sexta-feira, fevereiro 05, 2016

Os ventos de Espanha


De Espanha se dizia que “nem bons ventos, nem bom casamento”. A Espanha manteve-se uma obsessão histórica para muitos setores portugueses, até à nossa entrada comum nas instituições europeias, vai para 30 anos. Por essa altura, diluiu-se o essencial que restava de contencioso bilateral (sei que os nostálgicos de Olivença não ficarão contentes, paciência!) e as relações passaram a desenvolver-se de uma forma desdramatizada. 

Julgo que ambos os países se conhecem hoje muito melhor, que o fim das fronteiras e o incremento do comércio trouxe uma saudável normalidade à relação luso-espanhola, curiosamente nunca afetada pela pontual dissonância entre as orientações políticas de Madrid ou de Lisboa. 

Na Europa, Portugal e Espanha nunca estiveram no mesmo “campeonato”, muito embora, em alguns dossiês, tenhamos jogado do mesmo lado. Mas a dualidade económica do nosso único vizinho – com setores muito desenvolvidos ou fortemente beneficiários das políticas da Europa “rica” (como a política agrícola) ao lado de uma Espanha nossa companheira nas políticas “de coesão” - fez com que os nossos interesses por vezes divergissem. Isso foi muito claro nas questões institucionais onde se mede o poder relativo para influenciar decisões. Porém, e este é um aspeto importante, a diplomacia dos dois países sempre cuidou em sublinhar o muito que nos une, procurando que aquilo que nos separa se não torne um óbice a uma relação bilateral que ambos desejamos se mantenha exemplar.

Como profissional das relações externas, quero deixar claro que nem sempre é fácil negociar com a Espanha. A retórica da amizade peninsular – nós, no Ministério dos Negócios Estrangeiros nunca apreciámos excessivamente o termo “ibérico” – quase sempre é insuficiente para ultrapassar o endémico protecionismo dos nossos vizinhos, frequentemente apostados em bloquear o acesso das nossas empresas ao seu mercado e com uma rigidez clara no tocante a qualquer compromisso nas áreas económicas.

Um terreno específico onde isso foi sempre muito evidente foi o setor bancário. Com uma certa naturalidade, a Espanha foi aproveitando as fragilidades sucessivas das nossas instituições, por forma a colocar-se numa posição de relevo nesse nosso mercado. Fê-lo, diga-se, com toda a legitimidade que as regras da concorrência o permitem, mas o equilíbrio final que daí resulta tem consequências estratégicas iniludíveis. O que mais me preocupa, confesso, é começar a ser evidente que o Banco Central Europeu promove abertamente, como se viu no caso Banif, este “take over” da banca portuguesa pela banca espanhola. Um dia, voltaremos a falar disto por aqui.

Transições

Ontem à tarde, os membros do Conselho da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa, de que faço parte, votaram um novo nome para diretor da Faculdade. O anterior diretor havia pedido a demissão. Crise? Nada disso! Esse anterior diretor, bem como a diretora da Instituto de História Contemporânea da mesma Faculdade, passaram a integrar o novo governo, como secretários de Estado. Estas são as contingência da vida de uma instituição de prestígio. Ou será que, se o não fosse, lhe recrutavam os membros para altos cargos? 

quinta-feira, fevereiro 04, 2016

Ópera


Esta sexta-feira, dia 5, às 20 horas, e no domingo, dia 7, às 16 horas são as únicas derradeiras oportunidades para poder ver, no S. Carlos, a ópera "Dialogues des Carmelites", de Francis Poulenc, com encenação de Luis Miguel Cintra e direção musical de João Paulo Santos.

Não costumo por aqui recomendar espetáculos ou exposições, mas saí ontem da estreia extremamente bem impressionado com este trabalho, que representa um bem sucedido esforço para complementar o programa clássico que o S. Carlos normalmente oferece.

Olívio

O meu mais antigo amigo chamava-se Olívio, Olívio de Carvalho. Acabo de saber que morreu, por um SMS emocionado do Elísio Neves, que o chama, e bem, "o melhor de todos nós".

Nascemos no mesmo ano, na mesma rua, lá em Vila Real e, claro, não me lembro de mim sem o conhecer. O pai do Olívio tinha uma casa de conserto de bicicletas, pelo que era conhecido como o "Olívio das bicicletas". Era na chamada "Travessa", a rua Avelino Patena, e, dessa forja, tivemos como companheiros o Quim "Rato", o Augusto, o Quim Claro, o Sampaio, o Domingos Lito, os Costa Lobo, o Vitor e o Carlos Almeida, vários Barretos. Com o Elísio Neves, o Zé Barreto terá permanecido, até hoje, como uma das pessoas mais próximas do Olívio.

Entrámos juntos para a escola primária, embora o Olívio tivesse sabiamente optado, desde muito cedo, por um ritmo de conclusão dos anos letivos que se revelou um tanto mais lento do que o meu. Deve ter ficado pelo antigo 5°ano, penso.

No final dos anos 60, ambos tínhamos ido para Lisboa, embora com vidas diferentes, em grupos muito diversos. Encontrávamo-nos às vezes no Montecarlo, cada um em sua tribo. Aí eu trocava livros e conversa, enquanto ele perdia as noites e ganhava a vida como grande especialista em dominó, atividade que já o tinha tornado famoso em Vila Real. Ah! O Olívio era um bilharista exímio e, pelo menos em Vila Real, poucos vi passarem-lhe a perna na arte.

Como era regra do tempo, a tropa apanhou-nos a ambos. Lembro-me dele me falar que foi parar a um departamento que tratava de "análise e depuração de águas", uma ironia para quem mais tarde iria ser dono de um bar. Depois, o Olívio foi para delegado de propaganda médica, estava eu no meio do curso e também já empregado num banco. Viamo-nos a espaços. Nem sempre sintonizávamos nas ideias e no modo de olhar a vida, mas ambos cuidávamos em que a velha solidariedade de infância prevalecesse sempre sobre essas dissonâncias. Anos mais tarde, chegou-me a notícia de que o Olívio, que vivia na Luz Soriano, havia sido preso. Um lamentável equívoco, que demorou a ser deslindado, provocado por uma amiga solidariedade, ia-lhe destruindo a vida. 100% inocente, foi solto, mas terá aprendido alguma coisa sobre os outros. 

