sexta-feira, agosto 28, 2020

Manel!

 

Numa carreira diplomática onde, historicamente, algum snobismo teima em marcar as formas de tratamento, o Manuel Lopes da Costa foi alguém que cuidou sempre em reduzir a distância face aos colegas mais novos. Senti isso desde o primeiro momento, em que me “ordenou” que o tratasse por Manel, e sempre “por tu”, como todo o ministério se habituou a testemunhar. 

Há dias, neste tempo de pandemia, comentei com alguém da Casa: “Quem deve sofrer imenso com isto é o Manel!”. Porque o Manel era um “físico”, gostava de tocar nas pessoas, agarrava-nos o braço, as mãos. Era a sua forma de demonstrar afetividade, amizade, simpatia. O Manel era a antítese perfeita do conceito de “distanciação”.

Manuel Lopes da Costa afirmava também uma caraterística incomum na Carreira: tinha por “vício” não dizer mal de ninguém. Para minha grande surpresa, uma noite, num bar de um hotel, em Roma, abriu uma exceção e qualificou alguém com um adjetivo duro. Mas tinha imensa razão em assim proceder! Eu teria dito bem pior dessa figura.

Longe de Lisboa, não tenho comigo o Anuário do MNE (uma utilíssima publicação que, por um qualquer mistério, deixou de se publicar neste século), o que me impede de confirmar a perceção de que o Manel, que leio que hoje morreu, aos 87 anos, praticamente nunca teve chefes no estrangeiro: foi “encarregado de negócios” em vários postos, acabando por chefiar embaixadas em Maputo e Dublin, locais onde fui encontrá-lo, sempre à vontade, com ótimo espirito e boa disposição, muito ativo, atento leitor da realidade local.

Percorri alguma África com o Manel - do Congo à Tanzânia, do Zaire ao Quénia, da Zâmbia às Maurícias. Ajudei a libertá-lo, entre gargalhadas coletivas, de uma sarilhada no aeroporto de Addis-Abeba, onde decidiu comprar um facalhão que, com toda a ingénua naturalidade, quis levar para um avião. Com ele e outros compinchas, atravessei o deserto que bordejava o Kelimanjaro, numa carrinha que ele nos convenceu a alugar em Arusha e que, de quando em vez, nos obrigava a parar, para se limpar, por sopro, o carburador (seria isso? não percebo nada de motores), no meio da estrada de terra batida para Nairobi, sob o olhar indiferente das tribos de Masai com que nos cruzávamos (o João Salgueiro não esqueceu isto).

Tenho montes de histórias divertidas com o Manel, uma, incontável, em Londres (o João da Rocha Páris lembra-se), outra, difícil de descrever, em Frankfurt (o António Monteiro recorda-se), sem falar das da caça, arte em que ele era reconhecido como um praticante de elevada craveira. 

Um dia, em Washington, no State Department, o Manel deparou-se com uma sala de reuniões onde, por todo o lado, se viam letreiros de “No Smoking”. Na mesa, de madeira impecável, nem vestígio de cinzeiros. Eram os anos 80, início do fundamentalismo anti-tabaco. 

A “chaminé” que era o Manuel Lopes de Costa começou a agitar-se na cadeira. Alguns membros da delegação portuguesa notavam a sua nervoseira. Ia passada uma dezena de minutos da reunião quando se viu o braço do Manel adiantar-se na mesa e agarrar uma meia dúzia de folhas brancas de A4. “Vai tomar apontamentos”, pensou-se, embora o Manel tivesse à sua frente um caderno de argolas onde escrevinhara já algumas notas.

Foi então que, expectantes, olhos de ambas as delegações viram o Manel dobrar, cuidadosamente, umas faixas laterais do molho de folhas e, com um saber seguramente de experiência feito, criar uma espécie de caixa, com quatro pés assentes sobre a mesa, em frente ao seu lugar. 

De repente, o Manel inclinou-se para a pasta preta, com asas, que sempre trazia consigo e que tinha pousado no chão, ao seu lado. Segundos depois, desse mesmo sítio, no ar daquela sala da sede da diplomacia americana, alçou-se um pequeno fumo, provocatória e libertariamente. Impávido, com o esgar sorridente que era o seu, com a sua barbicha branca, de cabeça sempre levantada, o Manel surgiu com um cigarro incandescente, para cuja cinza - estava desfeito o mistério! - ele havia construído o engenhoso cinzeiro de papel. Alguns americanos, graves, olhavam a delegação portuguesa, com certeza interrogando-se sobre a “lata” de alguém que, com um cigarro, havia raptado a conversa, onde a guerra civil em Angola era o tema. O nosso lado estava divertido. Era o Manel no seu estilo incontrolável!

Tenho muita pena de ver desaparecer o meu querido amigo Manuel Lopes da Costa. Se a diplomacia tem um lado humano insubstituível, esse lado estava bem representado na sua figura, na sua excecional capacidade de relacionamento, de que fui feliz beneficiário. Tenho a certeza de que ele ficaria satisfeito ao saber que o recordei com uma sua história divertida, tão alegre como as muitas horas bem dispostas que passámos juntos. “So long”, Manel!

Um beijo à Maria Cecília e o meu pesar à família.

quinta-feira, agosto 27, 2020

Elogio do turismo


Andando pelo país, do Sul ao Norte, nos últimos dois meses, tenho-me apercebido muito bem do modo como os setores da restauração e da hotelaria estão a procurar reagir à muito grave crise provocada por uma pandemia que ainda não tem data marcada para atenuar os seus principais efeitos.

Com a maior sinceridade, quero dizer tenho vindo a criar um enorme respeito pelo esforço dos profissionais de ambos os setores. Um pouco por todo o lado, quase sempre sem grandes queixas, tenho observado o modo rigoroso como responsáveis e trabalhadores seguem as estritas regras de higiene a que a situação obriga, garantindo as melhores condições a uma clientela que ainda se mostra hesitante e temerosa.

Nos últimos anos, o turismo disparou entre nós, com uma dimensão que, há que reconhecer, por vezes se tornou incómoda para a vida de muitos cidadãos, que viram o seu quotidiano invadido de uma forma bastante agressiva. Mas, ao afirmar-se, a importância do turismo na nossa riqueza ajudou a alguma folga nas contas, facilitando políticas públicas, gerando uma imensidão de empregos. Percebemos melhor agora que não é possível “ter sol na eira e chuva no nabal”.

Houve algum exagero na oferta hoteleira, que parecia imitar as “pirâmides” de lucro? Claro que sim. Mas convém compreender que muito do património imobiliário foi renovado, nomeadamente com o surto do alojamento local, que a vida comercial das cidades foi estimulada e os restantes setores turísticos, com os transportes pelo meio, tiveram ganhos de qualidade que os índices internacionais não deixaram de refletir.

Sei que, no olhar de alguns, um outro aspecto pode parecer de somenos, mas, dada a minha experiência profissional, tenho de destacar o impacto que a onda turística dos últimos anos tem vindo a ter na imagem internacional do nosso pais. Olhe-se o número crescente de obras que, pelo mundo, são publicadas sobre Portugal, sobre os portugueses e a sua História, os filmes que nos tomam como cenário e o muito que, de positivo, se diz sobre a segurança das nossas cidades. Muitos não terão reparado mas, em escassos anos, demos um imenso salto nessa perceção. E quem, mais do que o turismo, fez por isso?

Não sabemos ainda o que o turismo português vai ser, no futuro. Mas uma coisa é certa: se ele não recuperar, as coisas não irão ser nada fáceis para a economia nacional, nos próximos anos. Como o relatório Porter nos ensinava, temos de fazer melhor o que já fazemos bem. E em poucos setores somos tão competitivos como na área turística.

quarta-feira, agosto 26, 2020

“Reaccionaria” (também com “c”)


Andava há anos para lá ir. Tinham-me falado daquele restaurante galego em que a dona, franquista dos sete costados, cantava pelas mesas o “Cara al Sol” (ontem, só lhe ouvi o “Granada”) e alardeava que, na sua casa, não entravam socialistas (e, por maioria de razão, comunas e anarquistas, porque quem pode o mais pode o menos).

É uma marisqueira pequena, numa rua esconsa do porto de La Guardia (A Guarda, para os galegos). Lá chegados, com mesa marcada, surgiu a “facha” (“Ah, Portugueses!”, sem especial nota de afeto ou desafeto). Explicou, logo ali, que, em tempos de pandemia, se cruzam os braços no peito e se vai com um dedo ao nariz, apontando depois para o outro (“Los socialistas son los que saludan con los codos”).

Plano de conversa: dizer bem de Salazar, elogiar o Caudillo, que sempre achei Fraga “muy de esquierdas” (e então o Feijóo!), que nos faz falta um Vox, que em Portugal já temos um genérico “facho”, mas que, a mim, até me parece um pouco esquerdalho, da minha admiração pela vedeta do PP Cayetana Álvares de Toledo (e que fiquei comovido com o artigo sobre ela, do Vargas Llosa, no “El Mundo”), revelando-lhe, como cúmulo de credenciais direitolas, que, num 20 de novembro, tinha mesmo estado a ouvir Blas Piñar, na Plaza de Oriente, “hace muchos años”. À saída, o plano era berrar, à distância, o “La mujer de Paco Franco... de su marido cabrón”, com música do “Ay Carmela”.

