quarta-feira, janeiro 13, 2021

Pandemia (3)

No dia em que, em Portugal, morre uma pessoa a cada 10 minutos, vou deixar algumas frases que ouvi no último mês:

- “Mas que importância pode ter mais uma ou duas pessoas à mesa?”.

- “Então eu ia lá ter uma ceia de Natal sem os meus netos!

- “São nossos amigos, caramba! Gente que sabemos que se protege! Claro que podemos ir ao restaurante os quatro”.

- “Há limites para tudo! Alguns riscos temos de correr, senão damos em doidos!”.

- “É pá! Desculpa lá, mas é um exagero estarmos aqui na sala com máscara!

- “Não queres ir no carro connosco? Nem com máscara? Estás paranóico!

Pandemia (2)

É muito curioso que se diga que o governo errou ao tornar mais flexível o regime de deslocações e reuniões no período de Natal e, ao mesmo tempo, as autoridades sejam acusadas de não permitirem comportamentos com implicações positivas no funcionamento da economia. Em que ficamos? Confia-se ou não na auto-regulação?

Pandemia

Sente-se alguma desorientação oficial na questão da pandemia, aliás um pouco como acontece por todo o mundo. Para o comum dos cidadãos, resulta uma imagem de hesitação, que não favorece a aceitação das medidas. E o governo é "preso por ter cão, preso por não ter".

Militares americanos


Ver os comandos militares americanos a afirmarem o que afirmam neste comunicado é uma óbvia garantia para a democracia americana.

Porém, o facto de assumirem uma posição coletiva precisamente neste momento, quando a posse já não parecia oferecer quaisquer dúvidas, dada a consonância de todas as instituições, pode parecer desajustado a um corpo que está sujeito à tutela civil - e não o contrário.

O debate que faltou


Não foi uma surpresa constatar que a política externa está quase ausente do debate eleitoral. E não se diga que o papel do Presidente da República, no modelo constitucional semi-presidencialista que temos, não comporta uma dimensão externa importante, quer na área dos Negócios Estrangeiros, quer como comandante supremo das Forças Armadas.

Penso que é interessante poder garantir um largo consenso em torno das questões que se prendem com a dimensão internacional do país, retirando-as do terreno da polémica fácil. Nelas incluo a temática europeia, mas, igualmente, o papel das Forças Armadas e a nossa política de alianças.

Devo, contudo, dizer que acho bastante empobrecedor para o nosso debate político que as grandes questões que envolvem o lugar de Portugal no mundo, e as políticas públicas que lhe servem de suporte, escapem, por sistema, a uma análise substantiva de fundo. Porque isso só facilita que, por falta de uma consciencialização amadurecida sobre essas opções, esses temas sejam regularmente capturados por discursos marcados por uma ligeireza demagógica.

Os consensos, por muito desejáveis que sejam, não devem ser formados em torno de silêncios, mas devem surgir como a decantação de um debate plural, sobre se se deve seguir um caminho e não outro.

Nestas eleições presidenciais há um recandidato com larga experiência das questões externas, que maneja com grande facilidade. Há uma diplomata com uma vasta prática profissional e política. Estão igualmente presentes dois candidatos com assento no Parlamento Europeu.

Teria assim sido muito interessante ouvi-los discutir, desde logo, sobre se o modo como tem vindo a ser exercido, pelos sucessivos chefes do Estado, a competência de que dispõem na ordem externa é o correto ou se, afinal, essa intervenção deveria assumir outro formato.

Teríamos ganhado bastante se tivéssemos ouvido os candidatos falar do modo como Portugal deve atuar na Europa, do modelo institucional desta, da forma como olham a compatibilidade das soberanias nacionais com o projeto europeu, ligando isto às questões da livre circulação, à atitude perante os refugiados e os migrantes económicos.

E, como já se percebeu, não é indiferente quem esteja em Belém quando se trata de pensar nas nossas alianças preferenciais, num tempo de Brexit, nas prioridades a dar ao laço transatlântico, no maior ou menor empenhamento no espaço lusófono, mas também nesse eterno tema polémico que é o modo de enquadrar institucionalmente a vontade política da nossa diáspora.

terça-feira, janeiro 12, 2021

O Porto, claro!


Por razões lúdicas e profissionais, sou, de há muito, um utente da hospedagem portuense.

Às vezes, já tenho perguntado a mim mesmo onde é que, por lá (por aqui, porque estou hoje no Porto), já dormi. Hoje, decidi responder.

É claro que, noutros tempos, havia a casa do tio Óscar e da tia Maria, na Ramada Alta, quando vínhamos “aos especialistas” ao Porto.

Noutras vezes, houve a moradia do Eduardo Sá Carneiro, na Antunes Guimarães, com coleções do Tintin pelas estantes, que me faziam adormecer ao acordar do dia.

E também a casa do sogro dele, o professor Pedro Carvalho, e a dona Guiomar, em Oliveira Monteiro, com pequenos almoços cerimoniosos.

Desconto, naturalmente, o meu lar universitário por um ano na rua da Torrinha, umas noites avulsas, e convulsas, no lar Gomes Teixeira, na rua do Rosário, ou o ano passado na “casa da velha”, na Miguel Bombarda, no quarto alugado a meias com o Albano Tamegão.

E já nem conto, claro, a casa da Mariita e do Manel, na Senhora da Hora, de que cheguei a ter chave!

Ou a do meu primo Rui, na Foz, quando nos apetece, porque a família é “estar em casa”.

Apenas aqui quero falar das casas “tarifadas”, com contas redondas ao fim-da-manhã, sem afetividades nem confianças. Coisas de papel passado, com NIF e tudo!

A primeira casa desse género, de que me lembro, terá sido, porventura o “Solar da Conga”, no Bonjardim, uma sugestão (sinistra, diga-se) do Eurico Gama.

Tenho também uma leve memória de uma pensão nos Aliados, à direita de quem sobe, mas pode ter sido apenas um pesadelo.

Houve também, ao que vagamente recordo, uma albergaria (lembram-se do tempo das “albergarias”?), numa rua aos Poveiros, perto daquele estacionamento feiíssimo que por ali há.

Passados muitos anos, nos idos de 80, regressado de Angola, lembro-me de me ter alojado no “Méridien” (em que os portuenses teimam em acentuar a segunda sílaba), agora crismado de “”Crown Plaza”. Foi, ao que julgo, o primeiro sítio “sério” onde me alojei, pagando, no Porto.

Depois, a partir daí, foi uma imensidão!

Estive algumas vezes no “Hotel da Boavista”, tendo alternado entre uma ala antiga (“délabrée”) e uma ala nova (sem a menor graça).

A sorte levou-me depois, em diversas ocasiões, ao “Sheraton”, quer na sua encarnação na avenida da Boavista (hoje “Porto Palácio”), quer à sua (excelente) forma atual, ali ao pé, com o envidraçado algo erótico das casas de banho sobre o quarto.

Ainda na zona da Boavista, descontando o simpático mas incaraterístico “Bessa Hotel” e um (então abaixo do razoável, só com a vantagem de ter uma loja de chocolates Arcádia no rés-do-chão) “Portus Cale Boavista”, preferi várias vezes o quase vizinho “Hotel da Música”, integrado no mercado do Bom Sucesso, francamente bem melhor do que o “Hotel Tuela”, um clássico (muito triste, convenhamos) espaço ali “à beira”.

Não muito longe, no Campo Alegre, fiz os dois Ipanemas: o “Park”, uma das minhas hospedarias costumeiras (ainda na passada semana lá dormi), e o Ipanema Campo Alegre, simpático “ma non troppo”, apenas com a vantagem de ter o “Capa Negra” à mão de semear.

Mais junto ao Douro, o “Pestana”, frente ao cubo, já foi, durante anos, o “meu” hotel na cidade, não obstante o estacionamento quase impossível. Até lá tive um quarto preferido! Depois, o hotel “endoidou” nos preços e eu disse-lhe adeus.