Montou depois um bar, o "Cocote", atrás da Caixa Geral de Depósitos, ao Calhariz. Todo o "emigrado" de Vila Real em Lisboa por lá passava. Fechou um dia a loja e entrou nas velharias e antiguidades, bem como no comércio de pintura. Ainda há dois dias me vi a procurar uma parede para colocar um quadro do Romualdo, um pintor a cujo atelier, na Bica, fui levado pela mão do Olívio. Na Lisboa noturna que era a sua, conhecia como poucos o Bairro Alto e a Bica, sendo também a Ribadouro, noutra geografia, uma sua escala habitual, onde algumas vezes nos cruzámos. Mas o lugar de eleição do Olívio, por muitos anos, foi o "Pavilhão Chinês", o "escritório" para a sua venda de coisas antigas, onde também treinava a sua arte de bilharista.

O Olívio era aquilo a que, numa linguagem antiga mas bem apropriada a um cultor de velharias, se chamava "uma jóia de pessoa". Amigo do seu amigo, disponível e sempre disposto a ser útil aos outros, tinha um jeito sarcástico no falar, um sorriso marcado por uma permanente ironia e uma imensa graça. Falava às mulheres com uma delicadeza e atenção que não deixou de ter as devidas recompensas, embora fosse de uma discrição elegante na matéria.

A saúde pregou-lhe, entretanto, sérias partidas. O Olívio regressou a Vila Real. Guardarei para sempre a imagem dele, acabado de sair de um AVC, quando, sob um sol tórrido de agosto, insistiu em se deslocar, curvado e quase arrastado, para me ir dar um abraço solidário, num momento triste da minha vida. Vimo-nos, por uma última vez, numa casa de repouso onde passou os seus derradeiros dias, com a memória a falhar-se e o sorriso a esvanecer-se.

Grande Olívio! "O melhor de todos nós", é verdade!

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

Luiz Felipe Lampreia (1941-2016)


O nosso embaixador em Brasília, Francisco Ribeiro Telles, deu-me há pouco uma notícia bastante triste: morreu Luiz Felipe Lampreia. 

Não fomos íntimos, mas desde há mais de vinte anos que com ele mantinha uma relação de amizade, reforçada no tempo em que vivi no Brasil. Nem sempre coincidimos, nas nossas conversas, no modo como "líamos" as questões bilaterais Brasil-Portugal, mas sempre mantive um grande respeito pela sabedoria e lisura com que defendia os seus pontos de vista.

O Luiz era um diplomata de carreira. Depois de outros postos, foi embaixador do Brasil em Portugal. Seria também ministro das Relações Exteriores do seu país (1995-2001), no governo de Fernando Henrique Cardoso. Atualmente, trabalhava no setor privado, para além de atividade no âmbito de um "think tank" sobre relações internacionais. Mantinha também um blogue. 

Luiz Felipe Lampreia foi um excecional profissional, daquelas figuras de grande categoria que a diplomacia brasileira produz e que alicerçam uma política externa ambiciosa e ativa. Era um homem de grande elegância, palavra fácil e com um conhecimento profundo dos meandros internacionais. Ainda há semanas por aqui citei o seu livro de memórias, "O Brasil e os Ventos do Mundo", onde faz referências à relações com Portugal e à CPLP. Durante a última década, vi o Luiz bastante crítico da política externa do seu país.  

Há uns tempos, constatámos que, de certa maneira, tínhamos acabado as nossas carreiras de modo idêntico: na administração e consultadoria de empresas. E quando lhe fiz notar a curiosidade de termos entrado e saído do governo dos nossos dois países precisamente nos mesmos anos, tive o cuidado de acrescentar: "você como ministro, eu como modesto secretário de Estado, nada de confusões!" . A resposta dele foi curiosa: "Modesto? O vosso Cavaco é que chamava aos secretários de Estado de "ajudantes", não era? Olhe, Francisco, se você disser a sua função em inglês ficamos "iguais"..."(referindo-se ao facto do lugar de secretário de Estado, no Reino Unido, ser designado por "minister" e o de ministro por "secretary of State").

Quero deixar aqui uma palavra de respeito e condolências à família de Luiz Felipe Lampreia.

Paulo Pisco


Em política, a regra de não comprar "guerras" de vitória duvidosa costuma ser aquela que a prudência aconselha. Calar reações que, à partida, se sabe poderem ir contra o "vento" dominante é a atitude mais comum e vulgar. Por isso, quando as coisas se passam de forma diferente, quando a coragem na afirmação dos princípios sobreleva a tentação de preservar a comodidade, há que dar nota disso.

Muito se falou, na imprensa, nas redes sociais e até em estranhas (ou nem por isso) declarações partidárias, do episódio que envolveu o embaixador português em França, pela circunstância de ter considerado inadequado que uma distinção proposta para uma personalidade portuguesa pelo seu homólogo francês em Lisboa, e que o governo deste acolheu, tivesse lugar fora do território que as regras - e não uma invocada exceção, que teve um contexto muito específico - mandam que se respeite, como sede natural desse tipo de atos. Neste caso, seria a embaixada francesa em Lisboa, onde a entrega das condecorações cujas propostas aí tenham tido origem regularmente tem lugar, como também deveria ter tido neste caso. Porém, sobre isto, já disse, por aqui, o que se me oferecia dizer.

O que hoje aqui quero destacar é a circunstância do deputado Paulo Pisco, que na Assembleia da República representa os portugueses na Europa, ter tido a hombridade e a coragem de vir a público expressar a sua posição sobre o assunto, nela não sendo tentado a cavalgar demagogicamente a onda fácil de diabolização do representante diplomático português, colando-se a uma leitura simplista dos factos, que foi aproveitada por alguns de forma sensacionalista e populista. Paulo Pisco, com toda a clareza, disse o que pensava, eximindo-se ao silêncio embaraçado (e cómodo, claro) de outros a quem, em princípio, seria de exigir atitude de idêntica frontalidade. Paulo Pisco, que pede meças a quem quer que dispute o seu empenhamento na defesa dos portugueses que vivem e trabalham no estrangeiro, deu com isso uma prova de caráter, muito rara em política.

terça-feira, fevereiro 02, 2016

"Primavera marcelista"

                                     

À conversa, veio hoje à baila, num grupo, a expressão "primavera marcelista". Os mais novos acharam graça, devendo ter pensado que era uma espécie de antónimo para o "inverno cavaquista".

Alguém esclareceu que não, que essa era uma fórmula comummente usada, no final de 1968 e início de 1969, para designar a esperança criada no país de uma possível abertura política, protagonizada por Marcelo Caetano, que havia sucedido a Salazar. A esperança foi fátua: a PIDE mudou a placa para DGS, a Censura travestiu-se de Exame Prévio, o oficioso "Diário da Manhã" passou a "Época" e até a União Nacional se crismou de Acção Nacional Popular. Houve coisas, porém, que não mudaram: a repressão, os presos políticos, a guerra colonial e falsificação eleitoral. 