“Quer-se dizer”: tinha pensado dizer e fazer tudo o que acabam de ler, mas acabei por não dizer nem fazer nada disso. Já bastam as máscaras que para aí andam...

Comemos bem, bebemos um albariño razoável e pagámos “la dolorosa”, em conta para o consumido

Reaccionário (com “c”)


A distanciação, em tempos de pandemia, colocou-me atrás dele, a uma boa distância. Foi ontem de manhã, na fila para os jornais, na Atenas, na praça central de Caminha. 

Era um homem pequeno, idoso, de cabelos muito brancos. Vestia um casaco (seria fato?) escuro. Verdadeiramente, a minha atenção à figura começou quando o ouvi pedir a conservadoríssima “Valeurs Actuelles”. Logo eu, que vinha pelo “Nouvel Obs” da semana passada, que já não conseguira apanhar no Porto. 

Espera aí! Um cavalheiro daquela idade, a pedir aquela revista, por aquela zona, seria ele? Ele quem? Se o leitor lê o “Correio da Manhã”, pecado comum a muitos portugueses, ter-se-á encontrado já com as crónicas do Dr. António Sousa Homem, autor de quatro livros de compilação de textos, todos com o subtítulo de ”Crónicas de um reaccionário minhoto”. Quando ele se voltou, para me dar lugar junto ao balcão, esperei para ver se o farfalhudo bigode branco se mostrava, mas a máscara não deixou.

Não resisti, para não ter o destino infeliz de dois escribas lisboetas. que falharam o encontro com o homem. Pousei no balcão a revista que levava na mão e fui atrás do cavalheiro. Chegado ao largo, interpelei-o: “Dr. Sousa Homem?” O senhor parou, tirou a máscara, mostrou uma cara levemente sorridente, com o bigode que lhe vemos nas badanas dos livros, e respondeu: “Presume bem!”. Dei por adquirido que fazia uma citação ínvia do encontro de Livingstone e Stanley, e também sorri. 

Tinha pouco a dizer ao Dr. António Sousa Homem, além do que, de facto, lhe disse: que tinha lido todos os seus livros, que apreciava a sua escrita, que estava longe de lhe dar os 99 anos que lhe sabia de vida. Disse-lhe também quem eu era, o que fazia, mas isso em nada o pareceu interessar. Perguntei-lhe se continuava a ir almoçar ao Ancoradouro, embora sabendo que isso lhe era de regra. 

O Dr. Sousa Homem, manifestamente, não estava com jeitos de me dar muito troco. Sim, ia dali a pouco ao Ancoradouro. Como pretexto para arrumar uma conversa que não andava para a frente, pedi-lhe que desse um abraço por mim ao Alfredo, que tutela aquelas mesas de toalhas aos quadrados. “Com certeza que sim”, adiantou, talvez para se ver livre de mim, cujo nome duvido que sequer tivesse fixado. 

Foi então que, de uma mesa na esplanada da Riviera, se ouviu uma voz feminina: “Tio! Estamos aqui!”. Ele olhou, despediu-se de mim com um inclinar de cabeça e foi ter com a senhora ali sentada. Era, pela certa, a sobrinha, a Maria Luísa, a decoradora de interiores em Braga, de que Sousa Homem nos fala nas crónicas, que vem vê-lo com frequência ao Moledo, onde ele vive.

Ao lado da suposta Maria Luísa, refastelado, estava um cavalheiro. Tenho uma memória de elefante. Era a cara chapada de um tipo que eu tinha cruzado, há cerca de três anos, quando o Nova Sintra ainda estava aberto em frente ao meu hotel, na rua do Heroísmo. Eu tinha falhado a hora do pequeno-almoço do hotel, como cada vez mais me acontece, e tinha atravessado a rua para uma bica e um sumo de laranja, a um preço decente. Ouvi então o empregado do café perguntar, para aquele que era, por uma pinta, o acompanhante de Maria Luísa: “O costume, senhor inspetor?”

Agora, eu estava com alguma pressa. Ainda ia almoçar a La Guardia (A Guarda, para os galegos), onde já levavam uma hora de avanço, para experimentar as delícias da Casa Olga (amanhã conto). 

Quando arranquei, cruzei-me com um carro onde, ia jurar!, ia o Francisco José Viegas. Mas foi impressão minha, pela certa. O Francisco anda por Soltróia. Mas lá que parecia ser ele, isso parecia!

terça-feira, agosto 25, 2020

Barto


Por esta altura do ano, nas Escadinhas da Fonte da Pipa, em Sintra, reunia-se uma seita distinta, que invadia o terraço da casa do Bartolomeu Cid dos Santos. 

Íamos comemorar o aniversário dessa grande figura da arte portuguesa, professor da Slade School e ímpar amigo e companheiro de muitas festas. O Bartolomeu teria feito ontem 89 anos.

Foi em Londres que conheci o Bartolomeu - Barto, para os amigos britânicos -, nos idos de 70, através da Fernanda, sua esplêndida companheira. Quando para lá fui viver, nos anos 90, juntávamo-nos com frequência, em longas e bem regadas conversas e comezainas. O Bartolomeu cozinhava uma “shepherd’s pie” como ninguém, mas também tinha a mania da cozinha grega, arrastando-nos, com frequência, para um restaurante da dita, perto de Tottenham Court Road.

O Bartolomeu tinha a curiosidade de uma criança, a vivacidade de um adolescente, a sabedoria da gente com a idade de que ele se aproximava. 

Foi pela mão do Bartolomeu que passei a integrar, em 1991, a Crabtree Foundation, uma prestigiosa associação britânica (de que ele e eu acabámos um dia presidentes) que, vai para sete décadas, comemora - com afinco, pertinácia e, vá lá, com o rigor possível - a figura de Joseph Crabtree (1754-1854), uma personalidade que nem pelo facto de nunca ter dado o menor sinal de vida deixa de ser um expoente em muitas e desvairadas artes, ofícios e saberes. A “oration” do Bartolomeu sobre a suposta passagem de Crabtree por Portugal continua a ser um marco!

As festas de aniversário do Bartolomeu, lá por Sintra, só se equiparavam às noites de passagem de ano no mesmo local, que começavam num jantar e acabavam dentro da madrugada, depois de sessões de revelação de documentação, que o Bartolomeu cuidava em colecionar, coisas magníficas, como cartas escritas de Cabul para ele, por José Cutileiro, na juventude de ambos. Uma das suas preciosidades era uma “cunha” de alguém para tentar proteger o jovem estudante António Sebastião Ribeiro de Spínola. 

O Bartolomeu, homem que nunca renegara o seu amor ao “partido”, guardava, além disso, uma “memorabilia” de imensas coisas com a foice & martelo, uma “cunhalogia” do melhor que vi até hoje. Não sei se, para aquela coleta, tinha tido a ajuda do Ruben de Carvalho, figura que muito animava essas nossas ocasiões.

Nós éramos felizes participantes desses extraordinários “gatherings”. Para além do Rúben e de José Cutileiro, lembro ver por lá o Antonio Tabuchi, o Zé Cardoso Pires, os “londrinos” Luís Sousa Rebelo e Helder Macedo, o Gérard Castello Lopes, o Júlio Moreira e a Ana Viegas, o Alberto Seixas Santos, o Luís Santos Ferro e tantos e tantos outros.

O Bartolomeu, até à morte, nunca largou Londres, mas voltava sempre a Portugal, a Sintra e a Tavira. Algumas vezes, como quando fez a arte magnífica que está nas paredes do Metro de Entrecampos, trouxe consigo, da “pérfida Albion”, umas excelentes “trupettes”, estudantes da Slade, que muito animaram as marmoreiras de Pero Pinheiro. Tenho dele uma gravura dedicada, com a sombra de uma dessas beldades.

O dia de aniversário já terminou. Se fosse vivo, o Bartolomeu iniciaria agora o caminho para os 90. Assim, tem de se contentar com a eternidade.

Um beijo para ti, Fernanda.

segunda-feira, agosto 24, 2020

Cafés do Porto


Passei há pouco no “Piolho". Fez 110 anos e, salvo a pandemia, está de boa saúde, com gente a animar-lhe a esplanada. 

O "Piolho", ou melhor, o "Café Âncora d'Ouro", é uma bela instituição do Porto, estrategicamente situada junto aos Leões, à beira dos Clérigos, de Carlos Alberto e do início de Cedofeita. É um local de profundas tradições culturais e académicas. 

Na segunda metade dos anos 60 do século passado, em que o frequentei, por ali aportava gente do Teatro Universitário, do Orfeão, do Coral de Letras, da cooperativa livreira Unicepe, os pró-associativos (no Porto, a ditadura não dava direito a associação académica), estudantes das Faculdades de Ciências e de Economia, logo em frente, bem como os de Letras e Medicina, então um pouco abaixo. 

Tudo bebia por ali o seu café de saco. É que o "Piolho", durante muito tempo, não teve "cimbalino", essa portuense expressão para o "expresso", derivada das máquinas italianas "La Cimbali", que, à época, já equipavam a modernidade dos cafés da cidade, a começar pelo "Montarroio" e a acabar na "Brasileira".

Tal como em Lisboa, para muitas gerações desaguadas da província para estudar no Porto, sem muito dinheiro, num tempo de escassez de locais de convívio, os cafés representavam um espaço de acolhimento, socialização e convívio. 

