à época, estavam longe dos meios vário hoje utilizados. Nem o telefone era fácil de usar! Só ao final do dia o embaixador concluiu, com o requinte estilístico habitual, um longo texto que, rasurado e emendado mil vezes, chegou à funcionária do "serviço da Cifra", que fazia a expedição dos "telegramas", a qual passou então um largo tempo a dactilografar para a máquina a obra-prima do seu chefe. Exausta, acabou, já ao início da noite, o telegrama, o qual foi então enviado ao ministério, a Lisboa, onde seria decifrado e colocado sobre as secretárias, na manhã seguinte. Tinha-se, assim, perdido, praticamente, um dia.

À uma da madrugada, o telefone tocou na casa da funcionária da Cifra. Era o embaixador. Pedia-lhe, delicado, se podia regressar à chancelaria, dada a necessidade de enviar algo "muito urgente" para Lisboa. A cidade onde a embaixada se situava não era fácil, em matéria de segurança, principalmente durante as noites. Ciente de que se vivia um tempo excecional, a senhora, que já estava a dormir, lá regressou ao local de trabalho, guiando o seu carro, pelas ruas desertas, num gesto de dedicação excecional. O embaixador esperava-a, no gabinete. Grato, com um sorriso, entre o nervoso e o embaraçado, estendeu-lhe uma folha com o texto de um novo telegrama. À distância, ao ver que era uma mensagem muito curta, a funcionária sentiu-se aliviada. Ao menos isso! E lá foi para a Cifra enviar o texto. Quando finalmente o leu, ia-lhe dando uma coisa má: "muito agradecia que, no meu telegrama anterior, todas as vezes em que surge a palavra "terramoto", esta fosse substituída por "tremor de terra"...

segunda-feira, outubro 14, 2013

Amigos

Há dias, li a notícia da recondução de Irina Bukova, como diretora-geral da Unesco, uma amiga de há quase duas décadas, que tive o gosto de voltar a cruzar, várias vezes, em Paris, nos últimos anos.

Depois, li que os socialistas europeus de indicaram o nome do alemão Martin Shultz, atual presidente do Parlamento europeu, para seu candidato a presidente da Comissão Europeia, recordando que ele mantém alguns bons amigos entre nós, entre os quais tenho o gosto de me contar.

É sempre muito agradável ver amigos assumirem posições de relevo. Mas costumo pensar que esse sentimento é ainda mais genuíno quando temos a absoluta certeza de que, no futuro, os nossos interesses não se cruzarão com as funções que eles ocupam. Como agora acontece comigo e com estes amigos. Os quais não servirão para alimentar a "receita" que, para a vida política britânica, deu origem ao celebrado livro do jornalista Jeremy Paxman, "Friends in high places"...

A cicatriz

Naquele tempo, naquele período de menos de seis anos que mediou entre a queda de Salazar (queda dupla: da cadeira de lona, em agosto, do poder efetivo, em setembro) em 1968 e a Revolução iniciada em abril de 1974, alguma coisa mudou na vida política portuguesa, embora não o suficiente para garantir um fôlego salvador à ditadura.

A televisão seria um dos instrumentos onde essa mudança se fez sentir. Ainda antes de 1968, Marcello Caetano havia sabido colocar alguns homens de mão dentro da RTP, um espaço de afirmação de poder onde, no "swap" de ditadores, se iria passar uma das lutas surdas entre o salazarismo decadente e o marcelismo nascente. Para além das "conversas em família" do novo chefe, um proselitismo monologante que o "presidente do Conselho" quis fazer passar por um ato de transparência democrática, a RTP passou a oferecer outras curtas palestras ideológicas, sem imagens que não fossem as das caras estáticas de jornalistas serventuários, alguns de muito considerável qualidade intelectual, oriundos de órgãos de imprensa do regime moribundo - o "Diário da Manhã", o "Novidades", "A Voz" e, mais tarde, a "Época". Os nomes não era muitos: Barradas de Oliveira, Dutra Faria, João Coito, Artur Anselmo e alguns mais.