Dos mais velhos, alguns com um pé na imprensa, ninguém se lembrou, na conversa, de quem teria utilizado pela primeira vez a expressão "promavera marcelista". Também não sei, mas sei como "nasceu" e expliquei. Foi o ministro do Interior, Gonçalves Rapazote, na posse dos novos Governadores Civis, poucas semanas após a posse de Caetano, quem falou no seu discurso da nova "primavera política" que se inaugurava no país. O conceito evoluiu entretanto e ficou ligado nominalmente ao "presidente do Conselho".

Eu tinha então 20 anos, andava já metido em algumas "guerras associativas" e recordo que nunca tive a menor fé na "primavera marcelista". E tinha razão.

A partir de 9 de março, lá por Belém, haverá uma nova "primavera marcelista"? Convenhamos que não deve ser difícil...

Bruxelas, nós e a Grécia

Sinto por aí dois tropismos de sinal contrário que, de novo, nos tentam colar à Grécia.

Do lado de quantos são críticos da proposta orçamental do governo, tenta alarmar-se a opinião pública com a ideia de que o comportamento português, ao apresentar em Bruxelas um projeto de orçamento que não está 100% conforme com as normas europeias, iguala aquilo que Atenas fez há um ano, com os resultados trágicos que se viram.

Por parte das "viúvas" de Varoufakis, isto é, de quem há um ano achou heróica a atitude suicidária dos gregos, ao afrontar inconscientemente as regras europeias que o país havia subscrito, surge um apoio emocional a Costa & Centeno, tentando reeditar o David versus Golias que tanto "animou" a Europa.

Ambas as posições têm o efeito negativo de ajudar a colar a imagem de Portugal à da Grécia. E isso não poderia ser mais injusto. 

O que o governo de António Costa está a fazer não é nenhuma rutura com as determinantes europeias - que o PS sempre disse ir cumprir, até que fossem mudadas. O que o governo está a procurar levar a cabo, aliás como o PS sempre disse que faria, é discutir com as entidades europeias margens de flexibilidade, a exemplo do que vários outros países europeus obtiveram, argumentando na base de situações conjunturais específicas. Nem a situação grega tem parecenças com a portuguesa, nem Portugal está a "pedir a lua", como fez a Grécia.

Poderemos ter êxito ou não nessa negociação, mas, seguramente, o Terreiro do Paço não tem vocação para se tornar numa praça Syntagma.

Por muito que isso desagrade a quem olha para Bruxelas com uma visão radical, o governo não coloca em causa as "targets" macroeconómicas a que nos comprometemos, ainda que possa discordar da sua bondade e racionalidade. Se alguma coisa aprendemos com o caso grego foi o facto de que "dar o peito às balas" isoladamente é um ato de heroicidade instantânea... porque se morre a seguir. É que se há um lema que nunca convém seguir é aquele que o nosso hino nos aponta: "contra os canhões, marchar, marchar!"

Mas também ninguém espere de nós que nos mantenhamos passivos, atentos e veneradores face aos ditames da Comissão europeia, que sempre se mostra flexível e compreensiva quando poderes mais fortes têm problemas e logo engrossa a voz quando pressente alguma fragilidade e tibieza. Como vimos nos últimos quatro anos, a Europa adora o seguidismo, que é a atitude diplomática de quem não ousar negociar, transferindo para o sofrimento do dia-a-dia dos povos o preço dessa inércia algo cobarde.

Sete anos de pastor...


"Sete anos de pastor Jacob serviu..." Lembrei-me há pouco deste poema de Camões, que ouvi o meu pai declamar desde a minha infância.

Porquê? Porque faz hoje sete anos, dia por dia, que este blogue se iniciou. Foram 2554 dias em que aqui surgiu pelo menos um post, sendo que este é o nº 4910. Tem graça lembrar o início: aqui.

Se o blogue vai continuar? Para já, vamos andando... Depois logo se verá.

Mas não digo como Camões no fim do poema: "Começa de servir outros sete anos/dizendo: mais servira se não fora/para tão longo amor tão curta a vida". Cruzes!

Manuel Pedrosa


Eu sei que o tema da gastronomia é para alguns um pouco deslocado, e até pedante, num tempo em que tanta gente atravessa dificuldades, em que a ida a um restaurante representa para muitos um esforço financeiro excecional. Percebo que falar de restaurantes de luxo ou de vinhos a preços estratosféricos pode ser visto como quase "obsceno" por muita gente. Mas essas realidades, diversas e contrastantes, existem e fazem parte do mundo, configuram um espaço nas economias dos países, pelo que iludi-las na abordagem pública seria como estarmos a iludirmo-nos a nós mesmos. Por isso, por aqui e noutras sedes, continuarei a tratar o tema da Gastronomia. Quem não quiser saber disso para nada pode fazer "zapping".

Porque ontem foi dia da atribuição das "estrelas" do Michelin em França, mas também porque foi a data do desaparecimento de José António Salvador, um homem a quem a divulgação dos vinhos portugueses muito deve, e que merece não ser esquecido, deu-me para falar de restaurantes (que novidade!, por aqui, dirão alguns).

Mas por que diabo este post tem por título "Manuel Pedrosa"?

Porque dos restaurantes cheguei mentalmente à crítica gastronómica e, logo de imediato, apareceu-me este nome. "Manuel Pedrosa" era o nome misterioso que, no início dos anos 70, surgiu em "A Mosca", o suplemento dos sábados do "Diário de Lisboa", a assinar umas notas críticas sobre restaurantes, quase sempre em Lisboa e arredores.

Com o tempo, vim a saber que o "comilão" que opinava era nem mais nem menos do que o escritor e jornalista Luis de Sttau Monteiro. Por esse tempo, o autor do empolgante "Felizmente há Luar" ou desse belo retrato social lisboeta que é o "Angústia para o Jantar" dedicava-se, como modo de vida, ao jornalismo. Em "A Mosca", Sttau escrevia as célebres redações da Guidinha, ao mesmo tempo que nos dava tais notas gastronómicas. Recordo-me que, nesses sábados, alguns leitores das crónicas tinham por hábito ir jantar ao restaurante indicado nesse mesmo dia pelo "Manuel Pedrosa" e que, ao final de algumas semanas, sorríamos com cumplicidade uns para os outros e, em alguns casos, até já nos cumprimentávamos...

Por muitos anos, pensei que o "Manuel Pedrosa" de Sttau tinha inaugurado a crítica gastronómica na imprensa em Portugal. Estava enganado, como há meses o provou Fortunato da Câmara, que sucedeu a José Quitério na "cátedra" gastronómica do "Expresso", que descobriu notas sobre restaurantes assinadas já nos anos 40 do século passado.

