quarta-feira, setembro 16, 2009

Europa

Terminou, finalmente, o longo folhetim sobre a renovação do mandato do presidente da Comissão Europeia.

Sucessor de Romano Prodi e Jacques Santer, Durão Barroso sucede agora a si próprio, por mais cinco anos. Uma boa notícia para o próprio e, sem a menor dúvida, para o país.

terça-feira, setembro 15, 2009

Conspiração

Não deixa de ser impressionante o acolhimento que continuam a ter as teorias conspiratórias em torno do 11 de Setembro. Debates diversos na televisão francesa dão mostra da persistência de sectores que, sob a forma de dúvidas sobre os factos ou de teses mais ou menos imaginativas sobre a forma como os mesmo se passaram, continuam a pôr em causa a versão oficial sobre os ataques terroristas nos Estados Unidos. A internet tem sido um espaço privilegiado para a propagação destas ideias, mas também novos livros continuam a ser editados sobre o tema.
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Pode ser que esteja enganado, mas sinto nesta especulação a exploração de um forte resquício de anti-americanismo, o qual, sendo uma posição tão legítima como qualquer outra atitude política, não deixa de afectar o rigor e a seriedade com que uma questão desta importância mereceria, em princípio, ser tratada.
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As teorias da conspiração têm hoje uma história já importante à escala mundial, algumas ajudadas pela obscuridade em torno de alguns factos, outras meramente elaboradas com base na ignorância ou na má-fé.
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A propósito, deixo uma história verdadeira, ocorrida comigo no Brasil, há cerca de dois anos. Durante uma conversa, ao referir-me ao Estado do Acre, um dos 27 Estados da federação brasileira, alguém me retorquiu: "Ah! Você é dos que acredita na existência do Acre!". Confesso que fiquei siderado, mas o meu interlocutor logo me "esclareceu": "O Acre não existe! É uma criação dos militares brasileiros, as cidades do Acre são na Amazónia e os senadores e deputados do Acre vêm de outros locais". E querem saber que esta bizarríssima teoria tem "grupos de trabalho" em universidades brasileiras?!". Não acreditam? Leiam, por exemplo, aqui.

segunda-feira, setembro 14, 2009

Direito à barbaridade

Um jovem francês, filho (curiosamente) de uma cidadã portuguesa e de um árabe, está hoje no centro de uma séria polémica que envolve o ministro do Interior francês, Brice Hortefeux. O governante foi "apanhado" num filme, que aparece no YouTube, no qual aparece a fazer uma graçola, num momento de conversa "solta", no intervalo de uma reunião partidária. Um comentário que faz no filme é, para uns, uma pura manifestação de racismo (no caso do ministro de estar a referir à origem àrabe do jovem), mas que, para Brice Hortefeux, se trata apenas uma inocente referência ao facto de ele e o jovem serem ambos da região de Auvergne. O governo francês, bem como o jovem luso-árabe, saíram em apoio do ministro; a oposição e outros sectores pedem a sua demissão.

Para o que aqui me interessa, muito mais do que o ministro disse ou quis dizer, embora reconheça que uma figura pública não pode dar-se ao luxo de exprimir certos comentários com ligeireza (todos nos lembramos do caso do ministro português que foi demitido, e bem, por ter deixado em público uma anedota de muito mau gosto), importa começar por discutir esta cada vez mais recorrente utilização de filmes obtidos em momentos informais e passá-los na internet, sem o consentimento dos visados. O que temos visto, nos últimos tempos, releva de um "voyeurisme" irresponsável que a imprensa, com falsa ingenuidade, vai depois repescar como "notícia", sem ter de pagar o preço deontológico de ter sido ela a obtê-la, por meios condenáveis.
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Mas a questão sai do campo formal e situa-se no área do conteúdo do que é dito, em certos contextos (e concedo que o do ministro francês, se se viesse a confirmar a intencionalidade de que é acusado, seria grave).
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Neste particular, subscrevo, em absoluto, o que o jornal "Libération" refere em editorial: "Parece que, a partir de agora, deveremos praticar, na vida corrente ou em política, uma espécie de policiamento da nossa linguagem que proibirá toda a espontaneidade, todo o "relaxamento" na expressão, toda a espécie de humor, desde que ele seja considerado de mau gosto, desde que afecte esta ou daquela minoria, este ou aquele grupo. Ora, num regime democrático, o comportamento quotidiano deve dispor de uma certa margem de "jogo", sem o que a liberdade de expressão passará a ser, em todo o lado, uma liberdade vigiada."

É evidente que todos concordamos que estamos num mundo novo, em que as graçolas de tonalidade racista ou discriminatória já não são, como eram no passado não muito longínquo, admitidas com um sorriso de mera condescendência, quando não de alguma cumplicidade. Muitos de nós somos do tempo em que as piadas sobre "pretos" (quem não se lembra das anedotas sobre Samora Machel?), sobre judeus ou outras recheadas de (verdadeiros ou apenas procuradamente irónicos) preconceitos faziam parte do dia-a-dia das conversas dos cafés, dos jantares ou das tertúlias. Era isso puro racismo? Era, pelo menos, uma menor atenção à sensibilidade de outros - e isso hoje é considerado inadmissível e, em muitos meios, é recebido com rejeição ou, no mínimo, com uma atitude silenciosamente desaprovadora.

Dito isto, pergunto-me se, apesar de tudo, não deveremos ter liberdade para, no nosso espaço íntimo e privado, podermos dar expressão a algumas "barbaridades", desta ou de outra natureza discursiva, sem corrermos o risco de estarmos permanentemente a ser espiados por algum "big brother", que colocará, de imediato, a nossa diatribe no YouTube. Eu, por mim, aviso desde já: não dispenso o meu direito privado à barbaridade. E assumo esta atitude com toda a clareza.

domingo, setembro 13, 2009

Suicídio

23 funcionários da France Telecom suicidaram-se no último ano e meio. Trata-se de uma empresa sob uma forte pressão de reconversão tecnológica e de métodos de gestão, com uma assumida atitude face aos seus empregados com vista à sua adaptação a formas de trabalho que parece estarem a anos-luz da sua formação profissional original.