Sempre tive um estranho fascínio e uma dedicada atenção a tudo quanto se situa do lado contrário àquele que defendo. Da mesma maneira que não dou prioridade a artigos, livros ou blogues que assumam teses com que sei, à partida, que vou concordar, acabo por ter um bizarro e quiçá masoquista tropismo para tudo quanto tenho a certeza de ir detestar. Por isso, as intervenções dos integrantes da lista de panfletários do regime que acima elenquei eram, para mim, momentos imperdíveis do espetáculo televisivo, por mais que isso chocasse familares e amigos.

Uma noite, numas férias, em Vila Real, aí por 1972 ou 1973, "divertia-me" a observar na RTP Dutra Faria, um jornalista da "situação", de ar grave e façanhudo, que se desdobrava numa qualquer diatribe anticomunista ou contra os "terroristas" que operavam nas colónias. Ao meu lado, o meu pai mostrava alguma indiferença à palestra e só não punha termo ao meu obsessivo "voyeurisme" do regime porque, havendo um só canal televisivo, o "zapping" era então um conceito inexistente.

Num certo momento da charla televisiva, o meu pai comentou:

- Já reparaste naquela cicatriz que o Dutra Faria tem sobre a sobrancelha?

De facto, mesmo no preto-e-branco da imagem desses tempos, era visível que o homem tinha uma marca muito clara na cara.

- Eu assisti ao momento em que o Dutra Faria "ganhou" aquela cicatriz. Foi há mais de 40 anos...

Olhei com alguma surpresa para o meu pai. Ele era o que se pode chamar um republicano "dos quatro costados", nunca escondera a ninguém o seu pendor oposicionista, havia-me levado pela mão a ver o Humberto Delgado em 1958 e, em 1969, tinha apoiado a minha participação na aventura eleitoral vilarealense contra o regime. Mas, confesso, não imaginava que tivesse estado imerso num combate político com decorrências físicas. Por isso, fiquei à espera da explicação.

- Julgo que foi em 1930, na "casa de pasto" Liège (*), no início do elevador da Bica. Era um restaurante de galegos, que os funcionários da Caixa Geral de Depósitos, como eu, então frequentavam. Um dia, durante um almoço, assisti a uma cena que me ficou na memória. Um grupo de "camisas azuis" - os nacional-sindicalistas, dirigidos por Rolão Preto (**) - começou, numa mesa, a dar vivas à contra-revolução e ao fascismo. Os tempos políticos eram muito tensos. A ditadura estava em pleno e os nacional-sindicalistas andavam então numa grande euforia, julgando ser possível instituir em Portugal um modelo próximo do fascismo italiano. Pouco tempo depois, Salazar iria pôr um ponto final nesse radicalismo. Os comensais das restantes mesas olhavam o ruidoso grupo, mas mantinham-se em silêncio. Dei-me então conta que um homem que almoçava sozinho começou a agitar-se e, a certa altura, não se conteve e gritou: "Viva a República!". Os nacional-sindicalistas, sentindo-se provocados, levantaram-se e cercaram a mesa do republicano. Este, ameaçado por todos os lados, pegou numa garrafa e enfrentou o grupo agressor. Na luta que se seguiu, um dos "camisas negras" foi atingido no sobrolho e começou a sangrar. Aproveitando a confusão, o republicano conseguiu fugir pela calçada da Bica abaixo. O ferido era o Dutra Faria e o republicano chamava-se Carvalho Araújo(***). Tu sabes quem é...

Claro que sim! Era o Carvalho Araújo, um homem com quem eu tinha colaborado, ali mesmo em Vila Real, na referida batalha oposicionista de 1969 e de quem já um dia contei uma divertida história neste blogue. Fora afastado da função pública pelo Estado Novo e, depois de uma vida difícil e tumultuosa, regressara a Vila Real, pouco tempo antes. Muito radical e com mau feitio, acarretava consigo uma aura de resistente à ditadura que muito impressionava a nossa geração local.