A esse nível de dispêndio, passou a valer a pena o clássico “Infante de Sagres”, a que não voltei desde que foi remodelado, com medo de que mantenham o bar tão mal-tratado como da última vez em que por lá dormi: um susto!

Se quiserem uma experiência diferente (e mais não digo!), ali pela Restauração, quem desce do Hospital de Santo António para o Rio, experimentem a diversidade do “Torel”! Um chá na sala envidraçada, ao fim da tarde, pode ser um belo momento.

Outras experiências? O “Dom Henrique”, junto ao Silo Auto, sem o menor interesse, para além da vista magnífica do bar.

Cómodo, mas sem qualquer graça, é o “Vila Galé” da Fernão de Magalhães. Várias vezes lá fiquei, numa delas no andar de topo, com uma vista soberba sobre a cidade. Mas foi tudo o que dali me ficou.

Numa das ocasiões em que dormi no “Intercontinental”, no passeio das Cardosas, no fundo da Praça Dom Pedro IV, no fundo dos Aliados, recordo que me saiu em rifa um quarto de esquina (sobre a estação de São Bento, a 31 de janeiro/Santo António e a praça), com uma vista deslumbrante. Mas aqueles corredores sem gente lembravam-me, sinistramente, o “Shinning”!

E mais? Dormi também num “Porto Trindade”, bem simples, numa noite em que cheguei inopinadamente de Paris.

Também pernoitei num “Vila Galé Ribeira”, de que me não queixo, entre a Alfândega e Massarelos.

E de duas noites no Eurostars Centro, junto à Brasileira (avisaram, mas eu não acreditei, que, a partir das oito horas, a classe operária entrava em ação numa obra vizinha!).

Mais recentemente, tive uma experiência, bastante agradável, no renovado Grande Hotel do Porto, em Santa Catarina.

Mas é isso “apenas” que conheces do Porto, estarão a perguntar-se os meus amigos, alguns “da onça”? 

Mas há coisas que ainda não conheço, desculpem lá! Confesso que ainda não dormi no luxuosíssimo Monumental dos Aliados, no Pestana da Brasileira, no Porto Bay das Flores (nem no Porto Bay Teatro, não obstante o clamor do meu amigo e proprietário Bernardo Trindade), nem no Vila Foz, na Foz, de que muito me falam agora.

Imperdoável, já sei!, é não ter nunca ficado do Yeatman, em Gaia, onde já refeiçoei algumas vezes, mas que acho muito caro.

Mas, já que falamos em “arredores”, anoto que pernoitei várias vezes no “Palácio do Freixo”, no dito Freixo, e, para nunca mais, no “Sea Porto”, em Matosinhos, um falso “quatro estrelas”.

Mas o que é que estás a fazer agora no Porto?, perguntava-me um amigo curioso, há pouco. Onde estás a dormir?

Muito simplesmente, no “Eurostars Heroísmo”, na rua com o mesmo nome, naquele que é o meu pouso preferido no Porto, sem arrebiques nem pretensões, um quatro estrelas que, de há muito, considero a melhor relação qualidade-preço da cidade e arredores. E não me fazem o menor desconto por estar aqui a fazer publicidade deles! A sério!

O “Eurostars Heroísmo” (na imagem) tem uma garagem soberba, fica bem perto da da estação ferroviária de Campanhã e a dez metros (juro!) de um dos melhores lugares para se comer no Porto - a “Cozinha do Manel”, do meu amigo José António. O hotel fica também a cinco minutos de carro do meu local de trabalho no Porto.

E, se quiserem, há outras opções restaurativas por ali, como a “Casa Nanda”, na rua da Alegria. E ainda sobram saudades da “Casa Aleixo”, no fundo da rua.

Se acaso ainda não estiverem satisfeitos, peçam-me mais: poderei dar ainda alguma dicas mais sobre onde dormir bem no Porto! Conheço “mal” esta bela cidade, como repararam, mas farei um esforço!

segunda-feira, janeiro 11, 2021

François Mitterrand


François Mitterrand morreu há 25 anos, depois de 14 anos consecutivos como presidente da França. Homem da IV República, onde teve cargos de governo, foi um dos mais ferozes opositores de De Gaulle, a quem forçou a uma segunda volta numas eleições presidenciais.

Desprezava a V República, mas esta assentou como uma luva ao seu estilo “royaliste”. Manipulador, sedutor, excelente escritor, cínico, culto, inteligente e matreiro, entre tantas outras muitas qualidades e grandes defeitos, veria o termo do seu tempo político marcado por acusações de ligação premiada ao colaboracionismo, ele que, paradoxalmente, também tinha “medalhas” de resistente, bem como pela revelação da existência de uma filha tardia, fora do casamento, o que acabou por humanizá-lo.

Há dias, pela Amazon, encomendei um livro sobre Mitterrand, editado em 1988, que ainda não conhecia. Não me canso de ler sobre ele e sobre o tempo que protagonizou. Visitei a terra onde foi eterno presidente da Câmara e estive no seu túmulo, mas, estranhamente, estou muito longe de ser um admirador fascinado dessa que foi uma das figuras mais complexas da vida política francesa.

Um dia, na única viagem que fiz com o casal Mário Soares, durante cerca de uma semana, em finais de 1995, com Mitterrand fora do Eliseu e já muito doente, o seu nome veio à conversa. Mário Soares, que o tinha como amigo, disse dele coisas muito simpáticas, contando algumas histórias, que infelizmente esqueci. Notei então a cara fechada de Maria Barroso. Claramente, não comungava a leitura que o marido fazia da personalidade de Mitterrand.

Passaram uns anos, oito ou nove. Uma noite, em Viena, tive Maria Barroso a jantar, em minha casa. Entre vários assuntos, falou-se de Mitterrand. Constatei, de novo, que a sua atitude não era muito positiva sobre a personagem. No final da refeição, puxou-me à parte e, com a firmeza de quem tinha ideias muito próprias e não gostava de deixar dúvidas sobre elas, disse-me o que pensava sobre François Mitterrand. Só posso dizer que não coincidia com a perspetiva do seu marido. E explicou-me porquê. Mas isso não vem aqui para o caso.

A terminar, deixo uma frase de Mitterrand, uma curiosa leitura do “mosaico” francês, num improviso de 1987, onde “nós” também estamos: “Nous sommes français, nos ancêtres les gaulois, un peu romains, un peu germains, un peu juifs, un peu italiens, un petit peu espagnols, de plus en plus portugais, peut-être, qui sait, polonais, et je me demande si déjà nous ne sommes pas un peu arabes."

domingo, janeiro 10, 2021

Bom senso?

Parece que faz parte do discurso político afirmar que se “confia” no bom-senso dos portugueses, para gerirem, com a necessária prudência, o seu comportamento social neste tempo de pandemia.

É uma perfeita hipocrisia estar a dizer isto! Todos sabemos que isto é falso!

No que me toca, e pelo que tenho visto por aí, não tenho a mais pequena confiança no bom-senso ou na prudência dos portugueses. Mais: os números mostram-me que tenho todas as razões para não confiar. E quem me está a ler sabe que isso é assim.

Mas todos já percebemos que não há coragem, por parte do poder político - do presidente ao governo e aos partidos - para dizer, alto e bom som, esta simples verdade: há imensos cidadãos portugueses que são uns completos irresponsáveis, que, por egoísmo ou inconsciência, adotam comportamentos que põem em risco a sua saúde e a dos outros, assim contribuindo para a crescente pressão sobre os serviços públicos de saúde, atrasando a recuperação da normalidadade da vida social e económica do país.

“Observare”


Quem se interessar pode ver aqui a edição desta semana do programa de relações internacionais “Observare”.

Em menos de 40 minutos, analisamos a situação nos Estados Unidos e o acordo entre a União Europeia e a China. Em termos mais breves, falamos de outros seis temas de relevância internacional e até deixamos uma sugestão de um filme.