Esta coincidência de suicídios está a provocar uma preocupação generalizada, do governo aos sindicatos. E a abrir aqui um debate importante, que pode contribuir para explicar melhor - em França, mas também noutros países - as dificuldades com que certos profissionais se debatem, num momento já avançado da sua carreira, ao verem-se confrontados com pressões de actualização e métodos operativos com que manifestamente se não sentem à vontade.
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Todos temos de aprender continuadamente, mas todos temos de ser ensinados a aprender.

L'Humanité

Frédéric Mitterrand, o novo ministro da Cultura do governo de Nicolas Sarkozy, bem como o seu colega do Orçamento, Eric Woerth, decidiram aceitar o convite que o Partido Comunista Francês lhes fez e deslocaram-se à tradicional Fête de "l'Humanité", o equivalente à portuguesa Festa do "Avante!" (embora historicamente bem mais antiga do que esta). Aconselho, aliás, a que apreciem a interessante evolução da imagem de Marianne no cartaz da festa.

A experiência esteve longe de ser um sucesso, com fortes insultos a ambos os ministros, que se viram obrigados a recolher-se, sob protecção física, para que as coisas se não agravassem ainda mais. Hoje, a presença da líder do Partido Socialista, Martine Aubry, foi melhor aceite e pôde levar a cabo o debate em que iria participar, embora o entusiasmo com a sua presença estivesse longe de ser esmagador.

Interrogo-me sobre o que poderia acontecer em Portugal, em casos semelhantes. Mas acho melhor não se tentar...

sexta-feira, setembro 11, 2009

S. Tomé


A minha amiga Ana Gomes recordou, há dias, no Diário de Notícias, a épica aventura que foi a montagem de uma visita presidencial a S. Tomé e Príncipe, nos idos de 80.

Estava então colocado em Angola e, a pedido do embaixador Quevedo Crespo, que chefiava a missão em S. Tomé, cheguei uns dias antes, para ajudar a preparar os eventos. A capacidade logística santomense não estava, à epoca, à altura mínima de uma operação daquela envergadura, que incluía transporte, alojamento e acolhimento, por alguns dias, de um significativo número de pessoas. Inaugurava-se então a extensão da pista do aeroporto de S. Tomé e o avião da TAP transportava uma larga comitiva, que aliás sairia dali para Kinshasa, no termo da visita.

A nossa pequena Embaixada em S. Tomé considerava que não tinha massa crítica suficiente para arcar com a preparação organizativa. Ora, três anos antes, eu tinha tido a meu cargo, na Noruega, a preparação de uma outra visita de Estado do presidente Eanes. Daí, talvez, a ideia da minha convocatória. Porém, as diferenças de meios eram do dia para a noite, como pude constatar desde o primeiro momento. E a tarefa tornou-se um pesadelo, devo hoje confessar.

Por um daqueles milagres que só as redes da lusofonia proporcionam, fui surpreendido com o facto do então chefe de protocolo santomense ser um velho amigo meu, infelizmente já falecido - o Eurico Espírito Santo, colega de noitadas no Porto, nos anos 60, figura popular na academia portuense e afamado jogador de basquetebol do CDUP. Sem a sua ajuda e sem o seu espírito de "desenrascanço", algumas coisas não teriam sido possíveis, nessa complexa visita.

Desde logo, como a Ana Gomes refere, confrontámo-nos com o facto de, poucas horas antes do banquete oficial que o nosso Presidente daria ao Presidente Pinto da Costa (para as novas gerações: trata-se de outra pessoa...), não haver disponibilidade de talheres. Dado o alarme, e num carro que um antigo colega de liceu, residente em S. Tomé, tivera a amabilidade de me emprestar, lá fui com o Eurico Espírito Santo, munido de uma "requisição oficial" da Presidência da República santomense, buscar, à famosa e vetusta Pousada de S. Tomé, os talheres necessários. Recordo ter subscrito uma declaração, em que me responsabilizava pessoalmente pela respectiva devolução. Não controlei isso depois...

Mas a cena do vinho, também referida pela Ana, foi muito mais curiosa.

O jantar, num espaço aberto de uma antiga roça, decorreu com a normalidade possível nestas circunstâncias. Porém, a certa altura do repasto, detectei alguma agitação na tenda presidencial, onde os dois Presidentes e alguns altos dignitários se sentavam, naquele modelo de mesa tipo "última ceia", voltada para o "povo", que é um vício arraigado de certos protocolos. Por uns instantes, exausto que estava de dias infernais de trabalho, tentei ignorar a movimentação, continuando a conversa com o João Paulo Guerra e o meu colega Castro Brandão, de que me recordo como alguns dos companheiros de mesa. Porém, ao final de uns minutos, ao ver a cara afogueada e a movimentação preocupada da Ana Gomes, acabei por ir ter com ela.

O que se passara? O nosso Presidente pedira, a certa altura, um pouco mais de vinho, para sobre a respectiva qualidade trocar impressões com o seu homólogo local. E trouxeram-lhe... água! Insistiu e... voltou a vir água! Chamados os assessores, constatou-se, no "backstage" de apoio à mesa presidencial, que já não havia mais vinho. E estávamos ainda a meio do jantar!