Nessa noite, fiquei a saber a quem se devia a (republicana) cicatriz que nunca mais abandonou o rosto de Dutra Faria.

(*) - A casa Liège ainda hoje existe. Voltei lá um dia, com o meu pai, num almoço em que me descreveu a coreografia da cena.
(**) - Por um bambúrrio histórico, eu tinha conhecido Rolão Preto, no Fundão, numa noite em meados de outubro de 1969, numa reunião oposicionista. O antigo nacional-sindicalista, então com 76 anos, tinha-se aliado a uma lista monárquica anti-regime. Deixo uma imagem dos seus tempos áureos.
(***) - Carvalho Araújo viria a ser reintegrado na Caixa Geral de Depósitos, depois da Revolução de abril. No escasso tempo que lhe restava antes da aposentação, ficou colocado sob a autoridade do meu pai, gerente da Caixa na cidade, que também não lhe gabava o feitio...

(EM 17 DE DEZEMBRO DE 2017 FOI PUBLICADA NESTE BLOGUE UMA VERSÃO ATUALIZADA E CORRIGIDA DESTE POST)

domingo, outubro 13, 2013

O Nobel e a Noruega

Como (não) é (às vezes) sabido, a designação do prémio Nobel da Paz - contrariamente a todos os outros prémios Nobel, que são atribuídos na Suécia - é feita pelo comité Nobel da Noruega. Invariavelmente, a entrega do prémio tem lugar no dia 10 de dezembro, no Rådhus, a câmara municipal de Oslo, pelo primeiro ministro norueguês, na presença do monarca do país. Conheço bem o edifício e a sala, respetivamente com uma arquitetura algo "brutalista" e umas discutíveis pinturas, onde me coube participar num jantar oferecido pelo falecido rei Olavo V ao presidente Eanes.

Quando, por alguns anos, vivi pela Noruega, travei conhecimento com um dos membros desse comité, que era amigo do meu primeiro chefe em Oslo, o embaixador Fernando Reino. Integrar o comité é uma função prestigiada, sendo os seus membros vulgarmente (à época, o que pode ter mudado entretanto) próximos do Partido Trabalhista. Infelizmente, esse meu conhecido nunca se revelou aberto a revelar-me o modo como as escolhas e decisões do comité eram tomadas. A consciência do prémio configurar um momento importante para a imagem externa do país, o que, para um norueguês, assume uma importância extraordinária, deve ser a razão desta reserva secretista. Mas, devo confessar, a metodologia de atribuição do galardão sempre me intrigou.

Este ano, o Nobel da Paz é concedido à Organização para a Proibição das Armas Químicas. A escolha foi criticada por alguns, por poder ser lida como transportando para o centro da questão síria apenas uma das vertentes do conflito no país, podendo assim ajudar Assad a, resolvido que seja esse problema, considerar que está legitimado noutras dimensões do seu bárbaro esforço de guerra. Mas nada disto é novo: muito frequentemente, as decisões do comité Nobel da Paz têm, no passado, sido controversas, às vezes bem mais do que este ano.

De há uns anos a esta parte, tenho para mim que as escolhas dos prémios Nobel da Paz acabam por ser um espelho muito interessante da própria mentalidade norueguesa. Umas vezes, a seleção segue uma lógica simples e conjuntural, foi o caso deste ano. Outras vezes, parece obedecer a uma "naïveté" quase deslumbrada, como foi o caso de Obama, que, à época, ainda não existia enquanto político com história a premiar. Não raramente, o comité optou por algumas ousadias, quase sempre muito "politicamente corretas", que lhe conferem uma imagem de "espírito de ONG" - e mais não digo...