Quem quiser contactar-nos, com críticas, ideias ou até elogios, esteja à vontade para o fazer para observare@tvi.pt

O avental do “Petróleo”


Não recordo onde é que o José Guilherme Stichini Vilela, “ministro-conselheiro” na embaixada em Luanda, terá desencantado a figura do “Petróleo”. A verdade é que foi ele o cozinheiro que passou a trabalhar no apartamento que, a partir de 1982, o Zé Guilherme ocupou na avenida 4 de fevereiro, em frente à baía de Luanda. O Zé Guilherme, um querido amigo, já se foi há alguns anos.

O “Petróleo”, nome cuja origem também desconheço, era um homem sempre sorridente, o que não era de estranhar: o Zé Guilherme pagava-lhe muito bem, acima da “tabela”, oferecia-lhe imensas coisas e, por isso, ele andava imensamente contente. Falava muito mal português. Como alguns dos nossos jogadores de futebol, identificava-se na terceira pessoa: “O ‘Petróleo’ foi ontem ao mercado...” Ensinado pelo Zé Guilherme, o “Petróleo” fez-se, com o tempo, um excelente cozinheiro.

Uma noite, o Zé Guilherme organizou, na sua sala com varanda sobre a avenida, um largo jantar para alguns dos muitos amigos que tinha em Luanda. Para além dos “habitués” da embaixada, com o embaixador Pinto da França à cabeça, dessa vez era gente um pouco mais velha do que o habitual, com alguma cerimónia, casais da antiga sociedade portuguesa que permanecia nessa Luanda recém-independente - Pedro da Cunha, Chico Neto, etc. E, claro, o Fernando Valpaços, a Lacas, a Ana Poppe, com certeza também o Vasco Correia Mendes.

O “Petróleo” servia pela sala, envergando nessa noite um belo avental, com o clássico moto “Kiss the cook” (beije o cozinheiro), então muito em voga nos países anglo-saxónicos, uma oferta que o Zé Guilherme tinha recebido conjuntamente com uma assinatura anual da “Time”.

Não sei em que ponto do jantar é que começaram os sorrisos. À passagem do “Petróleo” entre as mesas e os sofás, notaram-se, a certa altura, alguns sussurros. De início era murmúrios, com risadas, ao ouvido dos vizinhos. Partiu de uma das mesas, depois a onda sorridente espalhou-se pela sala, acelerando a cada passagem do empregado. Algumas das senhoras presentes, da Lilita à Sofia ou à Maria do Céu, notavam os rumores, mas, aparentemente, não entendiam o que se passava. Outros, os alertados, optavam por nada lhes dizer. A certa altura, avisado por alguém, o Zé Guilherme zarpou para a cozinha, na peugada do “Petróleo”. E lá resolveu o “assunto”!

Mas, afinal, o que é que se tinha passado? Nada de mais, na minha opinião! Um dos convidados, de que a História não acolheu o nome, numa sortida à cozinha, terá convencido o bom do “Petróleo” a deixar fazer, no seu avental, uma pequena e rápida operação, com um daqueles sprays brancos para tirar nódoas, promovendo uma ligeiríssima alteração na segunda letra “o” da palavra “cook”, transformando-a num “c”. Apenas isso!

Não me consta que, nessa noite, se tenha descoberto quem foi o autor da marosca. A mim, o “Petróleo” tinha-me prometido não revelar o nome do “artista”...

sábado, janeiro 09, 2021

Graça


Há dias em que podemos achar alguma graça aos “fachos”.

Saudades de Trump


Vou ter saudades do Trump: teve o considerável mérito de me pôr de acordo, nos últimos quatro anos, com gente de quem discordo em praticamente tudo o resto.

“Observare”


Com o confinamento, não há desculpas para não verem, na TVI 24, deste sábado para domingo, como habitualmente depois do noticiário da meia-noite, a edição desta semana do “Observare”, programa de análise das questões internacionais. Lá estarei, com Carlos Gaspar e Luis Tomé, sob a moderação de Filipe Caetano.

Como é evidente, começaremos pela situação americana, mas daremos igualmente destaque ao acordo económico entre a União Europeia e a China. Pela minha parte, falarei da crescente repressão às liberdades em Hong Kong e da distensão em torno do Qatar, depois de três anos de bloqueio por parte do seus vizinhos, liderados pela Arábia Saudita.

A partir de agora, o programa passa a ter uma “caixa” para comentários, sugestões e críticas. Quem nos quiser contactar pode fazê-lo através do endereço de email observare@tvi.pt .

Samuel Pisar


Há dias em que, por precipitação, falamos demais. Em 2012, num jantar em Paris (alguns comentadores acham que a vida dos diplomatas é feita de jantares: é verdade, os diplomatas têm o hábito, quiçá excessivo, de jantar uma vez por dia), fiquei sentado próximo de um cavalheiro, já de certa idade, que, em determinado momento, e tendo sabido que eu era português, se referiu a uma homenagem que iria ser prestada, na UNESCO, a Aristides de Sousa Mendes.

Revelou-me estar envolvido na organização e eu congratulei-me com isso, tanto mais que, como o informei, tinha acabado de acumular o lugar de embaixador português em França com o de representante junto da UNESCO e, naturalmente, também ia colaborar no evento. Porque, à mesa, havia uma senhora de permeio e porque ele falava em voz bastante baixa, não tinha ouvido bem o seu nome.

A certo passo da conversa, ainda sob o tema Portugal, passando a voz à frente dessa senhora, perguntou-me por Mário Soares e pela sua "simpática esposa", que ele conhecia bem. Disse-lhe as últimas notícias que sabia de ambos (eram vivos, à época), tendo ele acrescentado: "Um livro meu tem um prefácio de Mário Soares".

Com um orgulho algo adolescente (cada vez mais me convenço que "adolescemos" com a idade), saiu-me de imediato: "Tem graça! Eu também tenho um livro prefaciado por Mário Soares". Sorrimos e o jantar lá prosseguiu.

Minutos depois, perguntei discretamente à senhora que se interpunha entre mim e o tal cavalheiro, já octogenário: "Tem ideia de como se chama o seu vizinho do lado? Não consegui ouvir o nome dele...". A senhora, creio que olhando para o pequeno papel que, na mesa, identificava o conviva, disse, baixo: "Samuel Pisar".

Tive um baque! Samuel Pisar? "O" Samuel Pisar, nascido na Polónia, que estivera detido em Auschwitz e em vários outros campos de concentração, que escapou miraculosamente das garras de Mengele e de outros cenários de horror, cujo pai fora morto pela Gestapo?

"O" Samuel Pisar que, no fim da guerra, se formara em Oxford e na Sorbonne, e que, naturalizado americano, dera aulas em Harvard e fora assessor económico de John Kennedy?

Olhei de viés e, com uma curiosidade acrescida, procurei estar atento a algo que ele dizia para o outro lado da mesa. Nada de decisivo: apenas elogiava a textura dos espargos que estavam a ser servidos, porque então era a época deles.

A casa era magnífica, de um galerista, cujo nome perdi, um conhecimento que herdara do meu antecessor, António Monteiro. Era um andar perto no Quai d’Orsay, curiosamente com um grande quadro de Paula Rego, uma pintora que Paris teima em desconhecer. No final do jantar, num canto da sala de estar, aproximei-me de Pisar. Falámos, recordo, da Europa e do lugar de Portugal nela. Nada de que tenha guardado a menor nota.

Samuel Pisar era, à época, um senador de uma vida que, como poucos, soube recriar a partir da barbárie e que um dia, escreveu: "Hoje, sobrevivente dos sobreviventes, sinto uma obrigação de transmitir algumas verdades que aprendi na minha passagem pelo mais baixo da condição humana e, depois, por alguns dos seus momentos altos". Li isto num livro dele, que comprei, dias depois.

Nunca me perdoarei do facto de, inadvertidamente, ter "rivalizado" com Samuel Pisar, ao reivindicar ter, como ele, um prefácio de Mário Soares. Ou melhor, e pensando bem, talvez tenha a obrigação de ficar contente por poder ter, com ele, esse honroso ponto em comum.