Ora acontecera, bem antes do jantar, que eu detectara, na coreografia do pouco fiável grupo de empregados que tomava conta do "catering", uma multiplicidade de olhares, quase lúbricos, fixados sobre as caixas que estavam a ser abertas, do excelente vinho que tinha vindo com a nossa comitiva. Algo me disse, então, que seria avisado pôr de parte algumas caixas, o que fiz na mala do carro que estava a usar. E o que se estava a passar justificou, em pleno, a minha prudência. E lá fui, com alguém da Embaixada, buscar as garrafas de reserva ao carro, as quais ficaram, a partir de então, sob a tutela ajuramentada de alguém de presumível confiança. E - revelo agora pela primeira vez, "para a História"! - levei discretamente comigo duas garrafas para a minha própria mesa!

Os Presidentes puderam regressar, finalmente, já com o necessário apoio substantivo, à elevada temática etílica para a qual derivara a conversa de Estado.

quinta-feira, setembro 10, 2009

11 de Setembro de 2001 - Nova Iorque


“Pela cor do fumo, deve tratar-se de um incêndio”, comento para o meu motorista, ao ver uma pequena nuvem negra, estranhamente alta, ao sul de Manhattan, caminhando de Oeste para Leste. Circulamos no FDR drive, a via rápida que acompanha a margem ocidental da ilha que é o coração de Nova Iorque. Devem faltar três ou quatro minutos para as nove horas, início da reunião dos embaixadores da União Europeia, que tem lugar todas as terças-feiras num prédio em frente da ONU. À entrada, o meu colega francês, Jean-David Levitte, fala-me de um incêndio no World Trade Center. O inglês, Jeremy Greenstock, que vem atrás, está melhor informado: um avião colidiu com uma das torres. Sem excluir nada, o acidente é a hipótese implicitamente assumida por todos como mais plausível.

Já no 6º andar do edifício, a caminho da reunião, vemos imagens na televisão: chamas e fumo. Minutos depois, um colaborador meu, que permanece junto ao televisor, vem chamar-me: um outro avião embateu na segunda torre. Regresso à sala, onde os trabalhos já começaram, e informo os colegas ao meu lado. Trata-se, sem dúvida, de atentados, mas não temos a menor ideia sobre o tipo de aviões utilizados. Porém, não nos passa pela cabeça que os incêndios não possam ser debelados, embora assumamos que deva haver um número importante de vítimas. O colapso das torres não é sequer, naquele momento, hipótese imaginável.

(Vi as torres do World Trade Center, pela primeira vez, em finais de 1972, na minha primeira visita a Nova Iorque. Fui ao topo de uma delas três vezes, a última das quais em Junho de 2001, com o meu pai. Na noite de 10 de Setembro de 2001, o José Manuel dos Santos ia jantar no “Windows of the World”, o restaurante no alto de uma das torres, e telefonou-nos, durante a tarde, a anunciar o evento. Ainda nessa mesma noite, ao regressar do lançamento oficial do jornal “24 Horas”, em Newark, o meu motorista convenceu-me a ir pelo Lincoln Tunnel, dado que estava uma visão excelente, o que permitia uma vista gloriosa das torres iluminadas – fico a dever ao Ismael essa derradeira perspectiva do skyline de Manhattan.)

Numa olímpica inconsciência, a reunião dos embaixadores comunitários prossegue, tendo a “Cimeira da Criança” na agenda de prioridades. Cerca das nove e meia, um papel circula: um terceiro avião ter-se-á despenhado no Pentágono. Surpreendentemente, a presidência da União Europeia não toma a iniciativa de suspender a reunião e nenhum de nós o sugere.

A reunião acaba às 10 horas. Estava previsto que o “sino da paz”, oferecido em tempos pelo Japão à ONU, tocasse no seu jardim, como é da tradição, para anunciar a data de início da nova Assembleia Geral anual, a ter lugar precisamente nesse dia. Saio da sala com a colega dinamarquesa e com Levitte, a caminho da cerimónia. Comentamos, com generalidades, a gravidade já pressentida dos acontecimentos. Chegados à rua, damo-nos conta que o mundo tinha, entretanto, mudado, muito mais do que nós supúnhamos. Havíamos estado numa patética redoma durante a última hora. À distância, tenho que confessar que não fico nada orgulhoso por ter participado nesse exercício de cegueira colectiva. Verificamos que o edifício das Nações Unidas está já praticamente evacuado. A circulação na 1ª Avenida foi suspensa. As pessoas param e sentam-se nos passeios, com caras de espanto e de inquietação.

Dirijo-me à Missão de Portugal, na 2ª Avenida, a 200 metros de distância. A maioria dos funcionários está na sala de reuniões, onde há um aparelho de televisão. A situação agrava-se a olhos vistos, os incêndios não parecem controláveis e a expectativa de haver muitas vítimas é cada vez mais clara. A consternação e a emoção são gerais, os comentários interrogativos sobre o futuro são crescentes e há lágrimas em muitos olhos. Que mais pode acontecer? Que outros riscos existem? Soube-se, entretanto, do quarto avião, despenhado na Pensilvânia.

Fecho-me só no gabinete, para pensar um pouco no que fazer, com a CNN em fundo. A pausa dura apenas escassos minutos. No meio do ambiente de tensão que se vivia, é-me anunciada a chegada do Embaixador da Islândia. Volto a protagonista de uma cena quase surrealista. Como havíamos combinado dias antes, vem pontualmente às 10 e meia ... para discutir a questão da rotação de candidaturas na Comissão dos Direitos do Homem! Delicada mas penosamente, deixo-o iniciar a conversa, com a cabeça já algures. À terceira ou quarta interrupção por telefonemas, ambos assumimos, finalmente, que o ambiente não está para business as usual e concordamos em adiar o encontro.