(Em gastronomia, aliás como no resto, estou sempre a aprender. Alimentava há anos a teoria de que "A Toca da Raposa" havia sido, em Vila Real, o primeiro restaurante da cidade - não tasca ou casa de pasto ou pensão. Ora o ilustre "vilarrealógrafo" ou "bilógrafo" Elísio Neves logo veio provar da existência de casas do género, ainda no século XIX. Quem te manda, sapateiro...)

segunda-feira, fevereiro 01, 2016

Compreensão

Percebo muito bem que a antiga maioria esteja escandalizada pelo facto do governo estar a tentar negociar com Bruxelas.

Para quem nunca o tentou...

O Brasil na "Janus"


O "Janus - Anuário de Relações Exteriores", editado pelo Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma de Lisboa, publicou em Novembro passado o seu nº 17,  relativo a 2015/2016, dedicado especialmente à "Integração Regional e Multilateralismo", mas cobrindo uma ampla gama de outras temáticas internacionais.

Recomendo vivamente esta publicação que, desde há quase duas décadas acolhe uma valiosíssima informação sobre questões internacionais e a política externa portuguesa. Os conteúdo podem ser consultados em janusonline.pt, um verdadeiro serviço público feito pela UAL.

A exemplo do que aconteceu em diversos números anteriores da "Janus", também nesta edição publico um artigo, desta vez dedicado ao Brasil. O texto (escrito em maio de 2015, pelo que não comporta desenvolvimentos mais recentes) pode ser consultado aqui.

domingo, janeiro 31, 2016

Nós e Bruxelas

Cada vez mais tenho a sensação de que parte da rigidez que Bruxelas está a indiciar, quando à trajetória proposta para o défice estrutural português, a projetar do OGE2016, se deve muito à indecisão sobre a situação política que se vive em Espanha. 

As instâncias comunitárias podem estar a temer que uma qualquer flexibilidade indiciada no caso português possa, na hipótese de um governo de esquerda se implantar em Madrid, vir a "adubar" um orçamento espanhol "ambicioso" para 2017. E com Renzi, na Itália, a começar a "levantar a garimpa", vislumbram uma onda do Sul, que sabemos que sempre desvaria a ortodoxia tradicional do Norte. Acresce que Espanha e Itália representariam sempre incumensuravelmente mais do que o caso português.

Vale a pena lembrar que o conceito de "défice estrutural" foi colocado como critério, no discurso condicionante europeu, pelo Tratado Orçamental, um acordo imposto à pressa à Europa num tempo de desregulação dos mercados, e cujas regras vieram a cumular-se às do Pacto de Estabilidade e Crescimento que fora, à partida, o referencial único para a presença dos Estados na zona euro. É verdade que o TO foi aceite por todos e por todos deve ser respeitado até que, eventualmente, venha a ser revisto. Esse respeito não exclui, como já não excluiu para imensos paìses a aplicação do Pacto de Estabilidade e Crescimento, a possibilidade de derrogações pontuais das regras, atendendo a situações específicas detetadas. Por isso é que há sempre lugar a um diálogo com a Comissão Europeia. Estranha-se, contudo, que se tenham atenuado na Europa as vozes no sentido de lançar o debate sobre a revisão do TO, tanto mais que estão hoje mais claros do que nunca alguns efeitos assimétricos nefastos da sua aplicação.

Não conhecendo, naturalmente, pormenores das negociações entre Lisboa e Bruxelas, devo dizer que me sinto muito confortável com a serenidade que o governo tem vindo a demonstrar no tratamento público da questão.

Só lamento - mas confesso que não fico surpreendido - que a oposição de direita esteja a procurar limitar internamente, sabendo que isso tem impactos externos inevitáveis (nomeadamente no alarme nas agências de notação), a margem negocial de manobra europeia do executivo, esquecendo que qualquer flexibilidade que agora fosse possível obter representaria um aliviar dos sacrifícios que o povo português suporta. Ou será que teme que venha a provar-se que era possível fazer melhor do que o "lindo serviço" que fizeram?

Uma noite na Sedes

Creio que terá sido nos primeiros meses de 1973. Nos arquivos da Sedes - esse clube de reflexão político-económica, de matriz liberal (no bom sentido), que o marcelismo (o outro) deixara criar e que ainda subsiste - deve ser possível descobrir o dia exato (como fui "para a tropa" em fins de março, deve ter sido até essa data). É lá que este episódio se passa.

Naquela noite, as instalações antigas da Sedes, na rua Viriato, estavam "à cunha". Estávamos lá para ouvir Francisco de Sá Carneiro, que, pouco antes, se havia demitido da sua condição de deputado à Assembleia Nacional, por insanáveis divergências com Marcelo Caetano. Eu nunca tinha ido à Sedes, aliás nunca fui dela associado e só por lá passei escassas vezes. Mas a perspetiva de uma palestra heterodoxa do líder da excluída "ala liberal" foi suficiente para se sobrepor à (pateta) sobranceria esquerdista com que então eu olhava as "contradições não antagónicas" que existiam no seio do regime. 

Por coincidência, cruzara-me à entrada com Sá Carneiro, que me lembro de trazer uma gabardine preta e que, pela autoridade e pela "gravitas" que projetava, dava ares de ser mais alto do que a sua pequena figura realmente era. Salvo uma tarde de 1970, em que o vislumbrei da tribuna dos visitantes, no plenário da Assembleia, creio ter sido esta a única vez que vi o fundador do PPD.

Já não recordo o tema da sessão, mas imagino que fosse do tipo "A situação política" ou outra daquelas fórmulas muito genéricas que eram sempre um pretexto para se falar de tudo. E se eu, que nem sócio era, pudera entrar (terei ido com alguém?), imagino que os ouvidos da polícia política estariam por ali também.

Não me lembro rigorosamente nada do que Sá Carneiro terá dito. Mas recordo que houve dois jovens que lhe colocaram perguntas, um pouco longas para o gosto da impaciente assistência, que se percebia que não estava ali para ouvi-los, mas apenas ansiosa pelas respostas do orador.

O primeiro foi-me identificado. Nunca o tinha visto, mas ouvira falar dele, pela primeira vez, já não sei a propósito de quê, anos antes, numa reunião da "Livrelco", a cooperativa livreira universitária, ali para os lados de Entrecampos, de cujos corpos gerentes fiz parte. Referiram-mo como "um tipo fino como um alho", um bocado "facho" (simplificação esquerdalha para tudo quanto não fosse, no mínimo, socialista. E mesmo assim...), uma das cabeças com futuro na direita.