O "Piolho" era um expoente desse universo, que também tinha o "Aviz" (algo intelectual) e o "Ceuta" (em frente ao Rádio Clube Português), como fóruns clássicos de conversa. Mas também o "Progresso", no Moinho de Vento, com “o melhor café de saco do mundo” (dizia-se que punham, dentro da máquina, um rabo de bacalhau salgado), mas com professores a mais pelas mesas, o "Estrela", na rua da Fábrica, com os seus belos bilhares no 1.º andar, e o "Bissau", em Cedofeita, um oásis de serenidade onde se concentrava a gente de Engenharia e dos lares universitários da Torrinha e Rosário, ainda antes da abertura do “Latino”, a que assisti.

Para estudo ou a fazer disso, havia o "Saban", em Sá da Bandeira, ou o "Diu", na Boavista, sempre cheio de "pequenas" de Farmácia. Mais para namoro, havia o "Guarany", nos Aliados, ao fim da tarde, o "Orfeu" na Rotunda, o "Pereira" no Marquês, ou os recatados e distantes "Bela Cruz" do Castelo do Queijo e o "Chalet" do Passeio Alegre. 

Na baixa, onde se parava em outras diferentes ocasiões (por exemplo, ao final da tarde dos domingos, à espera do "Norte Desportivo"), ficavam os institucionais "Rialto", "Embaixador" ou "Imperial", embora com a estudantada menos presente, E também o "Astória", no passeio das Cardosas, que abria às 6 da manhã (para “apoio” à estação de S. Bento), meia hora depois de fechar a "Stadium", no Bonjardim. 

Curiosamente, o "Majestic" não tinha então o "glamour" de hoje e, bem perto, na Batalha, preponderava então o "Chave d'Ouro", onde a gente nova não ia muito. Não longe, ficava o “Sagres“, também um lugar “ível”, isto é, onde se podia ir. Resta notar, na Passos Manuel, nesta memória muito breve de cafés do Porto, o ”Santiago”, onde uma intelectualidade menos ortodoxa adubava os finais de tarde.

Hoje, é difícil que os cafés admitam que alguém se eternize por lá, à conversa, com um café e um copo de água à frente, como era frequente no século passado. 

Quando vivi em Viena, aprendi que, durante a guerra, os cafés da cidade aceitavam que quem não dispunha de aquecimento em casa passasse muitas horas dentro deles. 

Nos tempos de esse outro Portugal, aos poucos que tínhamos o privilégio de frequentar a universidade, os cafés também nos ajudavam a “aquecer” os dias e, em especial, as noites.

Francesinha


Ontem à noite, dei por mim a olhar, com clara inveja, para uma francesinha, pousada sobre a mesa ao lado, na Cufra, aqui no Porto. Eu já tinha pedido outra coisa, caso contrário teria marchado, pela certa, aquela bomba calórica, sobre cujo local de melhor confeção a doutrina tripeira sempre se dividiu. Mas não deve ser por acaso que, desde há muitos anos, não me passava pela cabeça pedir uma francesinha num restaurante portuense. É que costuma haver tanta coisa melhor nas ementas da cidade! Infelizmente, não é o caso da Cufra, com pena o reconheço.

domingo, agosto 23, 2020

MNE - os dias quentes da Revolução

Com um sexto e último artigo, Bárbara Reis conclui, no “Público” de hoje, uma série de textos, recheados de testemunhos, sobre o tempo que se viveu no Palácio das Necessidades, em 1974 e 1975, da ditadura para a democracia. Vale a pena ler.

Porto


É das cidades onde me sinto melhor. No Porto, tenho sempre a sensação de estar em casa. Talvez porque, minha infância, ir ao Porto era ir à civilização, pelo Marão curvoso ou pela linha que então desaguava em São Bento. Da varanda traseira da casa de uns tios, na Ramada Alta, avistava o mar ao fundo, olhava aquela imensidão de casas e luzes, via passar um comboio que me diziam que ia para a Póvoa e sentia que aquilo é que devia ser a vida! Um dia, o destino mandou-me mesmo para lá, supostamente para estudar, na prática para usufruir da liberdade que Vila Real não me tinha nunca dado. Perdi-me, claro, nas muitas coisas e nas longas noites. Em dois anos, concluí, com esforço, duas cadeiras de Engenharia, ambas com notas a rasar os mínimos. Não tivesse eu saído a tempo do Porto e aquela cidade seria a minha perdição. Mas voltei lá sempre, todos os anos, sem exceção, para rever amigos, flanar por ruas que conheço como os dedos das mãos, comer em belos restaurantes, folhear nos alfarrabistas. Quando ouço amigos lisboetas dizer que se confundem no trânsito do Porto, gabo-me de saber ali conduzir por quelhas e desvios, pelo meio de bairros de que nem ouviram falar, eles que, na rádio, ao verem referido o Nó de Francos ou Bessa Leite, não têm a menor ideia do que isso pode ser. Nos últimos anos, o trabalho tem-me levado imenso ao Porto. Amanhã, vai ser o lazer. Todo o pretexto é bom para ir ao Porto.

sábado, agosto 22, 2020

A “minha” cozinha

Quando, em 1985, chegado de posto em Angola, fui viver para perto do Campo Pequeno, alguém me disse maravilhas de um restaurante que tinha acabado de abrir, na rua de Entrecampos - o Poleiro. Eram dois irmãos Martins: o Manuel, a chefiar a cozinha, e o Aurélio, a dirigir a sala, então minúscula (não chegava a 30 lugares; depois aumentou apenas um pouco mais). A oferta inicial era eclética: havia espetadas madeirenses e comida minhota, por exemplo. O Aurélio, nos vinhos, converteu-se num constante descobridor de coisas novas e excelentes.

Por muitos anos, o Poleiro foi um “caso” numa restauração lisboeta que estava então muito longe de ter o leque de diversidade que hoje tem. Havia filas à porta. Ao almoço, era o mundo da política, do jornalismo, das empresas. À noite, eram casais e pequenos grupos. As reservas eram feitas com grande antecedência. Havia dias “impossíveis”.

Vivendo a cinco minutos a pé, tornei-me, de um regular frequentador, num bom amigo da casa. E já lá vão 35 anos. Noites houve em que o Aurélio me dizia, pelo telefone: “Pode ir descendo, que a sua mesa está quase pronta”, depois da rodada anterior. E, lá chegado, sabia ter à minha espera os peixinhos da horta e um belo queijo amanteigado, que ainda hoje vejo figurar por detrás dos níveis de colesterol das minhas análises. Grandes noitadas, com a família e amigos, passei no Poleiro.

Quem me conhece sabe que fiz sempre, por todo o lado, imensa “propaganda” do Poleiro. Não por ter a sua gente por amiga, mas porque achava, e continuo a achar, que por ali se servia e serve uma das mais genuinas cozinhas de Lisboa. Sem quebras, sem cedências, sem recuos na qualidade dos produtos. 

Hoje, como é da lei da vida, os dias do “Poleiro” não são os mesmos desse tempo, somada agora a pandemia a tudo o resto. Há muitos concorrentes, diversas ofertas gastronómicas, modas a prevalecerem. Mas o Poleiro ali está, impecável no que nos propõe, como ainda ontem tive ocasião de comprovar, numa visita que fiz à minha “cozinha”, como o Pedro d’Anunciação escreveu, há quase 15 anos, num artigo numa revista que encontrei por lá encaixilhado e de que aqui deixo imagem para memória presente.

sexta-feira, agosto 21, 2020

Giocondas e anjos-maus

Farto-me de me cruzar com as duas espécies, mas nunca me tinha sucedido encontrar uma de cada naipe, ao mesmo tempo. Aconteceu-me, há pouco, nos correios (onde assisti a uma pobre empregada doméstica, com ar de pouco urbana, ser endrominada para comprar um vigésimo de lotaria - mostrando onde chegaram os correios!)

As giocondas, trato-as assim intimamente há anos, são mulheres que entram em lugares públicos com um esgar levemente sorridente, às vezes um pouco sofrido, que prolongam até serem atendidas - nas lojas ou nos serviços. Há nelas um à-vontade natural, um estar-bem naquele espaço, quase sempre num registo de segurança, muito “easy-going”, falando pouco e baixo, dando ares de terem todo o tempo do mundo. Tenho amigas assim e são, em geral, boa gente (se não fossem, também não eram minhas amigas, claro!).

Descobri o conceito de anjo-mau numa canção de Jorge Palma. É a cara fechada, dos modelos de “passerelle”, parece que representando, em geral, uma atitude defensiva, desincentivando a confiança e a aproximação. Há anjos-maus lindíssimas! As anjos-maus são, em geral, muito mais novas do que as giocondas, ou melhor, às anjos-maus mais velhas, ou quando já não vão para novas, não se chama anjos-maus, chama-se apenas trombudas. Ah! E, ao que tenho apurado, não há muitas giocondas novas. (No que eu me fui meter, neste tempos de politicamente correto!)

E fico-me por aqui, nesta caracterologia de trazer por casa, numa Lisboa vazia, onde a tarde rende imenso e só a máscara está a mais. (Já estou a ver os espertos do costume a perguntarem: “E como é que, com as máscaras, viste as caras?”. Aí é que está o poder de observação. São muitos anos...)

A Torre



A casa é hoje a Fundação Maestro José Pedro. No largo Vasco da Gama, em Viana. Foi dos meus avós, não sei se logo que chegados de Ponte de Lima, em 1912. Olhando agora para o edifício, constata-se que nada mais há sobre o segundo andar. Mas nem sempre foi assim. Por ali ficava a Torre.