Se olharmos com atenção, ao longo dos anos, para os nomes escolhidos para os prémios Nobel da Paz, quase que poderemos, através deles, descortinar o verdadeiro perfil psicológico desse país singular que é a Noruega - gente simples, preocupada com a "rightouseness", as mais das vezes algo óbvia, mas sempre séria e "modestamente" surpreendida com o facto do mundo teimar em não se lhe assemelhar.

sábado, outubro 12, 2013

A ponte a pé

A questão da escolha da ponte em que terá lugar a manifestação da CGTP tem vindo a ser abordada numa perspetiva de segurança. O governo entende que seria mais prudente fazê-la na Vasco da Gama, enquanto que os sindicalistas pretendem a 25 de Abril. 

Ora, ora... O que a CGTP quer é uma ponte que possa encher para a fotografia, o que será fácil com a mobilização da rapaziada da "outra banda". O que o governo quer é enviá-los para tão longe quanto possível, para um espaço onde ficasse visível a incapacidade sindical de o preencher. No meio disto, discute-se segurança...

Assumir a verdade, em política, é muito complicado, não é?

A Turquia em breves conversas

Universitário iraniano, em estágio no país - "Embora se sinta por aqui uma crescente tendência para impor normas de inspiração corânica, nota-se na Turquia um evidente progresso económico e social que faz com que as pessoas sintam que têm um futuro. Ao contrário, no meu país, há uma tristeza muito grande na população, que se sente "raptada" por uma elite política que circula pelos lugares de poder, com uma legitimidade que lhe é dada pela invocação de Deus, por tudo e por nada. Aqui, nota-se um ambiente bastante autoritário, como se viu na repressão às manifestações, mas essa sempre foi a marca do país, desde Ataturk. Há uns anos, o Irão era o país rico e a Turquia o pobre; agora é o contrário. Gostaria de ficar a viver aqui para sempre".

Amigo turco - "Vive-se aqui uma prosperidade económica e uma ambição nacional de grandeza, à escala internacional, que começa a não ser compatível com o retrocesso de costumes que o governo quer impor à sociedade. O "template" autoritário, que continua a ser a marca do país, passou da mão dos militares, que agora são quase humilhados, para um setor da classe política que descobriu uma forma de se prolongar eternamente no poder. Lembras-te de eu te dizer, há mais de dez anos, que a Europa era a nossa esperança? Pretendíamos utilizar a adesão à União Europeia como "escudo" contra o nacionalismo orgulhoso. Com a persistente atitude europeia de rejeição da nossa candidatura - eu sei que Portugal nunca teve essa posição... - as coisas são hoje o que são! Mas as tensões internas vão permanecer muito grandes, podes crer".

Portuguesa residente - "É um pouco inquietante assistir ao surgimento de práticas e leis que revelam a clara intenção de islamizar os costumes. Isso é feito pouco a pouco, às vezes com pretextos de momento, mas pressente-se que há uma estratégia de longo prazo. Há muitos setores na juventude turca que dão sinais de não estarem dispostos a aceitar este retrocesso, que, aliás, acaba por ser contraditório com o prolongamento da divinização de Ataturk, cuja obra foi precisamente na direção oposta. Mas muitos dos meus amigos turcos reconhecem, contudo, o trabalho de Erdogan para melhorar a qualidade de vida e colocar o país no centro da cena internacional. Por isso é que o partido no poder é reeleito".

Governante turco - "Estamos a fazer um esforço de alargamento da nossa presença diplomática à escala global, por forma a colocar a Turquia no patamar de influência à altura daquele que é já hoje o nosso papel no mundo. Temos ações de cooperação para o desenvolvimento em várias áreas do mundo, está em curso uma forte extensão da nossa rede de embaixadas e consulados. Estamos envolvidos em iniciativas para provocar uma nova reflexão sobre o atual injusto equilíbrio de representação no seio das Nações Unidas e noutras instâncias internacionais".

