“Sabias que o Duarte nunca muda a hora?”
Era o meu tio quem fazia a pergunta ao meu pai. Este estava farto de saber, há décadas, que o Duarte, para mim o “senhor Duarte”, nunca mudava a hora no seu velho relógio de bolso. Mas, com um leve sorriso, e talvez com um “Ah! Sim?!”, o meu pai ficou a olhá-lo a tirar a “cebola” do pequeno bolso do colete preto, sob o fato preto, que ia a rigor com os sapatos pretos imaculados, que reluziam naquele quarto-sala onde a minha velha avó recebia as pessoas mais íntimas. E ao lado, pousado no banco de pedra sob o parapeito da janela, estava o chapéu, também preto, de que o Duarte nunca se separava. Talvez o Duarte fosse viúvo, não sei.
Era o meu tio quem fazia a pergunta ao meu pai. Este estava farto de saber, há décadas, que o Duarte, para mim o “senhor Duarte”, nunca mudava a hora no seu velho relógio de bolso. Mas, com um leve sorriso, e talvez com um “Ah! Sim?!”, o meu pai ficou a olhá-lo a tirar a “cebola” do pequeno bolso do colete preto, sob o fato preto, que ia a rigor com os sapatos pretos imaculados, que reluziam naquele quarto-sala onde a minha velha avó recebia as pessoas mais íntimas. E ao lado, pousado no banco de pedra sob o parapeito da janela, estava o chapéu, também preto, de que o Duarte nunca se separava. Talvez o Duarte fosse viúvo, não sei.
O Duarte, então com quase 90 anos, tinha sido empregado do meu avô. A cena passa-se no final dos anos 50 e o meu avô tinha deixado viúva a minha avó Filomena, muito tempo antes, em 1925.
Duas vezes por ano, o Duarte deslocava-se a Viana, ido de Ponte de Lima, para visitar minha avó, que devia ter aproximadamente a sua idade. Imagino que as conversas com a minha avó assentassem nos retalhos comuns da memória de outros tempos por lá.
Mas voltemos à cena. O Duarte, depois de mostrar a sua inflexibilidade perante as mudanças oficiais da hora, recolhera o relógio. Mas não por muito tempo. O meu tio, que já chamara a atenção do meu pai para essa teimosia do Duarte, referiu, de passagem, que achava que o relógio era alemão. O velho empregado não perdeu tempo e lá mostrou a marca inglesa de fabrico do aparelho. Confusão esclarecida.
O meu tio, um tanto estranhamente, não abandonou o assunto do relógio do Duarte e comentou que era uma temeridade, mas simultaneamente uma mostra de coragem, o Duarte andar pela rua com uma corrente de ouro do relógio a brilhar. O homem reagiu: “Antes fosse, antes fosse! Mas é só de prata”, mostrando-a, bem como, de novo, o relógio, dando-a a ver aos circunstantes, nos quais eu me incluía, silencioso e reverente perante a figura grave daquele senhor que mal dava pela minha presença.
Na passada da conversa, o meu tio deixou cair um comentário: “Pena é que se atrase bastante, não é, Duarte?”. O velho senhor, quase ofendido, sacou uma vez mais do relógio e afadigou-se a conferir, perante os relógios de pulso em volta, que a sua máquina era de um rigor inultrapassável. Quando muito adiantava-se um minuto por ano.
“A propósito de minutos. Esses relógios, Duarte, ganhavam muito se tivessem ponteiros de segundos”, comentou o meu tio. “Mas tem!”, reagiu o homem. “Veja aqui!”, mostrando uma vez mais o relógio. Lá estava o pequeno mostrador dos segundos, claro. E o Duarte sorria de razão.
O leitor deve estranhar este relato do vai-e-vem do relógio do bolso do senhor Duarte para fora. Mas não estranhe. O Duarte iria ainda tirar o relógio precisamente mais cinco vezes, com cinco outros tantos pretextos que o meu tio iria inventar para que tal acontecesse. A aposta dele com o meu pai - de que arranjaria forma do Duarte tirar dez vezes o relógio do bolso - ia ser ganha por esse meu tio, um mestre das “partidas”.
Não era aquela a primeira vez, e que me conste não foi a última, em que, lá por casa da minha avó Filomena, o “número” do relógio do Duarte era praticado, com um pretexto ou com outro, com um êxito proporcional à progressiva perda de memória do velho cavalheiro. E, o que é muito mais curioso, isso era feito perante o olhar complacente da minha velha avó, que implicitamente autorizava a brincadeira, divertindo-se mesmo com ela, ciente da sua inocuidade, e a completa inocência da criança que eu era.
Era este o ambiente, são e divertido, na casa da minha avó Filomena, em Viana do Castelo, onde íamos de Vila Real umas três semanas nas férias “grandes”, uns dias pelo Natal e, às vezes, uma “saltada” breve na Páscoa. Nesse tempo inocente e feliz, a história do “relógio do senhor Duarte” passou a fazer parte do património de memória da nossa família.
Que terá acontecido ao relógio do Duarte? Alguém, ontem, pô-lo de acordo com a “hora nova” ou terá herdado a caturreira do antigo dono?