Por que razão falo agora de Samuel Pisar, que morreu já em 2015? Porque, há dias, dei-me conta de que era padrasto de Anthony Blinken, que vai ser o futuro Secretário de Estado americano, isto é, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Joe Biden. Até saber isto, perguntava-me por que luas Blinken falava tão bem francês. Agora percebi: a sua mãe, Judith, vivia em Paris e foi a segunda mulher de Pisar. A senhora devia estar do outro lado daquela mesa, nesse jantar. 

sexta-feira, janeiro 08, 2021

America! America!

 


Conversa com António Freitas de Sousa para o “Jornal Económico”. Aqui

Um caracol


“Eu, pelos olhos, topo logo”. Imerso no iPhone, não percebi. “O senhor está cansado, não está?” Olhei, pelo retrovisor dele, o motorista do Uber, no Porto, com curiosidade. O trajeto era pequeno, mas via-se que estava ali um filósofo, daqueles que não se calam.

Há dias em que estou com paciência para conversar com motoristas, em que sou mesmo eu quem puxa a conversa, outros há em que, depois da saudação de entrada, fico na minha concha e cumpro os mínimos na interlocução. No Porto, já aprendi que ganho sempre em falar com eles.

O da manhã de ontem, simpático e tagarela, tinha uma teoria: “As máscaras não deixam ver as caras, as bocas e os lábios. Mas eu ando-me a ‘especializar’ em olhos. Já notei que, quando as pessoas estão chateadas ou preocupadas, os olhos fecham-se mais, não acha?”

Disse-lhe que não tinha nenhuma doutrina sobre isso, mas, à laia de comentário intimista, disse que, a mim, este tempo de máscaras criava-me, cada vez mais, a curiosidade em tentar perceber, pelos olhos, se uma mulher era bonita ou não.

O que eu fui dizer! O motorista filósofo deu um salto de contentamento, lá no banco da frente, ao ter tema comum comigo. E contou-me: “Há dias, apanhei uma senhora no Bolhão para o Palácio. Já nem era nova. Mas que olhos! O senhor nem imagina! Passei a viagem a olhar para ela, pelo espelho. Até fiquei preocupado que ela notasse. Quando a deixei, fiz de propósito e fiquei parado. Vi-a tirar a máscara. Afinal não valia um caracol!”

quinta-feira, janeiro 07, 2021

O frio de Vila Real


Dizem-me que esteve ontem um forte chiasco, em Vila Real. Lembrei-me então desta história.

Um dia de março de 1971, ao passar pela Place da la Nation, em Paris, onde tinha aportado por uns dias, num turismo baratucho que conseguia fazer nesse tempo, dei de caras com um antigo colega de Vila Real, que sabia ter saído “a salto” de Portugal e a quem tinha perdido, por completo, o rasto.

Era um tipo alto, com raízes em Bragança e com quem, curiosamente, me cruzara também em algumas férias em Viana do Castelo. Não éramos íntimos, mas éramos amigos.

Fizemos aquela festa tradicional, típica de dois transmontanos que se prezam. Generoso, convidou-me a ir beber uma cerveja à sua casa, ali perto.

Foi-me contando que tinha um emprego em que lavava janelas a partir das seis da manhã (“não é nada mal pago, sabes?, mas é muito chato ter de sair de casa às quatro!”). Em fins de tarde, aproveitava para assistir a uns cursos livres na Universidade de Vincennes. “A vida há-de mudar!”.

Sem dizer expressamente, deu-me a entender que era militante de um partido político português (na clandestinidade, claro, porque todos o estavam), o que conteve a minha curiosidade inquisitiva sobre mais aspetos da sua vida em Paris. Anos mais tarde, encontrei-o numa bancada de vendas, numa Festa do Avante.

Subimos ao apartamento onde vivia, uma sala e um quarto, num 4.º andar sem elevador, com uma cozinha a meias com um argelino, de onde chegava um cheiro menos convidativo a comida, que se espalhava por toda a parte.

O problema é o frio. A casa não tem aquecimento. Temos de pôr aquecedores, mas a eletricidade é cara. Às vezes, vou para a cama mais cedo, só para me aquecer.

E, num tom mais triste, com aquela saudade que a minha presença lhe trazia, acrescentou: “Queres saber uma coisa? Lá em Vila Real, parece que o nosso frio era diferente.

Pois era. O frio da terra portuguesa, para quem sofria a distância e a tragédia da emigração e do exílio, tinha outro calor.

quarta-feira, janeiro 06, 2021

Juan Carlos


Fez ontem 83 anos. A Espanha deve-lhe a inesperada sabedoria com que geriu a transição, que pode ter evitado uma sangrenta tragédia. Alguns dirão: mas o que ele fez, mais tarde, foi de imensa gravidade, maculando essa imagem. É verdade, mas cada tempo é um tempo, uma coisa não apaga a outra. Eu, que não sou espanhol, pelo que me não cabe conferir os saldos dessas contabilidades históricas, quero apenas recordar o grande amigo de Portugal que Juan Carlos sempre foi. E deixo esta imagem, bem elucidativa, que, há dias, passou nas televisões, de um dia em que entregou a Taça do Rei a Futre. No que o rei ali disse, está tudo dito. Que é apenas o que me interessa, a razão por que aqui o trago.

Só falam da América!


Há dias, depois de mais uma edição de um programa de comentário internacional em que regularmente intervenho na TVI 24, um conhecido interpelou-me: “Por que é que vocês só falam da América?”.

Não é só da América que falamos mas, na realidade, o tema está muito presente em todas aquelas nossas conversas.

Trump, Biden, as relações de Washington com a Europa e com a China, o seu papel na NATO, o comportamento face à ONU e ao mundo multilateral em geral, o relacionamento com Moscovo, o posicionamento no xadrez do Médio Oriente - caramba!, de facto, estamos sempre a falar da América!

E, no entanto, tem mesmo de ser assim. Os Estados Unidos da América, para além do folhetim, entre o trágico e o divertido, em que a sua vida política interna recente se converteu, graças a um presidente bizarro, são, de há muito, um poder omnipresente pelo mundo. Às vezes, são um poder constrangente, que força a vontade alheia, outras vezes, a maioria delas, são um poder condicionador, que influencia o modo como os outros gerem a sua própria realidade.

Os EUA tanto são notícia por aquilo em que imiscuem, como o são pelo modo próprio como decidem abandonar esses cenários. Elefante em loja de porcelana, a América, pelo seu poder, não deixa ninguém indiferente. Se bem repararmos, é na reação assumida perante os EUA que o mundo se define, que se fica a saber de que “lado” está cada um.

Sei que esta é uma perspetiva que não agrada a muitos que, por boas ou más razões, são críticos dos Estados Unidos e consideram que não é saudável, para uma ordem internacional que idealmente se quereria mais equilibrada, ter esta dependência, quase obsessiva, do poder americano.

Muitos acham que, podendo ter tido alguma justificação que as coisas assim fossem durante a Guerra Fria, com um poder anti-democrático hostil do outro lado do muro, não subsistem já razões para nos mantermos sob a “paternal”, mas menorizante, tutela americana.

Outros, porém, receosos da força crescente da China, embora menos pela ameaça militar e mais pelo seu peso económico, terão ali encontrado uma justificação para voltar a recriar uma “América & os seus amigos”, para se oporem ao “perigo amarelo”, uma expressão desenterrada dos tempos em que o politicamente correto não limitava a nossa diversidade semântica.

A questão, como sempre, é o poder. Mas é também a vontade, porque metade do poder dos outros advém da maior ou menor facilidade com que deixamos manipular a nossa própria vontade.

terça-feira, janeiro 05, 2021

Aqui chegámos!

 


Debates

Não vi, até agora, nenhum dos debates entre candidatos presidenciais. Nem um segundo, de qualquer deles. Mas tenho lido relatos de como as coisas se têm passado. 

Nas últimas eleições presidenciais, há cinco anos, dei-me ao luxo de não ver qualquer debate. 

Não será o caso deste ano, em que tenho a intenção de ver três debates. Mas só três.