Entretanto, a primeira torre cai. A dimensão da tragédia adensa-se rapidamente. A perspectiva de cidadãos portugueses estarem entre as vítimas (que eu, um tanto inconscientemente, mas com infeliz precisão, já digo para uma televisão portuguesa que podem ser milhares) mobiliza, como é natural, os inúmeros contactos feitos pela comunicação social nacional. Na realidade, nada se sabe por ora. Em Lisboa ou Nova Iorque, todos somos simples membros da “geração CNN”. Nas minhas intervenções, com voz nas rádios e nas televisões nacionais que me procuram, tento adoptar um tom de procurada serenidade, assumindo sempre que, em qualquer caso, nunca haverá muitos nacionais portugueses envolvidos (recordo ter verificado que as visitas de turistas não se tinham ainda iniciado, à hora dos atentados). Remeto as precisões para o Consulado-Geral e para a Embaixada em Washington, mais por uma questão formal do que pela convicção de que possam saber algo mais do que eu.

Os telefonemas de Portugal sucedem-se: os nossos familiares e a comunicação social. E também o Presidente da República, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e o Secretário-geral do MNE – os representantes oficiais portugueses que nos contactam a manifestar a sua simpática preocupação pelo nosso bem-estar. Por uma avaria da empresa dos telefones, com a central junto às Torres, que demoraria muitos dias a ser rectificada, vamos ficando sem linhas de acesso ao exterior, o que nos obriga a aproveitar as chamadas recebidas para pedir que sejam transmitidas mensagens de acalmia aos nossos familiares.

Sou informado que as escolas em Nova Iorque estão a encerrar e digo aos funcionários com filhos para irem para casa. Pouco depois, corre a notícia que a ilha de Manhattan vai ser isolada; os restantes funcionários que vivem fora da ilha – a grande maioria do pessoal administrativo - são autorizados a regressar rapidamente às suas casas, onde acabarão por ficar vários dias, dada a permanência das restrições.

As ruas, antes com imensas pessoas em conversas que se adivinham de catarse colectiva, começam agora a ficar vazias e silenciosas, se excluirmos as sirenes de ambulâncias e dos carros de bombeiros, mas essas já parte do cenário acústico nova-iorquino normal. Cada vez se vêem menos viaturas particulares. As restrições de circulação anunciam-se progressivamente rigorosas.

Com o pessoal administrativo e os funcionários com família já fora, a Missão está quase deserta. Os poucos que ficamos, estamos de piquete aos telefones que ainda funcionam - do embaixador ao Conselheiro Militar, num ambiente que se vai prolongar por vários dias. Às 7 da tarde (meia-noite de Lisboa), dou ordem para encerrar a Missão. Só então noto que não comi nada desde manhã.

Regresso a casa, onde a minha mulher passou o dia, como todos nós, em frente do televisor, o que vai ser a nossa sina nos dias que se seguirão. Acabará por ser ela a descobrir, através da informação de uma cadeia de televisão, que ambos, precisamente na 6ª feira e o sábado anteriores, havíamos pernoitado no hotel de Boston que foi utilizado pelos responsáveis de um dos atentados - o “Westin Hotel”. Confesso que não pude evitar uma viagem retrospectiva, embora sem sucesso, pela memória das caras que encontrámos nos corredores.

As imagens das torres em chamas continuam a ser repetidas à exaustão em todos os canais, os comentários dos especialistas esgotam o universo das hipóteses, os súbitos “peritos” na actualidade iniciam os seus meses de glória, muitas vezes num mero débito de platitudes e de lugares-comuns. A onda de análises que as televisões nos traz não deixa margem para dúvidas sobre o que aí vem. O desespero, a raiva e a vontade de vingança sobrepõem-se, sem apelo, a qualquer juízo de racionalidade. Não estou surpreendido. Falar simplesmente de justiça, ligar circunstâncias ou tentar enveredar pela explicação de algumas coisas passou, de repente, a ser incorrecto, porque não joga com o discurso maniqueu em que se apoia o jingoísmo já dominante. Dias mais tarde, vou descobrir que, na comunicação social portuguesa, o tom dos “especialistas” domésticos vai também, quase sempre, no mesmo sentido. A imprensa trar-nos-á, durante as semanas seguintes, alguns exemplares de ferozes exegetas críticos da heterodoxia. As Nações Unidas também não vão ficar imunes, por algum tempo, a esta vaga.

Depois de muitas horas passadas a reagir e a lançar hipóteses “a quente”, procuro parar um pouco para pensar. Alinho os factos, tento deduzir as consequências imediatas nas várias dimensões do problema e perspectivar linhas para participar na reacção colectiva que terá que ter lugar no âmbito das Nações Unidas. Estou praticamente sem comunicações com Lisboa, mas é óbvio que não necessito de quaisquer instruções para assumir posições nesta matéria em nome de Portugal.

Deito-me já de madrugada, depois de algumas horas de zapping televisivo. Foi um dia longo e pesado, um dia bem triste. Um dia que fez perder ao mundo bastantes anos.

(Este texto reproduz grande parte de um outro que inseri no meu livro “Uma Segunda Opinião”)

11 de Setembro de 1973 - Chile

quarta-feira, setembro 09, 2009

Títulos

Ao ver o cartaz de um novo filme, que se intitula "L'Armée du Crime", lembrei-me que as brincadeiras com as palavras, nos títulos, podem ser uma coisa muito divertida. Eu, confesso, sou fascinado por esses trocadilhos e só tenho pena de não ser organizado ao ponto de tomar nota deles.

Há uns anos, dizia-se que o jornal "Independente" criava títulos com alguma graça e, depois, imaginava conteúdo para os respectivos artigos. Confesso que, em absoluto, não acho mal. Um bom título é meio caminho andado para uma boa história e, em tese, até pode ficar à espera dela...