A Torre era o nome dado na familia a um sótão. Sempre houve a ideia de que nele haveria ratos. Nunca vi nenhum mas, à noite, se bem interpretava uns ruídos estranhos que, nas minhas madrugadas de leitura (a partir de certa idade, montavam-me uma cama num escritório, no andar imediatamente abaixo da Torre, rodeado de livros), escutava por cima do teto, parecia haver. Aliás, as frequentes idas dos gatos por lá indiciavam um potencial petisco dessa natureza, que também existiria na Loja, mas não os vou maçar mais com a geografia descritiva da casa da minha avó.

O sótão, como todos os sótãos, estava eternamente cheio de poeira. Não me consta que a “Seconceição”(a senhora Conceição, na versão fonética da minha infância) ou a sua filha Arménia, que oficiavam no serviço da casa, alguma vez tivessem passado pela Torre a espanejar aquela confusão de móveis velhos, de malas sem préstimo, de caixas e caixotes, de exemplares repetidos dos livros do Domingos Tarrozo (uma figura interessantíssima de Ponte de Lima), amigo da família: “O Monopólio da Sciencia Official”, “A Poesia Philosophica” e “A Forma de Votar”, sendo estes os títulos de que ainda me lembro - e que nunca li, claro.

A Torre tinha, para a frente, um janeluco voltado para o largo, na direção da doca. Se ainda existisse, desse envidraçado esconso ter-se-ia, nos dias de hoje, uma vista magnífica sobre o Gil Eanes, o navio-hospital que, à época, acompanhava a frota dos bacalhoeiros para as costas da Terra Nova. A doca era então fechada, tinha muro de pedra e um belo gradeamento e um portão (de correr, se bem me lembro), que eu só atravessava para ir “à natação”, acompanhado do meu pai (e imagino que da minha mãe, preocupada), para a escola benévola ali montada, no Verão, por uns carolas da cidade.

Da Torre tembém se avistava, ao longe, o caminho para o Cabedelo, com vista desfogada, ainda sem o mar de coisas industriais e portuárias que lá foi parar, já há anos. Espreitando, à esquerda, ali estavam (e estão), na sua solidez granítica, arquitetura muito Estado Novo, os escritórios do João Alves Cerqueira. Estendendo o pescoço, à direita, por muito que tentasse, não conseguia ver a capela da Senhora das Candeias, e a gorda a assomar no janeluco ao lado, mas tinha-se um olhar sobre o edifício comprido, que parece que é hoje um bingo, e que, ao tempo, foi uma fabriqueta de cordas para barcos, que se prolongava, no exterior, também para os lados da capitania, com grandes rodas de madeira.

Logo em frente da janela da Torre, impante, lá estava (e lá está - milagre numa cidade onde as estátuas costumam andar de um lado para o outro, como agora e em boa hora aconteceu ao Caramuru) a figura do Mercúrio, com casquete e âncora, encimando a taça com água. Nunca lhe achámos muita graça: viráva-nos as costas...

Não se via muito mais, da Torre? Essa agora! Da Torre via-se o mundo! Eu, pelo menos, vi.

(Dedico este texto aos meus primos Filomena e António, comigo, nos Verões, felizes, frequentadores dessa Torre da nossa infância)

quinta-feira, agosto 20, 2020

Pousadas de Portugal


As Pousadas de Portugal existem desde 1942. 

Segundo as minhas contas, desde esse ano e até hoje, foram construídas 67 Pousadas, 16 das quais desde 2003, ano em que o grupo Pestana assumiu a gestão. 

O grupo Pestana, que gere a rede de Pousadas desde 2003, manterá 36 unidades em funcionamento. Neste período de pandemia, algumas dessas Pousadas estão fechadas, presume-se que temporariamente.

Foram encerradas (ou deixaram de funcionar sob a égide das Pousada) 31 unidades, algumas antes do grupo Pestana ter assumido a gestão da rede.

Algumas pousadas funcionam em regime de concessão, sendo a sua gestão feita por entidades alheias ao grupo Pestana.

Na pesquisa que fiz sobre a abertura e desativação das Pousadas - tarefa nada fácil, porque não parece haver nenhum estudo de conjunto - não consegui determinar a data de encerramento, enquanto Pousadas, de algumas dessas unidades. Ficarei grato se os leitores puderem ajudar nesta pesquisa, mas sempre com dados seguros.

Unidades em funcionamento (36): 

1. Alijó (Barão de Forrester) (1944)*
2. Óbidos (Castelo) (1950)
3. Marvão (Santa Maria) (1956)
4. Bragança (S. Bartolomeu) (1959) *
5. Murtosa (Ria) (1960)
6. Valença (S. Teotónio) (1963)
7. Sagres (Infante) (1963)
8. Evora (Lóios) (1965)
9. Caniçada (S. Bento) (1968)
10. Extremoz (Rainha Santa Isabel) (1970)
11. Viana do Castelo (Monte de Santa Luzia). (1979)
12. Palmela (Santiago) (1979)
13. Guimarães (Santa Marinha da Costa) (1985)
14. Alvito (1993)
15. Beja (S. Francisco) (1994)
16. Queluz (Dona Maria I) (1995)
17. Crato (Flor da Rosa) (1995)
18. Arraiolos (Nossa Senhora da Assunção) (1996)
19. Amares (Santa Maria do Bouro) (1997)
20. Vila Viçosa (D. João IV) (1997)
21. Alcácer do Sal (Afonso II) (1998)
22. Ourém (Conde de Ourém) (2000)
23. Belmonte (Convento de Belmonte) (2001) *
24. Horta (Forte de Santa Cruz) (2004)
25. Lisboa (Terreiro do Paço) (2005)
26. 
Tavira (Convento da Graça) (2006)
27. Bahia (Convento do Carmo) (2006)
28. Angra do Heroísmo (Forte São Sebastião) (2006)
29. Estói (Palácio de Estói) (2009)
30. Viseu (2009)
31. Porto (Palácio do Freixo) (2009)
32. Cascais (Cidadela) (2012)
33. Covilhã (Serra da Estrela) (2014)
34. Óbidos (Vila de Óbidos) (2018)
35. Câmara de Lobos (Churchill Bay) (2019)
36. Vila Real de Santo António (2020)

(*) Unidades concessionadas

Unidades encerradas ou já não funcionando como Pousadas (31):

1. Elvas (Santa Luzia) (19.4.1942). Encerrou em 2012
2. Marão (São Gonçalo) (29.8.1942). Encerrou em 2007
3. Alfeizerão (S. Martinho) (24.9.1942)
4. Serém (Santo António) (24.9.1942)
5. Madeira (Vinháticos) (1942)
6. São Braz de Alportel (S. Braz) (11.4.1944). Encerrou em 2010
7. Santiago de Cacém (S. Tiago) (10.2.1945). Encerrou em 2001
8. Manteigas (S. Lourenço) (14.3.1948)
9. Berlengas (S. João Baptista) (1953)
10. Castelo do Bode (S. Pedro) (1.1.1954). Encerrou em 2003
11. Serpa (São Gens) (1960)
12. Miranda do Douro (Santa Catarina) (1962). Encerrou em 2002
13. Caramulo (S. Jerónimo) (1962)
14. Vila do Bispo (Forte do Beliche) (1963)
15. Setúbal (São Filipe) (1965). Encerrou em 2014
16. Póvoa das Quartas (Santa Bárbara) (1971) Encerrada em 2003
17. Santa Clara-a-Velha (Santa Clara) (1971)
18. Torrão (Vale do Gaio) (1977). Encerrou em 2007
19. Guimarães (Nossa Senhora da Oliveira) (1980) Encerrou em 2013
20. Vila Nova de Cerveira (D. Dinis) (VII) (1982). Encerrou em 2008
21. Batalha (Mestre Afonso Domingues) (1985)
22. Almeida (Senhora das Neves) (1987)
23. Santiago de Cacém (Quinta da Ortiga) (1991). Encerrou em 2008
24. Sousel (S. Miguel). (1992) Encerrou em 2010
25. Condeixa (Santa Cristina) (1993). Encerrou em 2019
26. Monsanto (1993). Encerrada em 2011
27. Mesão Frio (Solar da Rede) (1998). Encerrou em 2012
28. Vila Pouca da Beira (Convento do Desagravo) (2003). Encerrou em 2017
29. Proença-a-Nova (Amoras) (2006). Encerrou em 2011
30. Braga (S. Vicente) (2007) Encerrou em 2012
31. Madeira (Pico do Arieiro) (?)

quarta-feira, agosto 19, 2020

Os restos de Yalta


No plano geopolítico, a Bielorrússia, de que se fala por estes dias, configura um caso particular. Se bem se notar, o ocidente reclama, muito justamente, pelo comportamento autocrático do presidente Lukashenko, pelo ambiente fraudulento que envolveu a recente disputa eleitoral, pela violência oficial contra a expressão democrática dos seus cidadãos. Mas, ao contrário do que se verificou nos casos da Geórgia ou da Ucrânia, nenhuma voz sensata veio apelar à ideia de que uma Bielorrússia “livre” venha a integrar a NATO ou a União Europeia. Por que será?