Portugal, o Brasil e a Europa



“Portugal, o Brasil e a Europa” foi o subtítulo que dei a um livro que publiquei em Brasília, em fins de 2008, com o nome de “Tanto Mar?”, antes de trocar aquela cidade por Paris. É também uma frase que sintetiza a Presidência Portuguesa da União Europeia de 2007, vivida no Brasil.

Teve imensa graça organizar a presidência portuguesa, como embaixador português em Brasília. Foi interessante fazer subir, durante esses seis meses, um “zeppelin” (na imagem) iluminado nos céus da cidade plana, com as cores da nossa presidência, assinalando o local de Brasília onde, num determinado dia, ocorria um evento cultural português: fosse uma sessão de teatro, uma exibição de cinema, um espetáculo de música, um debate, uma leitura de poesia.

Neste caso, aliás, a poesia podia nem sequer ser portuguesa. Na sede do Instituto Camões, na embaixada de Portugal, em algumas das 26 semanas que o semestre tinha, houve sessões dedicadas à poesia dos 28 países da União, com leitura de textos de poetas das várias nacionalidades, traduzidos em português, ditos por atores, que se passeavam entre as mesas dos convidados ao “Café Camões”, com doçaria portuguesa à mistura. 

E, a abrir o semestre, o grande teatro nacional de Brasília esteve a rebentar pelas costuras, com a voz de Marisa e encher-nos a sala, de gente e de orgulho. Adriano Jordão, nosso conselheiro cultural, foi o obreiro dessa grande e quase esgotante operação cultural, em que toda a embaixada muito se empenhou. Foi muito agradável representar Portugal nesses dias, como o foi constatar que foi possível fazer tudo isso quase sem gastos acrescidos para o erário público, sabiam? 

O Brasil de então estava muito interessado na Europa. E a Europa olhava para o Brasil com imensa atenção. Porque às atenções mútuas interessava dar um corpo institucional, bastantes meses antes, ainda durante a presidência alemã, Portugal apresentou em Bruxelas a proposta de que ao Brasil fosse concedido, pela União Europeia, o estatuto de “parceiro estratégico”, o estádio mais elevado de interlocutor externo que a União podia conceder. O Brasil passaria a ombrear com o EUA, a Rússia, a China, o Japão, o Canadá e a Índia (este também por proposta portuguesa, em 2000, como já aqui contei), os únicos Estados a quem esse estatuto era concedido, com o que isso representava de consultas regulares, com cimeiras a nível elevado.

A proposta portuguesa, cujo desenho inicial emergiu da equipa da embaixada portuguesa em Brasília, depois desenvolvido de forma altamente profissional pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros português e pela nossa Representação Permanente em Bruxelas, não teve um caminho fácil, nos corredores europeus. Desde logo, porque havia outros parceiros que, manifestamente, gostariam de ser titulares da ideia. Outros entenderam que, ao dar aquele destaque ao Brasil, a União poderia estar a transmitir um sinal de menor atenção a outros Estados, nomeadamente na mesma área regional - mas não só. Ultrapassar essas dificuldades, por vezes traduzidas num “arrastar de pés” até que tudo se atrasasse irremediavelmente, foi uma tarefa política e diplomática muito complexa, que, em Brasília, íamos acompanhando de forma interessada. 

Mas, também ali, a iniciativa portuguesa não tinha uma leitura unívoca. Setores havia, do lado brasileiro, que teriam apreciado bastante mais que uma iniciativa desse género, não obstante ser sempre desejável no plano dos princípios, tivesse sido titulada e apadrinhada por um grande poder europeu e não por um “parente”, que parecia estar a usar o “primo” transatlântico na moda, para se mostrar importante no seio do seu “clube”. 

Mas o mal-estar não acabava aí. Com impactos da imprensa, o destaque dado ao Brasil pela União Europeia estava a criar “ciúmes” no âmbito do Mercosul, que tinha em curso a, então arrastada, negociação comercial com a União e que interpretava a relação privilegiada com o Brasil como uma “ultrapassagem” indesejável. As próprias autoridades brasileiras estavam a sentir essa reação, o que nos levou a algumas iniciativas. 

Desde logo, com a ajuda da delegação local da Comissão Europeia, chefiada pelo português João Pacheco, organizámos uma reunião com a imprensa, explicando uma coisa muito simples: nenhuma das dimensões substantivas que faziam parte do futuro acordo UE-Mercosul - basicamente assente no comércio, serviços e investimento - fazia parte da “parceria estratégica” que tínhamos desenhado para o Brasil. Não havia a menor contradição entre ambas as iniciativas.

Mas as preocupações do Mercosul não pareciam abrandar. A minha colega Luísa Bastos de Almeida, embaixadora em Montevideu, deu-me conta de alguma inquietação que atravessava a instituição, que aí tinha a sua sede. Tomei a decisão de me deslocar ao Uruguai e, graças à intervenção da minha colega, tive oportunidade de me dirigir às instâncias do Mercosul, explicando em detalhe o que nos propúnhamos fazer e o não fundamento de tais preocupações. Foi uma charla, seguida de debate, no fim do qual, confesso, fiquei com vontade de falar (bem) melhor espanhol...

Lula seria recebido em Lisboa com todos os “grandes” da Europa à sua volta. Declinei o simpático convite, que recebi do governo, para estar em Portugal nessa ocasião. A minha Presidência era em Brasília, e a festa foi rija aí, com uns belos seis meses de trabalho.

Era esta a história - a terceira, das três presidências portuguesas que testemunhei - que queria contar.

segunda-feira, janeiro 04, 2021

Francisca


Eles aí estão, Francisca! Tu sabias que, cedo ou tarde, qualquer coisa mais viria por aí. Já tinha havido ameaças, alguns golpes baixos. Passaram dessas outras vezes, mas anunciava-se o seu regresso. Foi isto agora, como podia ter sido qualquer outra coisa. Primeiro, foi a legalidade da decisão que tomaste, que, sendo uma opção institucional debatível, foi de uma legitimidade cristalina. Como eles bem sabem, embora façam de conta que não. Depois, foi o desforço, apoiado nos vícios de forma que uma incúria te induziu a titular, embora todos se esqueçam de dizer que isso, em nada, influenciou o desfecho do assunto. Mais vem por aí, com insinuações medíocres, porque agora vale tudo! O que é preciso, até ao ranger da última porta, é tentar usar todas as alavancas para conseguir obter, por desgaste, neste tempo eleitoral polémico, aquilo que não foi obtido num outro voto. Pela tua vida, bem sabes, Francisca, talvez bem melhor do que quem quer que seja nesse governo de que acedeste a fazer parte, sacrificando uma carreira quase ímpar, que a política tem regras muito cruéis. Sentiste isso desde muito cedo, noutras geografias, em tempos de tragédia. Agora, neste outro tempo, que já é de farsa, sei que isso te blindou para a intriga, embora, atenta a tua sensibilidade, possa não te ter vacinado contra a mágoa. Aconteça o que acontecer, os que te conhecem, e são muitos, os teus amigos e os que, não o sendo, conhecem a tua integridade, sabem bem que a tua ética e o teu sentido de serviço público pairam muito acima da espuma lamacenta destes dias estouvados. O resto, Francisca, é isso mesmo: é o resto!

domingo, janeiro 03, 2021

O caso austríaco


Como prometido, deixo uma história da nossa presidência europeia de 2000.

Recordo-me do assunto ter sido abordado à margem do Conselho Europeu de Helsínquia, no termo de 1999. A hipótese dos conservadores austríacos poderem vir a fazer uma coligação com o partido de Jörg Haider, o FPÖ, com notórias marcas de extrema-direita e com inequívocas declarações filo-nazis por parte de alguns dos seus dirigentes, começava a ser falada.