Diplomata turco - "É chocante o modo como a comunidade internacional se comporta no tocante à partilha de responsabilidades no caso dos refugiados sírios. A Turquia assume hoje, sozinha, uma inaceitável parte do peso dessa tragédia, com centena de milhares de refugiados, instalados em dezenas de campos, que se situam, aliás, em áreas menos desenvolvidas do país, que, em alguns casos, duplicaram a respetiva população, suscitando situações sociais da maior gravidade. Temos tido, ao nosso lado, António Guterres, como alto-comissário da ONU para os refugiados, que tem feito um trabalho notável, cuja ação e entusiasmo são hoje muito respeitados, mas que continua a não ter meios para atuar de forma sempre eficaz. A repetição incessantes deste tipo tragédias justifica um esforço internacional concertado".

sexta-feira, outubro 11, 2013

Diplomacia e lavoura

De Lisboa, um amigo alertou-me, ontem à noite, para o facto de um diário lisboeta ter citado, em comentários negativos sobre o ministro Rui Machete, alguns diplomatas aposentados, que teriam pedido para manter o anonimato.

Nem sei bem porquê, lembrei-me dos tempos em que, na União Europeia, a diplomacia portuguesa se batia, com sucesso, pelo aumento das quotas de tomate. Valeu a pena?

quinta-feira, outubro 10, 2013

Prova de vida

Escrever um blogue e nele procurar ter uma atividade diária é, podem crer, uma tarefa complicada. E exigente.

Ontem, tive um dia de intenso trabalho em Antalya e, logo depois de uma corrida para o aeroporto, uma viagem, ao final da noite, para Ancara. Hoje, aqui na capital turca, bem cedo, tive duas reuniões. Agora, fechado numa sala a trabalhar, recebo um email de um amigo, algures em Portugal, com o seguinte teor: "Há algum problema contigo? Como não escreveste hoje nada no blogue..."

Caramba! Já não se pode passar um dia sem dar "prova de vida"? Pronto, aqui está o "post" de hoje. OK?

quarta-feira, outubro 09, 2013

América Latina na Turquia

Todos os dois anos, a Federação Internacional de Estudos sobre a América Latina e o Caribe organiza o seu congresso, que decorre, nestes dias. em Antalya, na Turquia. 

Fui convidado pelo Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Ancara a estar presente neste exercicio, no qual procurarei desenvolver, no encerramento da sessão de hoje, o tema da importância geopolítica da América Latina para a Europa, nas suas diversas vertentes. 

terça-feira, outubro 08, 2013

Para o Sérgio Moutinho

Olá, Sérgio

Cheguei há pouco ao sul da Anatólia, aqui na Turquia, não muito longe da Síria de que tanto me falavas com entusiasmo. De repente, lembrei-me que terá sido mais ou menos por aqui, no final dos anos 80, que vinte e tal facadas traiçoeiras te calaram a alegria. Foi num dos meus mais tristes Natais, em Vila Real, aquele dia frio em que te fomos deixar para sempre em Santa Iria.

Ainda tenho, entre algumas outras, uma carta tua, enviada meses antes, de Ancara, em que me falavas do teu cansaço com o posto onde te mantinham, para além do razoável, muito contra a tua vontade. Lembro-me de me teres dito que te apetecia concorrer a Marselha e de eu te desaconselhar essa opção, já nem sei bem com que argumentos. E de não ter tido artes para te tirar da Turquia, coisa que nunca me perdoei. Não esqueço também o nosso último almoço, na Laurentina, com a Mi Allegro, a quem tu davas conselhos para a vida afetiva - logo tu, Sérgio!

Já passaram muitos anos, mesmo muitos, desde os tempos em que desembarcaste em Vila Real, vindo dos "States", com o melhor inglês da cidade, sempre agitado e agitador, numa terra pouco dada a acomodar quem não estava "nem aí" para se acomodar. Foram os tempos comuns no liceu de Vila Real, onde só o teu entusiasmo, e a paciência bracarense do professor Ladislau, conseguiu levar-nos a montar o fantástico "Centro de Estudos Geográficos", onde, com o Elísio Neves, o Zé Barreto, o Carlos Leite e alguns outros, soubemos dar a volta à rotina desses dias algo baços, numa cidade que - confessemos! - era então uma grande chatice. Ainda guardo exemplares do "Meridiano", órgão do Centro, com textos que hoje me fazem sorrir.