Há resquícios dos velhos acordos de Yalta que ainda subsistem na memória do realismo internacional. E embora, no plano dos princípios, ninguém subscreva a legitimidade da tese das “esferas de influência”, é por demais evidente que prevalece, na racionalidade geopolítica do mundo, a ideia de que um país como a Bielorrússia faz parte de um terreno de tutela russa. 

Se Putin decidisse fazer avançar carros de combate pelas ruas de Minsk, caía “o Carmo e a Trindade”, mas não deixa de haver um entendimento implícito no tocante à aceitação de que Moscovo pode ter uma palavra a dizer quanto ao futuro do país. Se a “soberania limitada” faz ainda sentido para alguns cultores da “realpolitik”, é no caso bielorrusso que isso se aplica de forma bem clara.

Os cidadãos que vieram para as ruas, como alguns bem assinalaram, não parece terem pedido para que o país ingresse na Aliança Atlântica ou faça parte das instituições europeias, da mesma forma que, ao contrário de muitos georgianos e ucranianos, não pareceu emergir nesses movimentos uma atitude hostil para com a Rússia. Provavelmente, isso terá ocorrido assim por mero realismo, pela consciência de que o seu futuro, se fará, quase inevitavelmente, num qualquer modelo de relação íntima com Moscovo.

A alguns chocará a frieza desta análise, que parece conceder bondade àquilo que espelha uma mera relação de forças. Porém, estou apenas a refletir sobre como as coisas são, não como deviam ser. É que não é por acaso que os poderes que contam, na ordem internacional, sempre separam as águas, quando abordam os casos nacionais na periferia russa.

A avaliar pelas reações, Putin não sabe muito bem o que há-de fazer com o seu incómodo vizinho. Já terá percebido que Lukashenko é, cada vez mais, um fardo. Não está disposto a deixar que o ocidente intervenha, mas, muito claramente, também ainda não decidiu como utilizará o seu poder de vizinhança. No meio, impotentes, estão os bielorrussos.

terça-feira, agosto 18, 2020

A vida é assim!


Em 2002, no auge do seu confronto com a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), cuja presidência Portugal então titulava, a Bielorrússia enviou a Viena, por duas vezes consecutivas, um jovem e brilhante diplomata, à frente de uma missão que connosco discutiu a então muito sensível questão da manutenção de um escritório da organização em Minsk. Chamava-se Igor Leshchenya. 

Tive com ele longas horas de trabalho e, também muito graças à pertinácia negocial do meu colega Carlos Pais, meu “deputy” na chefia da nossa missão, levámos a bom porto o nosso objetivo - garantir que a OSCE permanecia na capital bielorrussa, para reportar sobre as insuficiências democráticas do país. 

Muitas vezes, desde então, me tinha perguntado o que teria acontecido àquele diplomata, na complexa vida política bielorrussa.

Tive a resposta há minutos.

segunda-feira, agosto 17, 2020

Estátuas, descobertas e quejandos

Num ato de insuportável arrogância histórica, a atual geração acha-se no direito de ser a julgadora do que de bem ou de mal as anteriores gerações pensaram ou fizeram, contestando-lhes as ideias e destruindo-lhes os símbolos.

Viagens nas terras dos outros


Comem-se uns salmonetes de truz em Bragança, perto das Fontainhas, saindo do Castelo para apanhar o ferry para Gimonde. Aprendi isso com o abade de Baçal, primo do de Priscos. Podia optar por um lombelo, mas não é a mesma coisa, porque se perdem as algas e não dá para ver os golfinhos a saltar, com a Margueira a despontar na estrada para Miranda. Dizem-me, mas não posso confirmar, que a dona Iracema, lá no Geadas, faz uns gambuzinos alimados com arroz do mesmo, coisa que também servem no Christo, na marina do Fervença, mas não aceitam reservas e, sem reserva, só no G. E agora vou a Setúbal, pela ponte nova que sai de Tróia (deixo imagem de ontem), apanhando depois a derivante em direção a Vinhais, terra de sardinhas e de galgas na grelha.

(Ao meu amigo José Luis Seixas e senhora, a banhos em praias de montanha nos mares do Norte, saudáveis terras sem virus e com butelo)

Chipre

Por muitos e bons anos, escreveu-se “em Chipre”. Um dia, um qualquer jornalismo decidiu-se tomar confianças e passou a escrever “no Chipre”. Contudo, em matéria de ilhas mediterrânicas, não vejo essa imprensa inclinada a passar a dizer “na Malta”. Coisas...

domingo, agosto 16, 2020

16 de agosto de 1900



Esta placa está afixada no local em que foi a casa em que Eça de Queiroz morreu, em Neuilly, que entretanto foi demolida.

A placa original, oferecida pela Escola de Belas-Artes do Porto, que havia sido colocada, em 1950, pelo então embaixador português em França, Marcello Mathias, tinha-se tornado quase ilegível, com um desgaste que a tornou irrecuperável.

O queirosiano Luís Santos Ferro, há meses falecido, chamou a minha atenção para a necessidade de ser colocada uma nova placa, assinalando o local da morte do escritor. Optei por mandar fazer (sem encargos para o Estado, diga-se) e colocar uma réplica, em tudo igual à placa original, que se vê na fotografia.

Trouxe de Paris, na minha bagagem, a placa original e entreguei-a à Fundação Eça de Queiroz, em Tormes, Baião, onde está hoje exposta.

Eça de Queiroz


Há precisamente 120 anos, no dia 16 de agosto de 1900, morria em Paris, com 55 anos, um dos mais importantes escritores da língua portuguesa, José Maria Eça de Queiroz. À época, era cônsul-geral de Portugal na capital francesa.

sábado, agosto 15, 2020

Jantar


Tínha passado por lá, há dias, para reservar uma mesa para jantar. Havia uma boa recordação da última visita àquele restaurante. Imagino que apenas nesta época, a casa, pura e simplesmente, não atende o telefone. Leu bem: não aceita telefonemas. Uma imensa deselegância para com os clientes. À hora exata, nem mais um minuto, chegámos. “Vão ter de esperar”. Mau, mestre! As coisas começavam a descarrilar. Se fosse em Lisboa, ter-me-ia ido embora. Há muito que decidi já não tenho idade nem paciência para ficar à espera, à porta de um restaurante, depois de ter sido fixada uma determinada hora, com antecedência. Mas aqui, numa aldeia perto da praia, com tudo o resto, em quilómetros em volta, garantidamente cheio ou sem qualidade, assomou-me uma réstia de paciência comodista, adocicada por um gin tónico (onde terá surgido esta mania de o servir em incómodos copos, que parecem bolas de andebol!), para entreter o tempo. O atendimento, contudo, desde o primeiro momento, havia sido correto, nada arrogante, sem sombra de privilégios de acesso prioritário concedido a clientes conhecidos, como notícias publicadas haviam dado como sendo vício da casa. Pelo contrário: constatou-se um respeito absoluto pela ordem das reservas e até uma abertura imediata para aceitar uma pessoa a mais, face à marcação feita. Por fim, meia hora depois da hora marcada, lá chegou a nossa vez. Síntese: sala simples mas agradável, lista bem construída (e renovada, face ao que conhecia), carta de vinhos apenas razoável, serviço muito delicado e competente, uma comida excelente, preço final nada especulativo e aceitável para a zona e período do ano. A irritação inicial desvaneceu-se, por completo. Saímos muito satisfeitos. Para o ano, comigo furioso, uma vez mais, pela dificuldade no contacto, lá voltaremos. À Dona Bia, na Comporta.

sexta-feira, agosto 14, 2020

Notícias da padeira


Hoje é dia de Aljubarrota. Imagino o sobrolho franzido de alguns, dos que acham que a História tem, nos dias que correm, de ser lida sempre ao contrário, sem o que seremos acusados de alinhar no reaccionarismo da historiografia patrioteira. Salvo os iberistas, uma raça (pode escrever-se raça?) que gostava de poder pagar a bica em pesetas, não vejo que diabo de politicamente correto se pode opor à comemoração da data em que a aristocracia portuguesa, farta de ser mal-tratada por Castela, nomeou um dos seus para gerir este lado da península, com manif ao pé da Ginginha e tudo. Que assim ficou, mais ou menos independente, até hoje. Até sempre, espero.

Deixo aqui uma imagem que me dizem que saiu, no dia seguinte, no “Cavaleiro Andante”, desenhada por Vitor Péon, que passava por ali nesse dia 14 de agosto de 1385.

O estrangeiro próximo


O conceito de “estrangeiro próximo” foi crismado por Moscovo para designar, com assumido paternalismo estratégico, as entidades nacionais vizinhas, resultantes da implosão da antiga URSS, após esta ter sido derrotada na Guerra Fria. São 15 Estados, o maior dos quais é a Federação Russa, sua sucessora no plano internacional.

Com desagrado de Moscovo, em período de enfraquecimento, três desses Estados ingressaram na Nato – Estónia, Letónia e Lituânia. Mas Putin conseguiu evitar, num tempo de maior assertividade, que dois outros viessem a ter um destino idêntico – Ucrânia e Geórgia.

Nestes, a longa mão russa continua a manter uma tutela de influência determinante. No primeiro, na região de Donbass, que rejeita a soberania imposta por Kiev. No segundo, nos verdadeiros “bantustões” que são a Abcásia e a Ossétia do Sul, a que (quase só) Moscovo deu a designação de “países independentes”, após anos de disputa com a Geórgia.