O outro interveniente era-me completamente desconhecido. Foi quem falou mais. Exprimia-se muito bem, de forma articulada, num tom político que, sendo visivelmente distante dos terrenos em que eu me movia, indiciava fortes distâncias face ao regime. Recordo-me de ter inquirido o nome. Um conhecido que tinha por perto, esclareceu-me, em voz baixa: "É um católico do Técnico. Dizem que é muito esperto. Chama-se António Guterres". (Tenho sempre a dúvida sobre se, antes do "dizem" não houve um "mas"). Ah! O outro perguntador chamava-se, e chama-se, Marcelo Rebelo de Sousa.

Não deixa de ter graça que um seja hoje candidato a secretário-geral da ONU e o outro o futuro chefe do Estado.

sábado, janeiro 30, 2016

O sorriso perdido de Centeno


Há cerca de dois anos, uma organização de alunos da Universidade Nova de Lisboa convidou-me para um debate sobre os novos desafios da Europa. Teria como parceiro de mesa Mário Centeno. O nome dizia-me alguma coisa, mas pouco. Fiz uma pequena pesquisa e ela fez-me lembrar que ouvira Mário Centeno na conferência anual da Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde se pronunciara sobre Economia do trabalho. Ficara então muito bem impressionado com a apresentação feita, muito estruturada e com perspetivas que não conhecia.

O nosso debate na Nova correu muito bem. Voltámos, depois disso, a cruzar-nos algumas vezes, em reuniões, e, com naturalidade, vi-o surgir à frente da pasta das Finanças no governo de António Costa, de quem havia sido o "guru" na área económico-financeira. Todos nos recordaremos que havia então em Centeno uma jovialidade que se espelhava num sorriso franco, quase adolescente, que se manteve em muitas aparições públicas, em que foi sendo conhecido pelos portugueses. 

Esse sorriso tem esmorecido nos últimos tempos. Julgo que nenhum de nós, de fora, poderá sequer imaginar o que deve ser o peso de um lugar como aquele que Mário Centeno ocupa, sujeito às pressões de uma conjuntura internacional que não controla, à necessidade de dar resposta positiva aos compromissos internos que tornam viável a existência do executivo de que faz parte e, no topo de tudo isso, tendo que lidar com as "bombas ao retardador" deixadas pelo anterior governo, como foi o caso do Banif e se constata agora ter sido a linguagem dupla (para as instituições europeias e para a opinião pública interna) usada por Passos Coelho e pela sua equipa para qualificar determinados cortes feitos no quadriénio que cessou.

Gostava de voltar a ver Mário Centeno sorrir. Será sinal de que poderemos fazer o mesmo.

Delas..


Parabéns à "chefe" das minhas "Evasões", Catarina Carvalho, pelo seu delas.pt, um site dirigido às mulheres. Vou espiolhar...

sexta-feira, janeiro 29, 2016

Mesas


Na "Evasões" - á revista que às 6ªs é distribuída gratuitamente com o "Diário de Notícias" e o "Jornal de Notícias" - publico hoje mais uma despretensiosa croniqueta sobre um restaurante do país.

Desta vez foi o restaurante "Carvalho", em Chaves.

Pode ter o texto aqui, mas tem muito mais graça lê-lo na revista, que nos traz muitas outras dicas.

Sinais do tempo


Quando via como o Eusébio se arrastava pela relva artificial do Cosmos, para a coleta dos últimos dólares, quando a Amália se esganiçava com a idade e já nem dizia palavras, em espetáculos tristes que aplaudíamos por reverência, quando o Salvador fazia umas pontas deprimentes nas suas últimas passagens pelo Parque Mayer, e nós gargalhávamos por obrigação, sentia-me sempre um pouco mal. O presente não tem o direito de enterrar o passado, em especial quando este foi bonito.

Ontem, ofereceram-me o CD que reproduz um espetáculo de Sérgio Godinho e Jorge Palma. Com Fausto, ambos fazem parte da "troika" musical que me acompanha intimamente nas últimas décadas. Não me falha um CD de nenhum deles, garanto! Qual José Afonso, qual José Mário Branco, qual Adriano, qual quê! A mim, esse trio - e, por cá, só ele - faz parte da memória afetiva que trago permanentemente comigo. Por isso, "saí" muito mal deste CD. Caramba, os anos passaram! Mas não lhes digam! 

Ai Jerónimo!


O PCP, coitado, foi cilindrado nas eleições presidenciais. O candidato, Edgar Silva, foi, aliás, o menos culpado do descalabro, com uma campanha tão viva quanto o permite a mensagem que o partido transmite. Os comunistas não perceberam a tempo que muito do seu eleitorado cedo se transferiu, pela lógica do voto útil, para Sampaio da Nóvoa. Uma desistência em favor deste, a dois ou três dias do sufrágio, teria poupado esta humilhação.

Numa lógica que reproduz o partido brasileiro PMDB, que tem sempre uma parte na "base governista" e um setor na oposição, os comunistas procuram agora compensar o desaire saindo para "a rua" - essa "urna de voto" em que sempre se sentiram mais à vontade. E embora o governo socialista tivesse anunciado que, a seu tempo, retomaria as 35 horas que o anterior governo retirou à Função Pública, a CGTP de serviço saiu já à rua, não vá o diabo tecê-las. Sobre "a esquerda da esquerda", António Costa deve ter aprendido mais em escassas semanas do que em 40 anos da vida política que já leva.

No desvario do nervosismo da noite eleitoral - que me recorde, foi a única vez, desde o 25 de abril, que o PCP (ou os seus heterónimos frentistas) não teve uma "vitória", que é difícil mas é sempre deles! -, a Jerónimo de Sousa, homem sensato e cordato que costuma ser, saiu uma frase muito infeliz, ao dizer que o partido poderia ter optado por "uma candidata assim mais engraçadinha"

Foi o que se pode qualificar como uma graça "machista-leninista"...

Solmar


Soube há pouco que fechou a "Solmar"*.

O espaço fez parte de uma certa Lisboa, em especial noturna, nos anos 60. Porém, nunca fez parte da minha Lisboa. Sempre achei aquilo demasiado frio e incaraterístico, para o meu gosto. E, nos últimos anos, nas escassas vezes que por lá passei, à saída do Coliseu ou do Politeama, ficou-me uma imagem de algum descaso, com um serviço descuidado e distante, típico dos restaurantes com uma "morte anunciada". Há outros por aí...

Paz ao seu marisco!

ps - afinal parece que não!

Segurança europeia

Na passada terça-feira, no Instituto de Defesa Nacional, fui um dos oradores num debate sobre a "Estratégia global da União Europeia para a Política Externa e de Segurança". 