Para ti, que sempre foste um apressado dos tempos, esse foi apenas o início de um percurso trepidante, que te levou à universidade de Coimbra, a dar aulas, a ser preso pela Pide, a te meteres na aventura da cooperação na jovem Guiné-Bissau. E, finalmente, sob o meu conselho, a entrares para a carreira diplomática, onde foste uma promissora estrela, tão efémera como acabou por ser a tua vida. Tudo isso feito sob o olhar bom, sorridente e deliciado, da tua mãe, a âncora mais fiel de uma existência em que, sem outras baias que não fossem as do usufruto obsessivo do instante, testaste todos os limites e abanaste todas as convenções. Até àquela noite.

Nunca se soube, nem se saberá ao certo, o que aconteceu nessa ocasião trágica, aqui na Anatólia. Como dizem os juristas, "a doutrina divide-se" e eu fiz parte de uns poucos que, contra a vontade de alguns outros - à frente de quem esteve, quem havia de ser?, a nossa amiga Ana Gomes, que tu me havias apresentado um dia - nunca se mostraram excessivamente empenhados em escrutinar o rigor dos factos ocorridos, talvez porque o facto maior foi sempre a tua morte, e essa foi a tristeza definitiva que nenhuma revelação sensacional poderia reverter. E porque, quem sabe se erradamente, sempre fui de opinião de que a verdade oficial que, inevitavelmente, seria vendida e mediatizada, só iria contribuir para agravar a tristeza de quem te estava mais próximo.

É tudo quanto hoje te quero dizer, Sérgio, aqui da Turquia, um país a que sempre te associo. Se acaso há algum lugar por onde possas andar, só tenho uma certeza: estarás a agitar as águas e os espíritos. Recebe um abraço saudoso do

Francisco

ps - não te falo da política caseira porque, conhecendo-te, "passavas-te" se eu te contasse como as coisas andam por lá, por Portugal. Mas, mesmo assim, felicito-te pelos resultados em Setúbal, em Évora, em Loures ou em Beja, entre outros lugares onde os teus (o "partido", como tu dizias) mostraram a sua consabida arte de bem cavalgar todas as crises.

segunda-feira, outubro 07, 2013

Constantinopla

Daqui a pouco, vou apanhar um avião para Istambul, que já se chamou Constantinopla.

Por uma mera coincidência, acabei ontem de ler "O homem de Constantinopla", primeiro volume de uma biografia romanceada de Calouste Gulbenkian, da autoria de José Rodrigues dos Santos. É um livro que se lê bem e que, para além da trama caricaturada do romance, nos permite um olhar sobre um tempo interessante. Nele é retratada a vida otomana e a odisseia da população arménia naquele país, no final do século XIX, bem como as manobras dos impérios no Médio Oriente desse tempo que antecedeu o primeiro grande conflito mundial. Resta aguardar pela sequela da história, que sairá em Novembro, intitulada "Um milionário em Lisboa", para completar esta versão da saga de um homem que foi genial nos negócios, com um apurado sentido da beleza o que, segundo o livro, também não terá sido alheio a alguns gostos bem peculiares que marcaram a sua vida íntima, coisa de que até agora não tinha ouvido falar. Curiosamente, está em preparação, por um historiador britânico, uma completa biografia de Gulbenkian, que será interessante cruzar depois com este romance.

domingo, outubro 06, 2013

Civismo

Em Portugal, os eventos prolongam-se muito para além da sua realização.

Se bem repararem, ainda sobrevivem, rotas e desmaiadas, por janelas e varandas do país, bandeiras nacionais do Euro 2004. Não é patriotismo, é desmazelo.

Das festas populares de verão, sobram ainda, de árvores ou em paredes, cartazes e pendões rasgados. Para inundar o panorama, tudo bem, para "recolher as canas" é que é o diabo!

As eleições autárquicas já foram há uma semana. O que justifica que, por todo o lado, permaneçam "outdoors" e imensa propaganda?

Enfim, ainda há letreiros assinalar a EXPO 98...

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...