Tive sempre a ideia de que se, um dia, publicasse um livro de poemas - coisa que será um tanto difícil, porque nunca escrevi nenhum... - ele poderia vir a chamar-se "A Fixação Proibida". Porquê? Porque acho graça à "desmontagem" da expressão clássica das placas de parede, que agora rareiam, talvez por cansaço de inutilidade. Há dias, porém, o Ricardo Araújo Pereira, um dos poucos génios que Portugal tem produzido em tempos recentes, "roubou-mo" para um artigo na "Visão". Este já foi...

E acho excelente o título de um livro de poemas que, há um bom par de anos, no auge do PREC, vi numa livraria de Lisboa: "As Forças Amadas". Folheei-o mas nunca o li, até porque, com certeza, a poesia não estava à altura do título. A prova é que nunca mais se ouviu falar de tal livro.

Viva Queirós !


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Santa Casa

A imprensa europeia não fala de outra coisa: a decisão do Tribunal Europeu que deu vencimento à queixa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa contra a empresa de apostas informáticas Bwin, que impede esta de actuar no espaço português, tendo como associado luso a Liga Portuguesa de Futebol Profissional. Uma medida tomada com o objectivo de "lutar contra a fraude e a criminalidade" - para que se pondere. Está a ser um vendaval de notícias...

Parabéns, provedor Rui Cunha! E se a Santa Casa, para comemorar, devolvesse por teu intermédio aos automobilistas lisboetas o espaço que lhes retirou no Largo da Misericórdia? Seria bem bonito!

Notas

Não há ninguém que perceba melhor do que eu o fascínio que os famosos cadernos da Moleskine provocam nas pessoas. Tenho um grande amigo brasileiro que diz sentir-se "nu", se se esquece do Moleskine! Desde há muito que sou um infatigável coleccionador daquilo que os britânicos apelidam de "stationery", categoria comercial onde se incluem pequenos livros, de capa dura ou mole, de folhas brancas, quadriculadas ou de linhas, destinados a apontamentos diversos.

(Uma nota curiosa, de cultura "de almanaque": chama-se "stationery" a estes produtos porque se vendem em sítios fixos e não em vendedores ambulantes: "si non è vero, è bene trovato"...)

Compro-os incessantemente pelo mundo, para angústia de espaço de quem vive comigo, pela certeza que temos que, nem com outra vida, chegaria a ter tempo para os escrevinhar a todos. E tenho-os de várias espécies e tamanhos: desde uma "raça" muito bruxelense, usada na União Europeia, com capa dura coberta a pano acinzentado, até uma vienense de tom verde escuro brilhante, passando por alguns azuis fortes, com belíssimo aspecto e que quase dá pena de encetar. Nas reuniões internacionais, se vislumbro do outro lado da mesa alguém com um modelo que me interessa, não deixo logo de inquirir onde o adquiriu - e lá vou eu... Tenho agora encomendados, num encadernador de Vila Real, exemplares de um novo modelo que vi nas mãos de um amigo, coberto a carneira, que vai passar a estrela (episódica) do armário onde jazem dezenas desses livros e cadernos, separados, "às paletes". E, claro, também tenho um Moleskine, mas apenas um.

Dito isto, convém que ninguém se iluda. O mundo pode produzir toda a espécie destes caderninhos anti-Alzheimer (chamo-lhes assim porque neles tomo nota incessante de tudo o que posso esquecer), mas os melhores de todos - e os mais baratos de todos - encontram-se no Porto, na Papelaria Heróica, no número 110 de uma das mais bonitas artérias da Invicta, a Rua das Flores, paralela à Mouzinho da Silveira, para quem desce da estação de S. Bento para a Ribeira. Há décadas que lá me abasteço desses livrinhos, de capa preta, convencendo-me eu que os passaram a produzir também em papel quadriculado (eram só brancos e de linhas) depois de anos de operosas conversas que tive com os antigos proprietários. Eles fizeram-me a vontade, mas os actuais donos "estragaram-me" a gramagem da capa, o que torna agora os cadernos um pouco mais duros e menos maleáveis. Mesmo assim, valem muito a pena. Experimentem!

Já agora, se forem à rua das Flores, aproveitem para nela ver uma das mais belas igrejas do Porto e, quase em frente, um dos melhores alfarrabistas do país, para coisas contemporâneas, o "Chaminé da Mota". E, por hoje, basta de publicidade!

segunda-feira, setembro 07, 2009

Fardas

JustifierUm dia, na segunda década dos anos 70, a Embaixada de Portugal em Londres recebeu a visita de um militar de Abril, membro do Conselho da Revolução, homem muito estimável, que deixou uma rara imagem de educação, elegância e bom-senso na sociedade política de então.

Como se impunha, o embaixador ofereceu-lhe uma refeição. O repasto correu de forma simpática, na magnífica sala de jantar ornada de pinturas, daquela que é, sem sombra de dúvidas, uma das mais belas residências que Portugal tem pelo mundo.

Num determinado momento da conversa, o nosso militar deixa cair uma confissão: "Vou contar-lhe um segredo, senhor embaixador: um dos meus maiores sonhos foi sempre poder vir a ser, um dia, embaixador de Portugal em Londres". Os tempos políticos, à época, não eram já muito propícios a poder garantir, de mão beijada, sinecuras a quem não possuía experiência e qualificações profissionais adequadas à função. Mas nunca fiando...

E, por essa razão, e perante o silêncio protocolar do embaixador, o militar não ficou sem resposta. Um jovem diplomata presente, homem do mundo, cuja inteligência e arte voltariam, no futuro, a colocar Londres no seu destino, não resistiu e retorquiu: "Tem graça, senhor major. No meu caso, é precisamente o contrário: sempre tive como ambição de vida ser comandante da Região Militar Norte"...