Há pouco, ao consultar alguns apontamentos em que assentei as minhas intervenções, dei-me conta de que terei porventura sido mais frontal do que habitualmente, nos comentários que então fiz. Neles coloquei em causa (e vi que alguns dos presentes poderão ter ficado chocados com isso, mas talvez a simplificação a que a língua inglesa nos conduz tenha tambëm alguma culpa nisso) a utilidade de um exercício que, a meu ver, não incorpora as "lições aprendidas" ao longo da mais de uma década passada desde um texto idêntico, datado de 2003. 

Fico com a sensação - e disse-o abertamente - que o mero compilar de interesses estratégicos, princípios, prioridades e implicações, em que supostamente todos estamos de acordo, pode ser "agradável à vista" mas esquece deliberadamente coisas muito importantes. Também não basta listar ameaças: é preciso hierarquizá-las e, nessa medida, priorizar os meios para lhes fazer face, com as implicações financeiras correspondentes. 

Desde logo, convém ter claro, e assumi-lo, o facto de não estarmos hoje todos no mesmo barco - desde a divisão Norte-Sul que o caso grego sublinhou, à divisão Oeste-Leste evidenciada pela crise dos refugiados e, noutra dimensão, nas perceções face ao caso ucraniano, passando pelos crescentes problemas internos que afetam a compatibilidade do comportamento de alguns Estados membros com a necessidade de observância com alguns princípios democráticos, de separação de poderes, de liberdade dos media, de respeito pelos refugiados, etc. Tudo isto afeta a nossa unidade, do mesmo modo que, em especial no último caso, atinge a autoridade da Europa como "produtor de segurança", reduzindo a sua legitimidade como "soft power" perante terceiros. 

Acho, além disso, muito cínico que não debatamos e iludamos (por inevitáveis? para não incomodar alguns?) questões como o modo bizarro como a UE trabalha nas Nações Unidas, com a França e o Reino Unido a furtarem-se à coordenação prévia com outros Estados membros no Conselho de Segurança. E reparo agora que não me lembrei de referir essa anomalia, hoje já interiorizada como normal, da Alemanha (e, às vezes, da França) se arrogar representar "de facto" a UE em contactos externos, como é o caso com a Rússia/Ucrânia ou a Turquia - com a senhora Mogherini, "dona" deste papel, a "vê-los passar". E não seria tempo de se fazer um balanço ao trabalho e resultados do Servićo Europeu de Ação Externa, bem como do "saldo" da sua articulação com a diplomacia bilateral dos Estados membros da UE?

Outro ponto que então destaquei, teve a ver com o quadro global das relações externas. O nosso "olhar" é tão eurocêntrico que parece que não cuida em destacar as mudanças sensíveis que se processam noutros espaços, desde a potencial influência, na relação transatlântica na própria configuração futura da NATO, da nova política dos EUA para a Ásia, os novos equilíbrios subregionais em África, as mutações ocorridas no mundo dos "emergentes" e as crises de representação institucional à escala global (instituições de Bretton Woods, G8 e G20, etc).

O que mais me chocou no texto apresentado foi o facto de, perante o "terramoto" em matéria migratória e de terrorismo por que a Europa está a passar, pela "casa em chamas" em que vivemos e que pode pôr em causa a sobrevivência do projeto europeu, agravado pelo afastamento britânico e pelas ameaças separatistas em alguns Estados, o texto burocrático preparado por Bruxelas transmita a sensação de que navegamos em feliz "velocidade de cruzeiro", num ambiente "business as usual", como se nada de grave se passasse. Fiz notar que esta aproximação é, em termos de "diplomacia pública", quase escandalosa e ofensiva para sociedades que vivem "stressadas" por crescentes angústias e dúvidas e que, seguramente, se sentirão chocadas por uma linha como a que é seguida pelas instituições de Bruxelas na preparação deste texto.

Os vidros do palácio


Pode parecer, mas estão longe de ser transparentes os vidros daquele “palácio”, na primeira avenida de Nova Iorque, onde se alojam as Nações Unidas. Aliás, “transparência” é uma palavra que não liga muito bem com aquela que é a mais opaca instituição de toda a constelação das organizações multilaterais. 

A complexidade do processo decisório e o rendilhado do seu rebuscado tecido de compromissos marcam a natureza de uma organização onde sobrevivem sólidos tabus, onde regras não escritas emergem de inesperadas solidariedades entre poderes que se combatem. Poderes que, conjunturalmente, se aliam em sentido construtivo mas que, infelizmente, as mais das vezes, condenam a ONU à inércia.

Que modelo de secretário-geral servirá melhor os equilíbrios do mundo em que hoje vivemos? Terá António Guterres o perfil para os tempos que aí vêm?

Olhando para os vários nomes que se sugerem, e sem o menor viés patrioteiro, quero dizer que o anterior Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados é, a grande distância, a personalidade mais bem preparada para o cargo. Alia cultura e visão políticas, experiência executiva no terreno e uma testada capacidade interlocução operativa. “Defeitos”? Não é mulher e esse fator hoje pode contar. Não é da Europa central ou de Leste e, no plano dos princípios, seria interessante que essa região finalmente pudesse indicar alguém para o lugar.

Mas as Nações Unidas, infelizmente, não vão escolher alguém exclusivamente pelo seu perfil curricular. Isso irá contar, com certeza, mas o passado ensina-nos que a seleção do nome passa por outros crivos, perfeitamente naturais numa estrutura de gestão coletiva de decisões.

A minha convicção mais profunda na matéria é simples. O próximo secretário-geral será alguém que a Rússia veja como não lhe podendo vir a causar a menor das surpresas, nomeadamente como possível factotum dos poderes ocidentais, nos próximos cinco anos, durante os quais procurará reganhar, sem cedências estratégicas de maior, a “respeitabilidade” entre as nações. Simultaneamente, terá também de ser alguém em quem Washington possa confiar como respeitador dos princípios essenciais da Carta, eventualmente tolerando algum voluntarismo, mas sempre muito realista e não demasiado ambicioso, alguém dotado de uma evidente capacidade para gerar consensos, ainda que diplomaticamente equívocos, desde que salvaguardem os equilíbrios de poder que os EUA têm por essenciais. Será secretário-geral quem conseguir esta “quadratura do círculo”. Os restantes 191 países, China incluída, acomodar-se-ão a esta equação bipolar, podem crer.

quinta-feira, janeiro 28, 2016

Por detrás do nevoeiro


É conhecida a graça jornalística britânica segundo a qual era o continente, nunca a Grã-Bretanha, que ficava “isolado” quando o nevoeiro se levantava na Mancha. O cultivo deliberado de uma identidade própria, bem como a capacidade para sustentar um frequente isolamento, foi algo que o Reino Unido sempre se habituou a fazer ao longo da sua presença nas instituições europeias. Por muito que as atitudes britânicas às vezes nos choquem, não podemos deixar de reconhecer que, a grande distância, o Reino Unido foi o país que melhor conseguiu que a sua ideossincrasia fosse respeitada e afirmada na Europa, ao longo das últimas décadas.