Em janeiro de 2000, enquanto eu andava numa roda-viva, entre capitais europeias, para conseguir apoios para um alargamento da agenda da Conferência Intergovernamental, que iria rever o Tratado de Amesterdão, que nos permitisse obter do Parlamento Europeu o necessário “avis conforme” prévio ao arranque dos trabalhos, começou a gerar-se, entre os dirigentes políticos europeus, um profundo mal-estar em torno daquela opção austríaca. Franceses e belgas eram os mais vocais, muito por virtude dos seus próprios problemas internos, onde o exemplo da Áustria poderia “normalizar” a ascensão dos seus partidos de extrema-direita.

No dia 28 de janeiro, em Estocolmo, fui acordado com o anúncio da concretização da coligação. Apanhado no hall do hotel pelos jornalistas que me acompanhavam nesse périplo, fiz uma declaração cautelosa: “Estamos bastante preocupados, mas é muito importante olhar agora com cuidado o programa da nova coligação, a fim de verificar se infringe os compromissos austríacos subscritos no seu acesso à União”.

Viajei de Falcon, a caminho de Madrid, e quando pousámos na capital espanhola, ainda na pista, tinha uma chamada telefónica de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros.

Disse-me para, depois da reunião que eu iria ter com o meu homólogo espanhol, falar à imprensa, em nome da presidência portuguesa, tomando uma atitude bastante mais firme do que aquela que eu próprio assumira nessa manhã, que estava a ser lida, em certos meios europeus, como uma relativa contemporização da presidência portuguesa face ao anúncio austríaco.

“António Guterres quer que você assuma uma tomada de posição muito forte, de rejeição aberta da fórmula governamental austríaca”, disse Gama. Tinha de ser eu a fazê-lo, porque fora eu quem tinha sido “soft”, ainda nessa manhã. A verdade é que eu tinha dito o que disse apenas porque desconhecia até onde Lisboa estava disposta a ir. Em cerca de cinco anos e meio de governo, deve ter sido essa a única ocasião em que me foi pedido, por Guterres e Gama, para ter uma posição mais à esquerda...

Mal eu tinha acabado a conversa telefónica com Gama, o embaixador português em Madrid aproximou-se. Trazia um recado do meu colega espanhol, Ramón de Miguel, com quem eu iria reunir dentro em pouco: informava-me que, numa sala do Palácio de Santa Cruz, as Necessidades espanholas, me aguardava a nossa colega austríaca, a até ali secretária de Estado Benita Ferrero-Waldner, que tinha vindo secretamente a Madrid. Benita fora já anunciada como nova ministra dos Negócios Estrangeiros do novo governo de coligação. Assim, e ainda antes de encontrar o meu homólogo espanhol, eu teria de ter essa conversa.

Conhecia muito bem Benita Ferrero-Waldner. Tinha-a tido como hóspede oficial em Lisboa, tinha estado em Viena a seu convite, havíamos criado uma relação muito agradável, ao longo dos últimos anos. Recebeu-me com um imenso sorriso, começando por dizer que a minha declaração, nessa manhã, em Estocolmo, em nome da presidência portuguesa, fora muito bem acolhida pelo novo primeiro-ministro, Wolfgang Schüssel. Mal ela sabia que eu tinha acabado de receber instruções para endurecer esse discurso!

Nos minutos que se seguiram, Benita deve ter percebido que alguma coisa tinha entretanto mudado. Elenquei, com ar já mais pesado, as dificuldades crescentes que estavam a surgir, um pouco por toda a Europa e a necessidade que Lisboa estava a ter de federar uma posição “a catorze”, que seguramente não iria ser muito agradável para Viena. Imagino que, na conversa, possa ter prometido fazer o meu melhor, mas a minha margem de manobra era muito apertada.

A minha colega mostrou-se desolada: tinha colocado toda a esperança na minha declaração e, agora, via-me a afastar-me dela. Lembro os seus olhos cheios de lágrimas, quando me dizia: “Francisco. Tu conheces-me a mim e ao Wolfgang, sabes que não somos fascistas!”

Saí dali para a reunião com Ramón de Miguel, que me parecia ter dito a Benita coisas um pouco mais simpáticas do que as que eu acabara de lhe dizer. Seguiu-se uma conferência de imprensa, na qual, na sequência das instruções recebidas, endureci fortemente o discurso. Os três jornalistas que comigo viajavam, e que desconheciam (e continuariam a desconhecer, até ao final da viagem) o meu encontro secreto com a recém-indigitada ministra austríaca, mostravam-se siderados com o meu novo tom.

Nos dias seguintes, o nosso governo, em Lisboa, viveu sob pressão forte de alguns dos seus pares. Chirac telefonou várias vezes a Guterres, Védrine a Jaime Gama e eu procurava fugir às pressões constantes do meu contraparte, Pierre Moscovici. Outros governos europeus subiram de tom contra Viena.

Guterres e o seu gabinete coordenaram habilmente a posição dos “catorze”, que culminou numa declaração conjunta. Escassos dias depois, coube-me defender, num debate muito intenso no Parlamento Europeu, dessa vez em Bruxelas, essa posição condenatória da Áustria. Jean-Marie Le Pen tomou-me, na ocasião, como alvo da sua violenta intervenção, tendo a minha resposta sido apoiada, entre outros, pelo centrista francês, François Bayrou, que se colocou abertamente a meu lado no debate. Um dia, em Paris, tive ocasião de agradecer pessoalmente a Bayrou esse apoio.

Guardei para sempre, nessa sessão, a pusilânime posição do presidente da Comissão, Romano Prodi, a querer estar “de bem com deus e com o diabo”. E não esqueci a solidariedade do comissário britânico Niel Kinnock, que atravessou o hemiciclo para me dar um abraço, dizendo que queria que eu soubesse que não se revia na atitude do presidente Prodi. Foi um dia difícil, que acabou numa animada entrevista, com Jeremy Paxton, no “Newsnight” da BBC TV.

Nos meses seguintes, a preocupação de Portugal, enquanto presidência europeia, foi tentar evitar que a nossa agenda de trabalhos pudesse ficar refém do problema austríaco. Tínhamos de garantir à Áustria o exercício pleno dos seus direitos como Estado membro, mas igualmente nos competia, em nome dos restantes “catorze”, objetivar uma forte e constante pressão política perante Viena.

Recordo o primeiro Conselho “Assuntos Gerais” em que Benita Ferrero-Waldner participou, em Bruxelas. Entrou na sala e, praticamente, com duas ou três exceções, ninguém a cumprimentou. E todos a conheciam bem do passado. Ostensivamente, levantei-me do meu lugar de representante de Portugal (Jaime Gama estava a presidir à sessão) e saudei-a. Gama fá-lo-ia, quando Benita passou por ele. Anos depois, num jantar privado, quando vivia em Viena, Benita, que veio a ser comissária europeia e muito nos ajudou a lançar a parceria estratégica com o Brasil, lembrou quanto esse nosso gesto a tinha sensibilizado.

Várias reuniões informais da nossa presidência viriam a ser perturbadas pelo ambiente hostil contra a Áustria. Acho que nos comportámos então com grande equilíbrio, como “honest brokers” que nos competia ser. Recordo ter ido a Bruxelas com António Guterres, para um encontro discreto com o primeiro-ministro Schüssel, na procura de soluções para acomodação do impasse. E ainda tenho na memória chamadas telefónicas recebidas de ministros portugueses, que viam colegas seus sairem da mesa, em reuniões informais que organizavam em Portugal, quando entrava o delegado austríaco, a perguntarem-me: “Olha lá! O que é que achas que eu faça?”. Foi muito instrutivo, pelo menos como experiência.

Depois, os franceses sucederam-nos e foi o que se viu: com o relatório de um “grupo de sábios”, meteram o assunto debaixo do tapete. É muito fácil delegar a coragem nos outros.

Hoje, visto à distância, o caso austríaco é uma brincadeira de crianças, ao lado de Estados membros que, com escandalosas cumplicidades, quanto mais não seja pelo silêncio, infringem, aberta e impunemente, as regras europeias que se comprometeram a cumprir.