O major, inteligente e perspicaz, entendeu o recado. E mudou de conversa.

domingo, setembro 06, 2009

Derrotas

Há dias, um canal da televisão francesa apresentou um programa onde um grupo de académicos, vocacionados para a leitura da coisa pública (sociólogos, semiólogos, psicólogos e politólogos), apreciou, com profundidade e grande qualidade científica, os chamados "discursos da derrota" dos políticos.

O objecto do estudo foram peças televisivas, algumas com mais de meio século, nas quais figuras proeminentes da vida política francesa reagiram a quente, em frente às câmaras, face a derrotas que tinham acabado de sofrer. Foram dissecados, para além do conteúdo do que foi então dito, a imagem, o estilo e a forma dessas prestações - os ares seráficos, a raiva contida, os esgares forçados, a expressão dos olhares e os tom de voz, a presença ou ausência de força anímica residual nas personagens, em alguns casos veladas ironias.

Houve de tudo um pouco, desde a humildade sincera à arrogância e à acidez, do anúncio da saída definitiva de cena até à subliminar promessa da não desistência no futuro, de votos de felicidades aos contendores até a prenúncios trágicos do "après moi, le déluge". E, claro, queixas do efeito das sondagens, campanhas distorcidas, teorias conspiratórias e traições, incredulidade e desencanto perante a ingratidão ou a incompreensão dos votantes. Uma hora magnífica e instrutiva de televisão.

Em Portugal, todos temos na memória alguns momentos semelhantes, esses escassos minutos em que, sempre com ar grave e, às vezes, genuinamente emocionado, dirigentes políticos caseiros tiraram conclusões, instantes depois de terem concluído que os eleitores lhes haviam tirado o tapete...

Agora já é tarde, mas teria tido imensa graça, e dessacralizaria por antecipação as nossas noites televisivas de 27 de Setembro e 11 de Outubro, se algum canal da televisão portuguesa tivesse tido a coragem de nos lembrar esses momentos breves do nosso passado político dos últimos 35 anos.

Isso poderia ensinar os nossos futuros derrotados a conviverem melhor com o que o destino lhes trará. É que a democracia não é apenas o sistema em que se vive, é também a maneira de o saber viver e aceitar.

Pausa

Enquanto alguns voltam penosamente ao trabalho e outros se entretêm em estimáveis lides próprias da "saison", este blogue aproveita para ir discretamente de férias, mantendo apenas os "serviços mínimos" diários a que a lei da lealdade para com os seus leitores o obriga, com gosto.

sábado, setembro 05, 2009

João Vieira (1934-2009)

Através do blogue do Alexandre Abrantes, acabo de saber da morte de João Vieira, um nome grande da pintura portuguesa contemporânea. Os críticos e os biógrafos encarregar-se-ão de lhe traçar um último retrato. Como homenagem pessoal, limito-me apenas a olhar, com admiração, para uma parede da minha casa, onde uma obra dele, adquirida já há alguns anos, me transmite a viva alegria das suas cores e dos seus traços fortes.

Paris foi uma cidade a que João Vieira esteve sempre ligado, desde que aqui chegou em 1957, como bolseiro da Fundação Gulbenkian. Trabalhou com Arpad Szenes e aqui criou, com outros artistas, a revista KWY. Paris seria, aliás, uma cidade que nunca saiu dentro de si e onde regressou sempre.

Há menos de um ano, João Vieira teve a amabilidade de me convidar para comissário internacional da iniciativa SINAIs DOURO, um projecto que há muito acalentava, destinado a dar projecção a algumas belíssimas ermidas da zona duriense, associando-lhes trabalhos de artistas estrangeiros. Por razão das ocupações da minha vida errante, devo confessar que não pude, porventura, estar à altura das suas expectativas sobre a minha contribuição para aquela que era uma obra generosa e de grande interesse. Iniciativa que, agora, sem ele, duvido que possa ir adiante. Às vezes, as pessoas são mesmo insubstituíveis.

Em tempo: são de João Vieira os magníficos vitrais colocados na Sé Catedral da minha cidade natal, Vila Real.

Carta a Liedson

Caro Liedson

Neste dia em que você pode vir a vestir pela primeira vez a camisola das quinas (e, já agora, como novo cidadão português, conviria que soubesse a razão pela qual essas quinas existem e porque figuram na nossa bandeira) quero enviar-lhe um muito sincero abraço de saudação por ter decido juntar-se a nós - embora você, como brasileiro, nunca tivesse estado muito distante.

Agora que as artes administrativas do Dr. Madaíl conseguiram apressar, pelo interesse de recrutamento urgente de pé-de-obra especializado, a emissão do seu novo bilhete de identidade, digo-lhe que vejo com muito agrado uma pessoa com a sua correcção, simpatia e profissionalismo passar a ser oficialmente um de nós. Há vários anos que você é um modelo de integração brasileira na sociedade portuguesa, para orgulho dos seus compatriotas de origem e para prazer de quem aprecia a sua bela arte futebolística, como é o meu caso.

Porém, agora já com a honestidade de compatriota, gostava de fazer-lhe uma séria advertência: você vai, muito rapidamente, ter de escolher uma de entre duas atitudes.

A primeira será você transportar, para a sua nova qualidade de português, muito daquele maravilhoso optimismo que faz parte da matriz do seu país, esse orgulho, essa crença e saudável maneira de ver a vida e um futuro que sempre "vai dar certo". De algum modo, isso retribuiria o "cheirinho a alecrim" que o Chico Buarque nos pediu e que, agora, bem precisávamos de volta - se puder, ouça bem a canção do Chico, porque ela explica muito do que houve e há entre nós.