A este tipo de situações convencionou-se chamar “conflitos congelados”, i.e., situações que configuram um “statu quo” de guerra suspensa, por disputas territoriais, que irrompe a espaços.

Dos restantes nove estados resultantes da URSS, cinco estão na Ásia Central, todos com regimes ditatoriais travestidos de democracias – Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Usebequistão. Não é uniforme o modo como a Rússia se relaciona com cada um deles, mas pode dizer-se que Moscovo mantém um “droit de regard” sobre todos, garantindo que eles não confrontam os seus interesses geopolíticos essenciais.

Dois outros Estados, no Cáucaso do Sul, a Arménia e o Azerbaijão, mantêm entre si um outro “conflito congelado”, sobre o território do Nagorno-Karabakh, que Moscovo segue à distância.

Restam ainda dois países.

Um é a Moldova, entre a Roménia e a Ucrânia, com outro “conflito congelado”, a propósito do território da Transnístria, onde uma velha base militar garante um pé à Rússia.

O outro é a Bielorrússia, encravada entre a Rússia, a Ucrânia, a Polónia, a Letónia e a Lituânia. Desde 1994, é dirigida com mão de ferro por Alexander Lukashenko, à frente de um regime que limita as liberdades dos cerca de 10 milhões de cidadãos do país. Agora, o ditador voltou a ser “eleito”. Com a Rússia, tem uma relação algo estranha, mas de objetiva dependência.

O país é hoje um “buraco negro” dentro de uma Europa basicamente democrática. O ditador e o seu regime foram já objeto de sanções. Por muita pressão que a União Europeia possa fazer, perante alguma complacência objetiva da administração americana, Lukashenko não cairá, enquanto a Rússia não quiser.

A Guerra Fria suspendeu a História por algumas décadas. Desde que acabou, num registo de humilhação para Moscovo, a Rússia criou, em seu torno, um mundo de Estados com os quais mantém uma tensa e diferenciada expressão do seu poder. Não havendo condições para regressar ao anterior estado de coisas, Putin é hoje senhor do tempo dos outros. Isso provoca alguns, sossega outros e dá a todos a certeza de quem, na realidade, continua a mandar por ali.

Restos de conversa

- Os teus textos são, cada vez mais, um problema para mim. Concordo com imensas coisas que neles dizes mas, de súbito, em alguns deles, deparo com algo que me abertamente me desagrada. É estranho porque, no passado, as coisas não eram assim. O que escrevias era mais facilmente aceite, no seu todo. E olha que não sou a primeira pessoa a notar isto! Fazes de propósito?

- Faço e não faço. Até posso perceber que te sintas assim, ao ler o que vou escrevendo. A questão é que, com o tempo, optei por ser mais transparente, de não procurar ser consensual a todo o custo. É que, na vida, nem tudo é a-preto-e-branco. Há sempre aspetos das coisas que não "rimam" com o resto. Por isso, digo o que penso, doa a quem doer - e já vi que dói a alguns amigos, como tu. Mas quero fugir àquela frase do Sérgio Godinho: "estar de bem com os outros e de mal contigo". É só isso.

quarta-feira, agosto 12, 2020

Ordem do dia




Mentiria se não dissesse que tenho a certeza de que houve pessoas que, à vista do anúncio do imenso dinheiro que aí virá da Europa, terão exclamado, desanimadas, para si mesmas ou para os seus próximos: “Agora é que ninguém os tira de lá!”. Alguns, no limiar do masoquismo, terão mesmo lamentado que o país tivesse tido essa inesperada bênção, por entenderem que esse choque financeiro contribuirá para a solidificação de um desequilíbrio político que detestam - e que acham tanto ou mais nefasto do que os males económicos do país. Muitas dessas pessoas, que estão a ler-me agora, assumam-no ou não, sabem que o que escrevo é pura verdade.

Não sou politólogo para conseguir explicar como chegámos aqui, a este entrincheiramento, que se tem vindo a agravar na última década, criando dois mundos antagónicos, alimentados por muita acidez, servidos por palavras ofensivas, pela perda de respeito pelos adversários, pelo enfraquecimento da moderação e do bom senso. 

Muito desse confronto já vinha de trás, quase desde o 25 de Abril. Mas data da última crise financeira o acantonamento que colocou aqueles que viram na “troika” uma oportunidade para queimar etapas, para um choque de reforma liberal, frente a quantos recusavam ver subvertida a ordem da sociedade em que se haviam habituado a viver. Perante a arrogância dos primeiros, muitas vezes insensível e cruel, foi-se enquistando, do outro lado do espetro, uma resistência desesperada que, no limite, conduziu a um entendimento à esquerda, que nada fazia prever como possível. A “geringonça” foi a expressão para-institucional dessa realidade, mas todos já percebemos que continua a haver mais vida à esquerda, para além dela.

O que talvez ninguém estivesse à espera é que, na outra margem política, o desvario viesse a tomar conta das hostes. Apoiado num tremendismo que raia a insanidade, campeia por aí um discurso de “finis patriae“, como se o país estivesse à beira da catástrofe. O alarmismo diário dos títulos da imprensa e da demagogia das televisões, somado ao azedume nas redes sociais, tudo isso gera um caldo de imaginária instabilidade e crise, que as sondagens, sempre ingratas, se encarregam de desmentir.

O atual pessimismo do campo conservador sobre o seu próprio futuro esquece, contudo, uma realidade que o passado nos ensinou: nunca devemos subestimar a capacidade da esquerda de dar tiros nos seus próprios pés. Um dia, mesmo sem saber como, a direita lá regressará ao poder. Aliás, chama-se a isso democracia, para os que não saibam.

Interpretações


Ontem, numa conversa de praia, veio à baila, já nem sei bem porquê, a figura do antigo presidente da Guiné-Bissau, Kumba Yalá, que faleceu em 2014. Lembrei-me de uma história que costumo contar.

Um dia de 2001, na ONU, em Nova Iorque, estive presente, em representação de Portugal, numa reunião do “grupo de amigos da Guiné-Bissau". Os “grupos de amigos” são estruturas informais que agregam vários países com o desejo comum de acompanharem uma determinada situação ou prosseguirem um particular objetivo temático, no quadro das atribuições das Nações Unidas.

O novo presidente guineense fora convidado a fazer uma apresentação sobre a situação que se vivia no seu atribulado país, com vista a mobilizar a boa vontade e a ajuda da comunidade internacional. 

O tempo que lhe fora destinado para intervir foi largamente excedido, mas o seu discurso tinha coerência e demonstrava uma determinação no sentido da correção de algumas políticas, tudo envolvido num registo expressivo que lhe era muito típico, desde logo marcado pelo barrete de lã vermelha que nunca o abandonava.

Com o meu colega brasileiro, Gelson Fonseca, e para potenciar o efeito positivo da reunião, combinei duas intervenções sucessivas de apoio à declaração do presidente, procurando dar ênfase à sua declarada vontade de mudança. 

Outros embaixadores, em especial de países "do Sul", seguiram uma linha idêntica e, a meio da reunião, o ambiente podia considerar-se globalmente positivo, quiçá apenas sobrando as tradicionais reticências face à sustentabilidade das políticas anunciadas, que algumas lideranças africanas, em especial oriundas de países mais frágeis, nunca deixam de suscitar.

O delegado de um país do Norte da Europa abordou, entretanto, a sensível questão da corrupção. 

Notei que Kumba Yalá ficou muito atento à intervenção e, no imediato, pediu para responder. Com muita ênfase, marcou a sua firme determinação em pôr fim ao flagelo da corrupção no seu país. E, a certo passo, agarrando firmemente o ombro da ministra dos Negócios Estrangeiros guineense, que estava a seu lado, disse, bem alto:

- Vou ser muito duro, podem acreditar. Por exemplo: aqui a senhora ministra. Se eu vier a descobrir que ela rouba, que é corrupta, podia mandar matá-la. Mas não, não a vou mandar matar! Mas vai levar tanta porrada, tanta pancada, que nunca mais vai querer roubar. Mas ela não rouba, não! - e dizia isto, rindo-se, contemporizador, abanando a constrangida ministra, que afivelava um sorriso que quero crer que seria amarelo...

Kumba Yalá falava em português e, na sala, para além do embaixador brasileiro e de mim próprio, que tínhamos olhado um para o outro algo preocupados com o facto do presidente poder ter "estragado tudo" com aquelas palavras, creio que só a intérprete, que ia traduzindo as intervenções do presidente, se inteirara do teor da embaraçante declaração. 

Contudo, a coreografia e o tom de Yalá tinham criado uma particular curiosidade nas restantes pessoas à roda da mesa, que aguardavam com expetativa a interpretação.

A intérprete, consciente da delicadeza do momento, olhou para mim, em busca de "ajuda" para superar o problema. Fiz-lhe um gesto discreto, a pretender significar a necessidade de "adocicar" fortemente as frases do presidente. 

E foi então que assisti a uma magnífica demonstração de profissionalismo, com a senhora a dizer algo como: "Mr. President wants to emphasize that corruption, in his country, is not punished with death penalty. Nevertheless, under his leadership strong mesures will be taken against those who may incur in such practices, even if they are members of his own government" (O senhor presidente deseja sublinhar que a corrupção, no seu país, não é punida com pena de morte. No entanto, sob a sua liderança, serão tomadas fortes medidas contra quantos venham a incorrer em tais práticas, mesmo que se trate de membros do seu governo).