Por muitos anos, foi o laço transatlântico que deu o tom à especificidade britânica no quadro da integração continental. Sem chegarmos à teoria conspirativa francesa segundo a qual o Reino Unido funcionava como uma espécie de uma “quinta coluna” americana, é uma evidência que os britânicos usavam a special relationship para alimentar essa atitude distanciada. E, há que dizê-lo, fizeram-no muitas vezes com sucesso e viriam a encontrar, nesse tabuleiro de entendimento privilegiado com o “amigo americano”, uma espécie de elemento compensatório para as crises europeias.

Em muitos anos de convívio próximo com a excelente diplomacia do “Foreign Office”, nunca vislumbrei o menor embaraço da sua parte em sustentarem algumas posições “impossíveis”, às vezes com algum cinismo, outras vezes recorrendo a uma realpolitik quase obscena – como aconteceu no caso de Timor-Leste. Certos ou errados, com governos de várias colorações, os britânicos mantiveram-se sempre muito determinados na defesa da sua agenda nacional. Esta passava, sinteticamente, por três pilares: defesa dos direitos adquiridos em várias dimensões da vida institucional europeia, preservação de autonomia estratégica no plano externo, assente na preeminência do vetor transatlântico e da defesa da sua posição na ONU, e, last but not least, conservação dos privilégios da praça londrina, associada à permanente defesa de uma postura liberal no comércio internacional.

Os tempos mudaram para todos, e também para o Reino Unido. A relação transatlântica passa hoje por uma época menos “entusiasmada”, a capacidade britânica de projeção de influência e força já está muito longe de se poder sentir num mundo “onde o sol não se punha”, o seu tecido social interno sofre tensões que não só suscitam legítimas interrogações sobre a bondade do seu potencial integrador como induzem novos reflexos soberanistas que condicionam, a um grau nunca antes atingido, a gestão da sua política para a Europa.

David Cameron, o primeiro-ministro britânico, fez uma “fuga em frente” ao propor um referendo interno sobre a permanência na Europa. Perante uma opinião pública cultivada na diabolização de Bruxelas, uma operação desta natureza acarreta um elevadíssimo risco, que Cameron agravou agora ao colocar sobre a mesa uma agenda reivindicativa onde, a par de coisas de meridiana sensatez e passíveis de algum acordo, colocou alguns temas inegociáveis, que vão desde um “droit de regard” sobre a evolução da zona euro até uma derrogação dos direitos sociais dos migrantes. Os portugueses seriam aqui gravemente afetados e Londres sabe bem que isto, para nós, é inaceitável.

Foi um antecessor de Cameron, o lorde Palmerston, quem um dia afirmou que o Reino Unido “não tem amigos, só tem interesses”. Talvez os tempos tenham entretanto ensinado aos britânicos que podem ter algum interesse em ter amigos, mas que esses amigos – como é o nosso caso – não poderão estar com eles quando é o próprio Reino Unido quem se obstina em afetar os seus interesses.

quarta-feira, janeiro 27, 2016

O Irão e os seus hábitos

Agora que a decisão italiana de tapar algumas estátuas desnudas, nos locais por onde passou o presidente iraniano, na sua visita a Roma, está ainda a provocar reações por esse mundo fora, creio ser interessante contar um episódio ocorrido com a visita a Lisboa, a meu convite, de um vice-ministro do governo de Teerão, creio que no final de 2000.

Meses antes, eu tinha chefiado uma missão da União Europeia ao Irão, para diálogo político. Depois de um início algo atribulado, por virtude de acusações iranianas à UE por intromissão nos seus assuntos internos, as conversas acabaram por correr bem e, no rescaldo do exercício, o meu interlocutor disse-me da sua vontade de visitar Lisboa, agora no plano bilateral. Porque isso também era interessante para nós, nomeadamente no plano económico, ali mesmo lhe formalizei o convite. 

Meio ano depois, o vice-ministro para os Negócios Estrangeiros desembarcava em Lisboa. Como a sua chegada era da parte da tarde, decidi oferecer-lhe, bem como à delegação, um jantar de trabalho no palácio das Necessidades, a que se seguiria, no dia seguinte, uma sessão plenária, com a presença de representantes de vários ministérios. A ideia foi aceite pela embaixada iraniana em Lisboa, a qual,  no entanto, informou que desejaria que não houvesse vinho ou qualquer outro tipo de álcool à mesa. Mandei informar a delegação iraniana de que, naturalmente, lhes não seriam oferecidas bebidas alcoólicas. No entanto, para os portugueses presentes, haveria vinho, se acaso quisessem. A resposta da embaixada foi clara: nesse caso, não estariam disponíveis para jantar. Na sua perspetiva, não seram admissíveis bebidas alcoólicas à mesa.

Devo confessar que estava já à espera de uma reação destas, pelo que mandei transformar o jantar num pequeno-almoço de trabalho, num hotel. Os iranianos não devem ter apreciado muito, mas aceitaram. Cheguei à hora combinada, acompanhado por quatro senhoras. Notei, na cara do meu interlocutor, um visível desagrado. Como é sabido, os iranianos não cumprimentam as senhoras, ou melhor, não lhes estendem a mão e colocam a sua sobre o próprio peito. Pelo "body language" getal, deduzi que estavam a considerar a composição da nossa delegação como uma evidente provocação.

Sentámo-nos à mesa e fiz as apresentações: era a minha chefe de gabinete, a diretora do serviço do Médio Oriente e do Magrebe, a diretora do serviço de Política Externa e de Segurança Comum e, se ainda bem me lembro, a diretora do serviço das Relações Externas, na área europeia. A avaliar pela súbita mudança dos fácies, os iranianos sossegaram. Afinal, aquelas senhoras estavam ali, não por uma escolha propositada, para os provocar, mas pelo facto de titularem funções indiscutíveis no quasro da nossa política externa.

Não faço ideia que impressão íntima esta presença maciça de mulheres em cargos dirigentes da nossa diolomacia terá feito na delegação iraniana, mas a única certeza que tenho é que isso os não deixou indiferentes. Cada terra com seu uso...