“Observare” o ano de 2021


Sem entrar no domínio das previsões, fizémos, no primeiro ”Observare” de 2021, uma análise ponderada às grandes questões internacionais, antecedida de uma radiografia da nova administração americana. Pode ver aqui.

Daqui a dias, há eleições


Na eleição presidencial a escolha é fácil. Tudo se resume à resposta a uma simples questão: dentre os candidatos que agora se apresentam, qual é aquele que, em face da experiência e das provas já dadas, apresenta um perfil que mais garantias oferece de poder vir a desempenhar, nos próximos cinco anos, com equilíbrio, moderação e capacidade de diálogo com os vários setores - políticos, institucionais, económicos e sociais - da sociedade portuguesa, o cargo de presidente da República? Eu não tenho a menor dificuldade em escolher.

Le Carré


Não deixa de ter graça ver o próprio John le Carré surgir, “à la Hitchcock”, no “Tinker Tailor Soldier Spy”, há pouco, no AXN.

“Melhorada”

Algumas pessoas (a começar por mim) diziam-me: “O teu blogue tem uma letra muito pequena”. Outros, que não eu, comentavam: “Aquilo precisava de uma corzita!”. Porque não me apetece (por ora) ver debates eleitorais, andei para aqui a mexer no “template” e fiz umas mudanças. Como dizem os brasileiros: dei uma “melhorada”! Se resultou ou não, só os que notaram é que podem dizer alguma coisa (“Mas mudaste alguma coisa? Já não me lembro como era...”). Dá deus as nozes...

sábado, janeiro 02, 2021

“Observare”


Daqui a pouco, como sempre logo depois do noticiário da meia-noite, de sábado para domingo, na TVI 24, sob a coordenação de Filipe Caetano, Luís Tomé, Carlos Gaspar e eu, em mais uma edição do “Observare”, analisaremos o ano internacional de 2021.

Carlos do Carmo e a manhã


Num filme, há pouco, ouvi Rui Vieira Nery ironizar, numa conversa com Carlos do Carmo, pelo facto de o não poder convidar para ir assistir a uma aula sobre o fado, num curso que dava na universidade. É que as aulas eram às oito da manhã e a manhã não era o “forte” de Carlos do Carmo! O cantor sorriu, silencioso.

Um dia, em Paris, depois de um espetáculo que fez no Chatelêt, perguntei a Carlos do Carmo se, por acaso, estaria disponível para almoçar connosco, no dia seguinte, na embaixada. Respondeu-me: “Não leve a mal, embaixador, mas eu nunca aceito almoços. A minhas manhãs são sempre muito longas... Mas tenho muito gosto em que possamos jantar. Almoçar, não me dá jeito!”

Passaram poucos meses. Eu já vivia em Lisboa. Ia a sair do “Ibo”, um restaurante no Cais do Sodré, e cruzei, na esplanada, Carlos do Carmo e Júlio Pomar, a jantar com as respetivas mulheres. “Ó Júlio! Um dia, em Paris, eu disse ao nosso embaixador que não podia aceitar um convite dele para almoçar. Na altura, fiquei preocupado em que ele tivesse ficado ofendido pela minha recusa. Quero que sejas minha testemunha de que eu só janto!”. E Júlio Pomar, seu grande amigo, confirmou, com aquela gargalhada enrolada que tinha. 

A pasta


Começou ontem a quarta presidência portuguesa das instituições europeias. Escrevo “instituições europeias” e não “União Europeia” porque, em rigor, a União Europeia só existe desde 1993. E a nossa primeira presidência teve lugar em 1992.

Hoje, amanhã e depois, contarei aqui três histórias, ocorridas em cada uma dessas presidências.

A primeira é da presidência de 1992. Foi nesse agosto, há quase três décadas, na conferência de Londres sobre a ex-Jugoslávia.

À volta de uma longa mesa no Carlton Tower, na Cadogan Place, a dois passos da nossa embaixada, estavam lá quase todos: Slobodan Milošević, o sérvio, Franjo Tudjman, o croata, Alija Izetbegović, o bósnio muçulmano, além de muitos outros, do Montenegro à Macedónia. Pelo corredores, sem assento formal na sala, a cabeleira desalinhada do sérvio bósnio Radovan Karadžić desdobrava-se em conciliábulos. O ambiente quase que fazia lembrar as palavras da canção de Aznavour: ”Ils sont venus, ils sont tous là"...

Do “nosso” lado, também, estavam todos os MNEs dos então “doze“, com Deus Pinheiro a representar a presidência portuguesa, cuja delegação eu integrava, como chefe interino da nossa embaixada em Londres.

Era a Jugoslávia em desagregação e em sangrento conflito que por ali se discutia, por esses dias.

Ninguém pode falar pelos sentimentos dos outros. O meu, porém, sentado na delegação portuguesa, era o de que não havia nenhuns inocentes entre essas figuras, todas elas envolvidas numa luta de ódios ressentidos, de vinganças históricas, de contabilidades mórbidas, procurando desforra de massacres passados, naquilo a que um jornal britânico chamou, à época, as "batalhas dos avós".

As potências exteriores relevantes faziam então ares de neutrais, de apaziguadores, mas, por detrás, iam alimentando ou contemporizando com aqueles que davam garantias de contribuírem para um saldo final favorável aos seus interesses estratégicos. 

O mundo multilateral de então, pelas mãos de Boutros-Boutros Gali, secretário-geral da ONU, e de John Major, o primeiro-ministro britânico, que co-presidiam à reunião, tentava o impossível para gerar um acordo formal que pudesse atenuar o que já estava a ferro-e-fogo. 

A conferência de Londres foi um fracasso.

À hora de almoço, fomos todos para o Queen Elisabeth II Center, onde os britânicos tentavam compensar com um sofrível "catering" o parco resultado de umas conversas de onde cada um julgava ter saído com uma fatia da vitória. 

Eram largas mesas redondas, com "self-service". Coloquei a minha pasta junto de uma cadeira e fui servir-me. Quando voltei, encontrei o lugar ocupado pelo então diretor político do MNE, o embaixador Pedro Ribeiro de Menezes. Com as mãos ocupadas, decidi só ir buscar a pasta no fim do almoço. E fui sentar-me noutra mesa. 

Passou uma boa meia hora, comigo à conversa com um parceiro do lado, de um qualquer país. Num certo momento, vi passar junto à minha mesa, em andar apressado, dois ou três figurantes com ar de seguranças, com um tom que se adivinhava de algum alarme. Pensei que fossem atenuar um qualquer conflito, num ambiente político de tensão que só o podia estimular. Vi-os parar junto da mesa onde estava o Pedro, cuja figura alta se destacou então, para, segundos depois, se afastar com alguma pressa.

À volta desse lugar, fez-se então um grande vazio de gente, uma espécie de cordão "sanitário". Do meio desse espaço de segurança, nas mãos de um dos polícias, que vejo eu emergir? A minha velha pasta, rotunda de papeladas, lenta e prudentemente transportada ao longo da sala, por um braço estendido de um agente, à altura da sua cabeça. Toda a sala devia perguntar-se, entre a ansiedade e o temor, sobre o que estaria naquela pasta. 

Comprada nos anos 60 na rua da Trindade, no Porto, numa loja logo abaixo do cinema, era do tipo "de engenheiro", com duas bolsas, e tinha-me custado o suor das minhas economias. Estava sempre atulhada de livros e jornais, pesava "toneladas", como as minhas costas bem aprenderam. Já fora preta, agora estava descolorada, os seus fechos eram pré-históricos, mas tinha (e tem) um ar decadente que ainda hoje me encanta. Lembrava-me a mesma pasta que o velho MNE francês, Maurice Schumann, usou, desde o liceu até ao fim da sua vida política.

No silêncio que entretanto se criara, quebrado por sussurros, eu disse alto: "It's mine! That briefcase is mine!".

Dezenas de olhos voltaram-se então para mim, para o imprudente e descuidado proprietário de uma pasta incrivelmente velha, abandonada junto de uma mesa, no meio de uma reunião internacional onde toda a segurança era pouca. Não recordo a cara de Deus Pinheiro, imagino mesmo que nem me olhasse, apenas desejoso que o nome de Portugal não ficasse associado àquele incidente.