Olhei para o meu colega brasileiro e demos um suspiro de alívio. No final, dei uma palavra de parabéns (e gratidão) à intérprete. Tinha-nos ajudado a salvar a sessão. Uhf!

terça-feira, agosto 11, 2020

O “Cavaleiro Andante”


Há dias, na estante de uma casa onde passo férias, encontrei o livro “Beau Geste”. Não sei se vou ter tempo para o ler, mas recordei épocas em que, em banda desenhada, devorei aquela magnífica história no “Cavaleiro Andante”.

O "Cavaleiro Andante" moldou para sempre o meu imaginário. Algumas memórias fortes que me marcaram a infância e juventude foram fixadas a partir dessa incomparável revista de banda desenhada (na altura, dizia-se "de quadradinhos"), que acolhia preferentemente os autores tributários da "escola belga" de BD, e que abriu caminho aos primeiros desenhos portugueses dessa natureza.

A revista falava-nos de História, de desporto, de literatura, trazia jogos e promovia a interação com os seus jovens leitores. Quando o "Cavaleiro Andante" nasceu eu tinha eu quatro anos. A revista durou dez anos. Observando alguns números mais antigos e o facto de várias histórias neles inseridas permanecerem bem vivas na minha memória, concluo que, muito provavelmente, eu tenha então lido restrospetivamente toda a coleção.

Durante anos, pela casa dos meus pais, havia números dispersos dessa revista semanal que tão importante fora para a minha formação. Fui assim matutando na possibilidade de vir a reconstituir a coleção completa da revista.

Um dia, em 1986, decidi colocar um pequeno anúncio em "A Capital", onde dizia estar interessado em adquirir a coleção completa do "Cavaleiro Andante". Surgiu uma única resposta. Numa noite, fui a uma cave na avenida Dom Carlos, em Lisboa, onde vivia o vendedor.

Era um homem bastante mais velho do que eu. Tinha à venda uma excecional coleção, a que faltavam apenas meia dúzia de números, o que me satisfazia por completo. A conversa nunca a esquecerei. O homem mantinha as revistas embrulhadas em jornais e deixou claro que desfazer-se delas lhe custava bastante. Os olhos brilhavam-lhe enquanto me contava que, ao longo dos anos, tinha conservado cuidadosamente essa publicação que, também para ele, fora da maior importância. A partir de certa altura, a sua ideia fora completar a coleção para a oferecer ao filho. Porém, para sua grande desilusão, o filho, ao chegar o momento em que o pai se aprestava para lha oferecer, não manifestara o menor interesse. Agora, ele próprio tinha escasso espaço para a manter. Por isso, ao ver o meu anúncio, decidira-se a vendê-la. Não tive coragem para regatear o preço que me pedia: 15 contos. Era dinheiro! Mas valeu bem a pena!

É assim que hoje sou um feliz proprietário da coleção completa do "Cavaleiro Andante". Encadernei-a, preservo-a com cuidado e abro-a com alguma frequência, com um prazer que só aqueles que foram leitores fiéis da revista conseguirão perceber.

segunda-feira, agosto 10, 2020

As horas da Bielorrússia


Um dia de 1996, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português recebeu uma nota da embaixada da Bielorrússia em Londres, cujo titular estava acreditado em Lisboa, pedindo "as melhores diligências" para que, de futuro, em língua portuguesa, o nome do país fosse designado por "Belarus" e não por "Bielorrússia". A ideia, ao que parece, era distanciar o país da imagem da Rússia. Em russo, a palavra "Bielorrússia" significa "Rússia branca". Recordo-me de ter tido cuidado de mandar explicar ao governo de Minsk que, em Portugal, o Estado não se arrogava o direito de controlar a tradução dos topónimos. Não insistiram.

A Bielorrússia é um estado encravado entre a Rússia, a Ucrânia, a Polónia, a Letónia e a Lituânia, com uma democracia de "faz-de-conta", muito típica de alguns Estados que emergiram após a eclosão da União Soviética. Desde 1994, é dirigida com mão de ferro por Alexander Lukashenko, que se mantém à frente de um regime que limita as liberdades essenciais dos cerca de 10 milhões de cidadãos do país. 

Ontem, houve por lá eleições que, sem surpresas, renovaram o mandato do sempiterno presidente. A esta hora, as ruas de Minsk não estão nada sossegadas.

Lukashenko teve artes de conseguir que a sua capital, Minsk, fosse escolhida para os encontros tendentes a discutir a pacificação da Ucrânia e, com alguma regularidade, lá o temos visto, impante, abrir caminho às negociações entre a Alemanha, França, Rússia e Ucrânia. Este papel "mediador" de Minsk já havia sido reconhecido em 1992, quando foi criado o "grupo de Minsk", que tem a seu cargo, no âmbito da OSCE, o acompanhamento da questão do Nagorno-Karabakh, entre a Arménia e o Azerbaijão. Não deixa de ser irónico que seja necessário sediar na capital de um país liderado por um autocrata encontros de paz. Mas é a vida...

Em 2002, a Bielorrússia cruzou-se no meu caminho. No âmbito da presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), ao tempo em que representava diplomaticamente Portugal junto da organização, em Viena, coube-me gerir um caso interessante com a Bielorrússia. Descontente com o teor dos relatórios que a "Missão" (já explicarei porque coloco a palavra entre aspas) da OSCE em Minsk produzia, que punham a nu as arbitrariedades anti-democráticas das suas autoridades, o governo de Lukashenko optou por um procedimento hábil: forçou discretamente os trabalhadores bielorrussos a desvincularem-se da Missão e não renovou os vistos aos elementos estrangeiros que nela trabalhavam. Assim, ao final de alguns meses após esta ação ter sido desencadeada, a Missão deixou de ter condições para funcionar. E o governo de Minsk anunciou unilateralmente a data de 31 de dezembro de 2002 como limite às suas atividades, argumentando que se tinha "esgotado o seu objeto". Para a Bielorrússia, as coisas eram imperativas: a Missão da OSCE em Minsk tinha de encerrar naquela data.

Como presidente do Conselho Permanente da OSCE, em Viena, fiquei com a "batata quente" na mão. Portugal iria ficar na pequena história da organização como o país que "deixara encerrar" a Missão em Minsk, facto que podia vir a ser um precedente muito perigoso para outros Estados membros da OSCE, eles próprios pouco satisfeitos com o que a OSCE reportava sobre as fragilidades da sua vida política interna. Os meus colegas ocidentais - com destaque para os EUA, França, Reino Unido e Alemanha - pressionavam-me para que eu tentasse encontrar uma solução para que a OSCE pudesse continuar em Minsk. A Holanda, que nos sucederia na presidência no dia 1 de janeiro de 2003, preparava-se já para "lamentar" ter o início do seu mandato marcado por esse facto.

Portugal "portara-se bem" com a Bielorrússia até então. Contra a vontade da União Europeia, trabalhara para que o seu ministro dos Negócios Estrangeiros viesse a cimeira da organização no Porto, no início do mês de dezembro, a fim de que fosse possível tentar que os então 55 Estados da OSCE conseguissem acordar conclusões consensuais (isso foi possível, pela última vez, nessa cimeira do Porto, em 2002, e nunca mais o seria na história posterior da OSCE, e já passaram 18 anos). Simultaneamente, eu próprio cuidara em manter sempre uma relação cordial com o meu colega bielorrusso em Viena. Era um homem grande, um cientista feito embaixador, que percebia claramente que a "bofetada"que a Bielorrússia estava prestes a dar à OSCE não deixaria de ter consequências negativas para o seu país, que já se defrontava com sanções por parte da União Europeia e com um ambiente de isolamento e hostilidade crescente. Ser embaixador da Bielorrússia era (e nunca deixou de ser) uma tarefa muito difícil.

Com o meu colega e meu “deputy", embaixador Carlos Pais, embora sem a menor instrução orientadora de Lisboa, decidimos propor ao Secretário-Geral da OSCE e, posteriormente, à Bielorrússia uma saída para a organização manter uma presença em Minsk, com um mútuo "face-saving". Nos termos desse "deal", a "Missão OSCE em Minsk", que tinha um mandato próprio, aprovado anos antes do Conselho Permanente da OSCE, encerraria formalmente, como os bielorrussos desejavam, no fim do ano. Entretanto, Em contrapartida, propúnhamos a instalação de um "Escritório OSCE em Minsk", com um novo mandato, que tentaríamos negociar com Minsk e fazer aprovar pela OSCE até ao final do ano, para entrar em vigor no primeiro dia do ano seguinte.

Depois de alguma hesitação, a Bielorrússia "comprou" a nossa ideia e fez deslocar a Viena, por duas vezes, uma delegação chefiada por um representante pessoal de Alexander Lukashenko, com o qual discuti, durante horas intermináveis, por cerca de quatro dias, o texto do novo mandato, que seria depois vertido num "memorandum of understanding". Posso hoje revelar que os quatro países ocidentais, que, com a Rússia, eram vulgarmente referidos como os "major players" dentro da organização, "fizeram-nos a vida negra" até ao último instante, com exigências nas funções futuras do "Escritório" de que os bielorrussos nem queriam ouvir falar.