Outra opção - o seu verdadeiro atestado de "ser português hoje" - será você, com a ampla legitimidade que o seu estatuto de lusitano "de carteirinha" agora lhe dá, entrar na onda dominante. Para isso, apenas tem de assumir o fado da desgraça, afivelando o carão do descontentamento, esse "mal-estar" (ia escrever "mal de vivre", mas receio que você não seja muito dado ao francês) que é hoje uma nossa marca de identidade quase obrigatória.

Não se arrisque, por isso, caro Liedson, a continuar a saudar alguém com o seu carioca "tudo bem?", porque pode ouvir, logo de volta, "das boas", como cá dizemos, talvez mesmo um arrogante "olha-me para este!?". Se quer passar a ser português contemporâneo de parte inteira, estando com os ares do tempo, logo na próxima segunda feira, ao entrar na porta 10A de Alvalade, ponha uma cara grave e angustiada, tipo Paulo Bento depois das derrotas, e queixe-se, queixe-se muito, de tudo e de todos, comece a dizer que isto é um país miserável, que está tudo mal, do clima ao trânsito, do que não posso dizer ao que você sabe que todos dizem. Não vou ao ponto de aconselhá-lo a chamar já "choldra" ao país (como fazia um saudado personagem de Eça de Queirós, um autor que você ganharia em ler, no intervalo dos treinos) ou a qualificar Portugal de "piolheira", como fazia um rei a quem o destino retribuiu com uma bala na cabeça.

Pode mesmo contar a anedota de que este ano está a ser tão mau, tão mau, que já parece o ano que vem. Vai ver que cai bem entre os seus amigos portugueses, que intimamente pensarão: "Este Liedson está muito bem integrado!".

A escolha é sua. E não resisto a oferecer-lhe uma música, que é um retrato curioso deste seu novo país, também à beira-mar espraiado.

Boa sorte, Liedson, e seja muito bem vindo ao seu Portugal!


Post Scriptum (por extenso latino, que o tempo não está para brincadeiras) - Publico este texto antes da sua provável estreia na selecção. Espero que a possa ajudar a sair do buraco onde a gestão pós-Scolari a meteu e onde agora se conta com a sua "macumba" para nos safarmos. Mas não se angustie. Se a não conseguir ajudar, porque você não pode fazer tudo, continue a marcar belos golos no clube a que tanto se tem dedicado e que muito continuará a necessitar de si. Como brasileiro ou como português.
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Post Scriptum 2 - Mal eu sabia, caro Liedson, que seria você o "culpado" pelo prolongamento da esperança lusitana de ainda poder estar no Mundial da África do Sul. Dizendo as coisas de outro modo: adiou (espero bem estar errado) por uns dias a saída de cena do senhor professor Queirós. Ele fica-lhe a dever isso. A nós (mas gostava de estar enganado, repito) ficar-nos-á a dever muito mais.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Obama

O que se está a passar nos Estados Unidos, com a emergência de uma forte resistência às propostas do presidente Obama para garantir uma cobertura em matéria de saúde para alguns milhões de deserdados da fortuna, é um forte sintoma político. A ideologia americana enraizou um culto extremo do individualismo, que continua a ser incompatível com políticas de solidariedade colectiva assumidas pelo Estado. Nada, aliás, que seja de espantar: uma modesta proposta no mesmo sentido havia já constituído a primeira derrota da administração Clinton.

Não deixa de ser chocante ver hoje alguns chamar a Obama "nazi" ou "socialista", por querer titular uma reforma social moderada. Trata-se, contudo, de uma reacção que tem, atrás de si, algo mais. É um sinal claro de que, afinal, a sua eleição, essa fantástica ruptura que o mundo saudou como símbolo de que outra América era possível, havia provocado um quase inédito mal-estar em muitos sectores do seu país, que calaram por algum tempo o preconceito, mas cuja raiva silenciosa durou pouco. A crise e o desemprego terão feito o resto e transformado, em poucos meses, uma onda de esperança num mar de dúvidas.

Resta o campo internacional. Obama e a sua equipa tiveram a coragem de colocar em causa a política seguida, num passado recente, em várias frentes, algumas das quais tradicionalmente delicadas. Com o Afeganistão a revelar-se um atoleiro complexo, sem saída à vista, com a "bomba-relógio" do Paquistão escondida momentaneamente sob o tapete, com o Iraque a mostrar-se um falso sucesso, com o não surgimento imediato de êxitos claros como resultado da notável moderação com que os EUA estão a lidar com a Rússia, o Irão, a Coreia do Norte ou Cuba, o grande teste, uma vez mais, acabará por ser Israel. É por aí que vai ser medido o grau de coragem final desta nova administração em termos externos, porque essa é também uma questão interna americana.

O rápido desencanto de uma certa América face ao seu presidente, que já o vê como fragilizante da imagem que tem de si própria e do seu destino como potência à escala global, poderá, rapidamente, acelerar-se se, por um infeliz acaso, uma qualquer nova ameaça à segurança dos EUA vier a ter lugar. Nesse caso, Obama correria o risco de ser colado à imagem de um Jimmy Carter e esse, como se sabe, foi em Washington o início de mais um insuportável ciclo de arrogância.

Compete à Europa aliar-se a Obama. A Europa, que não existe ainda como entidade política, atravessada como está por uma indefinição do seu projecto colectivo e com a crise económica a potenciar a emergência de soluções nacionais ou de potencial "directório", bem como a fragilização das suas instituições colectivas, deveria mostrar, à sua medida, que consegue ser capaz de ajudar a nova administração americana a ter sucesso nalguns dossiês internacionais importantes.

É que, como já se percebeu, um eventual êxito de Obama iria muito para além das fronteiras americanas: significaria um tempo novo para o multilateralismo e para a possibilidade de prevalência de certos valores que também estão na matriz constitutiva do projecto europeu. E esse projecto, gostem alguns europeus ou não, só tem condições de se implantar com projecção na ordem externa, com sustentabilidade, credibilidade e capacidade de influência, se e quando conseguir garantir um sólido e são diálogo com o seu parceiro do outro lado do Atlântico.