Pensava-se que seria uma bomba e, afinal, foi apenas um momento de grande embaraço para mim.

sexta-feira, janeiro 01, 2021

“Blake & Mortimer”


Uma bela maneira de começar o ano é ler o último ”Blake and Mortimer”, com o velho Olrik à mistura.

Foi uma das prendas de Natal que ofereci a mim mesmo, enviada pela Amazon, com mais alguma livralhada francesa.

A Presidência europeia


Conversa com a deputada europeia Margarida Marques sobre a quarta Presidência portuguesa da União Europeia, que hoje se inicia.

Pode ver aqui.

O nosso fado

 


quinta-feira, dezembro 31, 2020

A figura do ano


Não tenho a mais leve hesitação em afirmar que a figura do ano de 2020, em Portugal, é a ministra da Saúde, Marta Temido. Com Graça Freitas a seu lado, mas com a responsabilidade política que a esta não incumbe, Marta Temido mostrou o estofo de uma grande servidora pública, com a firmeza, pontuada de humanidade, de uma responsável política. O facto de se ter tornado no alvo predileto dos detratores do Serviço Nacional de Saúde é a maior “medalha” que lhe pode ser atribuída, embora eu espere, com toda a franqueza, que outras venham a tê-la como destinatária.

A outra cidade


Vamos chamar as coisas, que não as pessoas, pelos seus nomes.

Na minha juventude, lá por Vila Real, a homossexualidade masculina era um tema estranho, de que, em absoluto, se não falava em família. Nos círculos adolescentes em que andava, quase sem exceção, o assunto era abordado de forma “grossa”, contundente, como se houvesse a necessidade precaucionária de criar uma barreira agreste de palavras entre nós e esse (outro) mundo.

A homossexualidade feminina essa, então, era um tabu: havia umas senhoras que viviam juntas, mas era tido como maldade daí deduzir que se tratava de algo mais do que uma conveniente amizade. E, às vezes, quem sabe, até podia ser o caso.

A cidade tinha então os seus “maricas”, conhecidos e “recenseados” pela voz pública. Eram poucos, uma dezena ou uma dúzia, quase todos identificados por ademanes no comportamento, alguma bizarria no vestuário e nos jeitos do andar, caricaturas que eliminavam quaisquer residuais dúvidas na sua catalogação.

Eram figuras tidas como tal nas conversas entre amigos (homens, sempre), objeto fácil para ditos em tom jocoso (às vezes, de forma semanticamente bem agressiva), pessoas que, em alguns casos (em especial se fossem mais pobres ou “distantes”, na coreografia física que apresentavam), se arriscavam a ser brindadas com apartes pelas ruas, provindos da “coragem” de grupos machistas que os cruzavam.

O “teste do algodão”, para consolidar qualquer rumor sobre alguém, era descortiná-lo em algum “trottoir” por perto do RI 13, cuja fauna fardada se dizia fazer as suas delícias. A notícia corria, célere, cruel e o julgamento era definitivo.

Às vezes, se o visado tinha maior importância social, e eram menos evidentes os sinais exteriores da sua condição sexual, ele era incluído na classe mais equívoca dos “solteirões”, um estatuto que, na prática, os deixava à espera de melhor “prova”.

Nos dias de hoje, com a abertura da sociedade, e com a saudável evolução das mentalidades a moldar-nos a atitude (falo também por mim), podemos melhor imaginar o que terá sido o drama de muitos homossexuais numa cidade com a matriz fechada de Vila Real dos anos 50 ou 60 (e quem diz Vila Real podia dizer Bragança, Leiria, Portalegre e urbes afins).

É que eles, na realidade, não deviam ser uma dezena ou uma dúzia! Quantos mais não haveria, escondidos, reprimidos, no sofrimento da clandestinidade da sua condição, a ter de ser superada por uma fachada de comportamento mais ou menos machista, que, em alguns casos, pode ter mesmo forçado ao teatro de um casamento.

Vila Real, como o país em geral, em meia dúzia de décadas, cresceu imenso em transparência, em auto- reconhecimento, em denúncia da hipocrisia. E, também por isso, cresceu em humanidade. As discriminações não desapareceram por completo, muitos preconceitos ainda persistem. Mas há um imenso mundo de diferenças. A liberdade também passou por aqui.

quarta-feira, dezembro 30, 2020

Pela mão do sogro


“Este não é um avião oficial. É meu!” Com um sorriso vaidoso, naquela cara em cujos traços se percebia a proximidade da China, o embaixador do Casaquistão, junto da OSCE, Rahkat Aliev, acolheu assim os seus quatro colegas, idos de Viena, que se tinham deslocado ao seu país, numa viagem que ele próprio fazia questão de acompanhar. Partíamos, nessa manhã de 2004, de Almati para Astana. 

A mim, nesse dia, o primeiro de quatro que iria passar no Casaquistão, ia caber-me fazer, em Astana, a nova capital (a mais de 1000 km da antiga, Almati), uma conferência didática para diplomatas casaques, explicando o que significava o encargo de fazer uma presidência da OSCE, responsabilidade que Portugal tinha tido pouco tempo antes e que o Casaquistão ambicionava fazer. 

Fiquei com alguma inveja pelo facto de, nessa hora, os meus colegas andarem a passear pelos mercados da “Brasília” local. Ainda fui a tempo, contudo, de os acompanhar à torre Bayterek no centro de Astana, no topo da qual, colocando a mão numa reprodução dourada da mão do presidente Nursultan Nazarbaev, se ouve, em todo o esplendor, o hino do país. (Uma experiência, à época, só comparável à que mais tarde iria ter, ao observar a estátua dourada do então ditador do Turquemenistão, Saparmurat Niyazov, a mover-se a acompanhar a luminosidade do sol, na capital Asgabat).

Tudo correu bem, com muito vodka e caviar a acompanhar-nos a todas as refeições, nessa visita ao Casaquistão. Embora fosse, como os outros, uma mera “democradura” (uma democracia que tentava disfarçar uma real ditadura), era talvez, há que reconhecer, o menos mau do países da Ásia Central.

Nós levávamos na agenda um conjunto de questões para colocar às autoridades locais - em matéria de observância das regras democráticas, de Direitos Humanos, de liberdade de imprensa, de proteção das minorias, de respeito pelo Estado de direito, de presos políticos, etc. Os casaques apresentaram-nos, como era de regra, o “mundo ideal” que por ali se disfrutava. A “fact-finding mission” era completada com a audição de opositores e ONG’s. Era tudo quanto podíamos fazer. Tratar-nos muito bem fazia parte da tentativa do governo de fragilizar o rigor do nosso relatório. 

O embaixador casaque, Rahkat Aliev, que nos acompanhava, não era, contudo, uma pessoa qualquer: era genro do presidente do seu país, o eterno Nursultan Nazarbaev. 

E era uma figura muito conhecida no seu país, embora não pelas melhores razões. Tinha sido chefe dos impostos, subdiretor da polícia política e vice-ministro. O tempo veio a provar, sem margem para dúvidas, que estava envolvido em desvio de bens públicos, em negócios fraudulentos, com off-shores à mistura, acumulando uma imensa e ilegítima fortuna. Depois desse tempo em que o cruzei (ainda o tive, um dia, a almoçar em casa, em Viena), andou fugido entre a Áustria, Malta e Chipre, viu o seu estatuto diplomático suspenso, vindo a ser detido por acusações de fraude, raptos, torturas e assassinatos.

Tinha, entretanto, acabado a vida política num dissídio violento com o sogro. Sobre este, viria a publicar um livro que vale pela graça de um belo título (o trocadilho só funciona em inglês): “The Godfather-in-law”, que deu origem a um filme.

Rahkat Aliev viria a morrer, com apenas 53 anos, numa prisão austríaca, num suicídio sobre o qual ainda hoje se mantêm muitas dúvidas.

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...