No termo de uma presidência que, por razões que não vêm aqui para o caso, já havia sido muito difícil, este trabalho de "go-betweener" revelou-se de extrema complexidade e o ter-se conseguido um resultado positivo muito se ficou a dever ao meu colega Carlos Pais que, com uma "paciência de santo", me ajudou a inventar fórmulas de texto imaginativas que combinassem um mínimo de eficácia operacional futura do Escritório, com uma "ambiguidade criativa" que conseguisse fazer a ponte. E tivemos sucesso: a "Missão" encerrou em 31.12.02 e o "Escritório" iniciou a sua existência em 1.1.03.

A prova provada da eficácia do Escritório seria dada, oito anos mais tarde, pela própria Bielorrússia, que decidiu impor a data de 31.12.10 como data limite para a atividade daquela presença da OSCE, obrigando então, e definitivamente, à saída da OSCE de Minsk, ao que parece descontente com o facto da organização ter denunciado, por intermédio daquele Escritório, mais uma vaga das tradicionais irregularidades eleitorais praticadas pelo governo de Lukashenko. A prazo, veio assim a constatara-se que o mandato que Portugal desenhou foi mesmo incomodamente eficaz.

domingo, agosto 09, 2020

Apenas uma precisão


Michel Barnier e Pierre de Boissieu são duas figuras importantes da vida europeia.

Barnier é o atual negociador do Brexit, em nome dos 27, lugar que tem desempenhado com uma competência unanimemente reconhecida. Foi comissário europeu e, por um breve período, ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país. Em 1996, data em que ocorre a historieta que vou contar, ele era o representante da França, como ministro adjunto para os Assuntos Europeus, na Conferência Intergovernamental para a revisão do Tratado de Maastrich. Eu tinha então essa mesma tarefa, por Portugal.

De Boissieu, hoje aposentado, era representante permanente (nome dado aos embaixadores nas estruturas multilaterais) francês junto da União Europeia. Era um profundo conhecedor das matérias europeias e iria chegar, anos mais tarde, a secretário-geral adjunto do Conselho de Ministros da UE. O seu poder derivava, não apenas da sua inteligência e conhecimentos, mas, dizia-se, da sua pertença à família De Gaulle, que lhe garantia um apoio constante em Paris, independentemente da rotação dos governos. Foi um extraordinário servidor público francês, com quem tive algumas “accrochages”, mas por quem ganhei um imenso respeito.

Entre Barnier e De Boissieu a corrente não passava de todo. Fui testemunha de vários episódios, que muito animaram esses tempos negociais. Apesar de ministro, Barnier não conseguia impedir a impertinência iconoclasta de De Boissieu, que divertia toda a gente à volta da mesa. 

Um dia, durante uma reunião negocial em Bruxelas, o ministro, com o embaixador a seu lado, decidiu citar uma opinião que recolhera de François Mitterrand, que tinha morrido meses antes. Tratava-se de uma qualquer ideia sobre o futuro ou o sobre passado da Europa, já não recordo bem.

Barnier, como era seu timbre, foi algo pomposo ao fazer a confidência. Mitterrand era de um campo político oposto ao seu (e ao de De Boissieu, já agora), o que dava foros de alguma singularidade à sua invocação. A sala estava silenciosa, talvez menos por reverência e mais por curiosidade. Foi enfático, solene, ao repetir: “Mitterrand disse-me isso, na conversa que tivemos, só nós dois, em sua casa”. 

Ora isto era "demais" para o embaixador, o qual, de viés, olhava Barnier com visível ironia, desde o início da intervenção. E não resistiu. Chegou-se à frente, com o seu eterno pullover azul com um furo do cotovelo, inclinou-se para o microfone que partilhava com o ministro, o qual gozava um segundo de pausa, explorando o efeito da sua frase, e "esclareceu", sobre o momento da conversa com Mitterrand:
- “Avant sa mort, bien sûr!”, não fosse alguém suspeitar de qualquer diálogo do governante com os espíritos...

A sala soltou-se em gargalhadas. Todo o efeito pretendido por Barnier se esvaiu, naquele instante. Já ninguém se lembrava mais o que de tão decisivo teria dito o ilustre falecido. 

Olhávamos para a cara furiosa do ministro, que se entaramelava a tentar recolar o discurso perante um fundo sussurrante de risotas contidas, e para o ar divertido do embaixador, ao seu lado, ciente de que tinha ganho o seu dia...


sábado, agosto 08, 2020

Falhado

Por que será que a comunidade internacional, que frequentemente designa a Guiné-Bissau como um “estado falhado”, nunca o faz no caso do Líbano?

Já chegámos à Madeira?

O líder madeirense do PSD defende uma aliança com o Chega, com o argumento de que Sá Carneiro também se associou ao CDS na AD.

Equiparar o Chega ao CDS, partido com o qual o PSD se coligou na Madeira, é um belo “elogio” para o CSD, não é?

Já chega!

Querer um Chega “moderado” é como querer um PCP “moderno” e “aberto”. O PCP ainda existe porque não é nada disso (ao contrário dos seus homólogos noutros países, que desapareceram por completo). Se o Chega se “moderasse”, não era o Chega e o seu líder regressava a Loures...

Juan Carlos

Curiosamente, Juan Carlos passou a ter nas mãos o futuro da monarquia em Espanha. Se acaso lhe passasse pela cabeça refugiar-se num país sem tratado de extradição com a Espanha, o trono de Filipe VI, com o qual pactou o seu exílio, ficaria por um fio.

Desventura

O deputado do Chega quer ser candidato à presidência da República. Está no seu direito. Para isso tem de prescindir, em definitivo, da função de deputado. Nem a mais benevolente interpretação extensiva das exceções para a supressão do mandato permitiria o seu regresso. É a vida!

E se Trump perder?

Não se sabe se Donald Trump vai ou não conseguir manter-se no poder, depois das eleições de novembro. Mas todos sabemos que, no caso de ele vir a abandonar a Casa Branca, isso se terá ficado a dever à gestão caótica que fez da pandemia, que é, visivelmente, a principal causa da forte erosão registada na sua popularidade. A não ter ocorrido esta crise, a probabilidade de Trump ser reeleito era muito elevada - hipótese que, aliás, não pode ainda ser descartada.

Todos também já perceberam, a começar pelos americanos, que, se Joe Biden vier a suceder-lhe, sê-lo-á menos por um entusiasmo popular ao seu projeto alternativo e, muito mais, pelos erros cometidos por alguém que, já é quase uma certeza, a História virá a consagrar como o pior presidente que a América alguma vez teve.

As hipóteses de sucesso de Biden, um político decente sem um brilho particular, assentam na continuidade do processo de desgaste político do seu adversário e na esperança de que, nos próximos meses, a imagem do candidato democrático não vir a degradar-se. Isso passa também por uma boa seleção da sua parceira (será uma mulher) no “ticket” presidencial, a qual também estará, até ao último momento, sob um forte escrutínio.

O lugar de presidente do EUA, como os anos de Trump mostraram à saciedade, é uma fonte extraordinária de poder. Pode dizer-se que, em regimes democráticos, em termos de personalização, o caso americano é quase único. A legitimidade oriunda das urnas (e é uma mera “technicality”, que não olha à singularidade do sistema federal, a questão de um presidente poder ser eleito sem ter sido o candidato mais votado) concede ao chefe do Estado americano uma discricionaridade dificilmente admissível noutros regimes. O modo como Trump tem vindo a exercer essa liberalidade dá ainda mais evidência ao facto. No passado, com presidentes “normais”, com os mecanismos equilibradores do Estado a funcionarem, podiam notar-se alguns exageros. Mas Trump levou tudo isso ao absurdo.

Um presidente americano, contudo, não é apenas presidente do seu país. A expressão global dos EUA converte qualquer gesto do líder americano, com implicações externas, num vetor de influência sobre toda a sociedade internacional. E se, em condições regulares, o mundo sabe que tem de contar com a atitude americana como um fator condicionante, e muitas vezes constrangente, Trump representa uma realidade verdadeiramente nova. Ao colocar em causa a ordem internacional que estava pactuada, Trump provocou uma subversão traumática nos instrumentos de regulação global, abalando equilíbrios que os próprios EUA tinham ajudado a dar por adquiridos.

O caráter “revisionista” (como a teoria política gosta de designar) de algumas das suas posturas abriu sérias feridas e trouxe ao mundo, pela primeira vez em mais de sete décadas, uma América imprevisível, egoísta, abertamente não solidária, que colocou em causa a sua autoridade moral, como maior potência ocidental. Ao rejeitar abertamente o diálogo e o compromisso, como fórmulas reguladoras da estabilidade do mundo internacional, substituindo esse entendimento por uma lógica de pura afirmação do seu poder nacional, esta nova América transmitiu um sinal negativo a outros Estados cujos regimes ansiavam há muito por uma libertação do espartilho multilateral. Nenhuma ordem internacional pode sobreviver se os seus principais atores se considerarem isentos dos mecanismos que a regulam. Esse terá sido um dos aspetos mais nefastos do período Trump.

E se Biden ganhar? Há uma perigosa ilusão de que, se Trump vier a ser derrotado, haverá como que um “reset”, uma espécie de idílico regresso à ordem do tempo de Obama.

Ora política não funciona assim. É claro que é expectável, nesse cenário, uma retoma da atenção face à Europa, uma atitude mais simpática face ao mundo multilateral. Mas não se espere um regresso à “square one”, no jogo internacional. Muitos dos interesses americanos, protegidos por Trump, procurarão acolhimento numa eventual administração Biden. E tê-lo-ão.

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...