Uma versão sintetizada deste texto foi publicada no "Semanário Económico", de hoje, podendo ser lida aqui.

Madrugadas

Magistral foi este comentário de Alcipe, num post anterior:

"Somos filhos da madrugada, mas cada vez temos sono mais cedo..."

quinta-feira, setembro 03, 2009

Pedras ainda Salgadas

A senhora directora de Pessoas e Comunicação da Unicer teve a amabilidade de deixar um comentário no meu anterior post, sobre a questão do Parque Termal das Pedras Salgadas. Fico grato por essa gentileza e estimulo sinceramente os leitores deste blogue a que leiam tal texto, até porque ele é auto-explicativo.

Sobre esta questão, que espero deixará de mobilizar este blogue, mas que cuidarei que não abandone, no próximo futuro, outras áreas da comunicação social e da mobilização cívica em Portugal, gostava de deixar ainda alguns pontos.

O primeiro, e óbvio, é que nada me move, em particular, contra a empresa Unicer, de que sou regular cliente, tal como muito portugueses. Tenho pela Unicer o respeito que me merece qualquer outro investidor, em especial os que se disponham a criar riqueza de que possa usufruir a minha terra natal - Trás-os-Montes. E não deixo de ficar satisfeito pelas notícias que a comunicação da Unicer me trouxe sobre Vidago. Mas a minha questão não tem a ver com Vidago, tem a ver com as Pedras Salgadas. Percebo que, para a lógica da Unicer, essas possam ser duas realidade numa só. Mas as pessoas que vivem nas Pedras Salgadas... não vivem em Vidago!

O segundo ponto, para que não subsista a mínima dúvida, é que recuso ver esta questão instrumentalizada politicamente e que me são alheios quaisquer litígios paroquiais de natureza partidária, nomeadamente os que possam resultar de comentários desse teor colocados neste blogue. A política não é chamada para aqui!

O terceiro é para afirmar que me preocupa, essencialmente, o futuro, económico e social, da vila das Pedras Salgadas, terra onde a minha família tem raízes há já alguns séculos, como quem de lá é bem sabe.

Num quarto ponto, quero dizer que, embora lamentando muito, a comunicação da Unicer não me convence em nada e só confirma as minhas anteriores perplexidades. E quero constatar o que me parece evidente: fazer sobreviver o Parque, com duas ou três fontes, alguns pavões e uns equipamentos esparsos é um "tapar de olhos" e não é sinónimo de devolver às Pedras Salgadas o que a Unicer lhe retirou.

A sustentabilidade do Parque como espaço de usufruto não é independente da existência nele, ou não, de uma unidade hoteleira que garanta a regular movimentação anual de pessoas por aquela terra. Quem quiser fazer uma cura de semanas de águas termais, frequentar durante dias o tal futuro spa e usufruir por um período razoável do Parque - onde dorme? Acampa? Quando a Unicer tomou conta do empreendimento, o Parque tinha um hotel, o Hotel Avelames, (de que mostro uma imagem bem antiga) onde, num passado não muito longínquo, eu próprio fiquei alojado, por mais de uma vez. Não era de alta qualidade? Pelo menos, as gestões Sousa Cintra e Jerónimo Martins mantiveram um hotel razoável. A gestão Unicer acabou com qualquer hotel.

A quinta e nota final é a constatação da realidade insofismável que é o facto da Unicer continuar a recusar-se a responder à simples pergunta: vai ou não construir-se o "Hotel Siza Vieira" nas Pedras Salgadas, como se comprometeu e como a sua direcção anunciou publicamente? Se sim, quando começam as obras e quando se prevê que essa unidade hoteleira esteja em funcionamento? Essa é a única questão que, ao que julgo saber, os habitantes e os comerciantes das Pedras Salgadas gostariam de ver respondida. E eu também.

Ora a Unicer parece continuar a "assobiar para o lado" e a carta da senhora directora enreda-se (e procura enredar-nos) num linguarejar de matiz economicista, com toques de "responsabilidade social" que podem ir com o ar empresarial "modernaço" dos tempos, mas que não vão com a cara que a Unicer tem hoje perante as Pedras Salgadas.

E, já agora, é quase de gargalhada e ofensiva a ideia de irem "reabrir" o parque em Outubro. Em Outubro? No fim da época termal? Só se alugarem clientes... Depois, claro, quando se constatar o deserto de visitantes, mais fácil será argumentar que não há sustentabilidade para a existência de um hotel. Perguntem aos pobres proprietários dos restaurantes das Pedras Salgadas a sua opinião sobre esta "oportuna" abertura!

Quanto ao convite pessoal que a Unicer simpaticamente me faz para visitar os Parques, agradeço-o, mas não o aceito. O que eu pretenderia, como muita e muita gente que conheço, era que me fosse dado um endereço de e-mail ou um telefone que me permitisse marcar as minhas férias no "Hotel Siza Vieira", que a Unicer anunciou, com todas as parangonas, que ia construir no Parque Termal das Pedras Salgadas. Posso tê-los? Quando puder, eu acredito na boa-fé da Unicer.

Até lá, fico também à espera, com imensa curiosidade, das explicações da AICEP e da CCDRN relativas aos fundos de natureza pública de que a Unicer possa ter beneficiado para o projecto do Parque Termal das Pedras Salgadas e do modo como essas entidades apreciam o atraso na conclusão do que com elas terá sido acordado. Só assim terminará o "desconhecimento da situação" de que a Unicer me acusa mas que, pelos vistos, é partilhado por muito mais gente.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...