"Jornal de Negócios"

Passarei, de futuro, a colaborar periodicamente com o "Jornal de Negócios", que acolherá textos meus sobre questões europeias e internacionais. A coluna chamar-se-á "Duas ou três coisas"...

Agradeço à Helena Garrido e à sua equipa a sua "hospitalidade".

Egito


Foi há cinco anos. Eu tinha passado no Cairo escassos meses antes. Sentia-se uma tensão latente, os sinais islâmicos pelas ruas eram muito mais do que aqueles que tinha visto num passado não muito distante. Lembro-me de ter perguntado ao guia, um homem muito culto, a razão de ser daquele surto de véus, na cabeça de imensas raparigas, e de ele me ter respondido: "Isto é como uma farda. Só se espero que não haja "guerra"..." O Egito era então uma ditadura militar, dirigida pelo general Mubarak, um fiel aliado dos Estados Unidos, um dos pilares ocidentais na região. Um dia, as reivindicações democráticas, ecoando a "primavera" que surgira na Tunísia e começava a insinuar-se na Líbia, explodiu e "incendiou" a praça Tahrir. Algum mundo rejubilou com a expressão da vontade de liberdade no Cairo. Por semanas, todos acompanhámos pelas televisões esse acampamento de esperança. Penosamente, aos poucos, a ditadura foi cedendo e Mubarak acabou por ser preso. Realizaram-se eleições, tidas por livres. Ganharam os grupos islâmicos, que, desde há muito, contestavam o regime militar inaugurado por Nasser, em 1956. Chegando ao poder pelo voto, a nova liderança islâmica tentou criar formas de aí se eternizar. Um dia, já cansados desta experiência e da disrupção que ela induzira no país, os militares colocaram-lhe um violento ponto final. Um novo general, com o nome bizarro de princesa austríaca, Sissi, assumiu o poder. O mundo ocidental protestou, franziu o sobrolho e publicou os tradicionais comunicados. O general por lá continua. Para passar à História como sucessor natural de Mubarak só lhe resta vir a ter o apoio (mais) declarado do Ocidente. A realpolitik tem muita força. Por isso, já faltou mais. Nesse dia, o ciclo fechar-se-á, já repararam?

terça-feira, janeiro 26, 2016

Daqui a pouco...


... reunião de condomínio!

"Gender balance"


É dos meus olhos ou começa a haver, no seio das lideranças do Bloco de Esquerda, um princípio de falta de respeito pelo "gender balance"?

Sarkogaffe



No novo livro de Nicolas Sarkozy, de que aqui havia falado há dois dias, o autor refere a campanha de "uma rara violência" entre George W. Bush e Barack Obama, na primeira eleição deste. mostrando-se surpreendido pelo facto do atual presidente americano, não obstante esses tensos momentos, se ter disponibilizado para uma iniciativa pública com o antigo presidente.

É sabido que as campanhas eleitorais, nos Estados Unidos, são sempre muito aguerridas. Acontece, no entanto, um pequeno, quiçá despiciendo, pormenor. O adversário de Obama não foi Bush, que já tinha terminado o seu segundo mandato, mas sim John McCain...

Acontece aos melhores, não é? Que Sarkozy estivesse distraído, tudo bem, mas não houve uma alma caridosa que tivesse descortinado a "gaffe" antes do livro ser impresso? Que amadorismo, para quem cultiva a ambição de regressar ao Eliseu!

segunda-feira, janeiro 25, 2016

Marcelo ou Rebelo de Sousa?

Por que dizemos "Marcelo"? Por que não dizemos "Rebelo de Sousa"? O que é que criou esta designação, algo intimista, que se colou à imagem do novo presidente?

Se olharmos para a política portuguesa, apenas muito raros líderes masculinos com uma relação afetiva com os seus apoiantes conseguiram ser chamados, com naturalidade, pelos seus nomes próprios: Vasco (Gonçalves) e Otelo (Saraiva de Carvalho), goste-se ou não deles, foram disso exemplo. Dos restantes, de Sá Carneiro a Soares, de Eanes a a Cunhal, de Sampaio a Barroso, de Cavaco a Sócrates, nunca o nome próprio de um político relevante se impôs no imaginário público. Até Maria de Lurdes Pintasilgo ficou conhecida pelo seu apelido.

Posso estar enganado, mas creio que o verdadeiro "criador" desta designação, que "pegou" na linguagem comum do país, deve ter sido o primeiro locutor (da TSF? da TVI?) que o designou como "professor Marcelo" e não como "professor Rebelo de Sousa" - como se diz "professor Sampaio da Nóvoa" ou se disse, por muito tempo, "professor Cavaco Silva". É claro que, nos meios públicos, todos já dizíamos, há muito, "Marcelo" e isso não terá sido sem efeitos.

Com esta expressão nominativa simplificada, em que o "professor" nos remete para a escola, para o educador que avalia e "dá notas", Marcelo Rebelo de Sousa acabou por tornar mais próxima dos portugueses a sua figura. Só se chama pelo nome próprio quem nos está (ainda que virtualmente, como foi a televisão) próximo, mas também quem tem uma imagem de bonomia que seja compatível com essa designação. Ninguém está a ver Cavaco Silva ser apelidado de Aníbal... Ora Marcelo Rebelo de Sousa conseguiu isso por via mediática e, dessa forma, ganhou o "Marcelo" que lhe pode facilitar a ligação aos portugueses. Está nas mãos dele conseguir isso. Ou não.

domingo, janeiro 24, 2016

Presidente Marcelo Rebelo de Sousa

O voto inequívoco dos portugueses colocou Marcelo Rebelo de Sousa no Palácio de Belém. Não era este o meu candidato, mas este será, a partir de agora, o presidente da minha República. 

Por aqui coloquei, em diversas ocasiões, as dúvidas que conduziram a que não lhe desse meu voto. Espero, com toda a sinceridade, ter estado errado na avaliação que fiz. Espero que Marcelo Rebelo de Sousa me surpreenda. 

Carmona Rodrigues

Carmona Rodrigues foi, há dias, absolvido. Alguém sabe de quê? Eu não sabia, mas desconfiava. Era de "prevaricação". Ninguém o acusou de ter metido indevidamente um tostão ao bolso, de ser corrupto, de ter beneficiado de bens públicos. Ninguém o acusou de ser desonesto e isto é o mais importante.

E, contudo, se se perguntar a muitos portugueses o que acham de Carmona Rodrigues, bastantes dirão algo como isto: "Foi acusado lá na Câmara da Lisboa. Questões de dinheiro, pela certa! Não há fumo sem fogo! E eles acabam todos absolvidos, já se sabe!"

Praticamente, não conheço Carmona Rodrigues. Creio que falei com ele uma única vez, num jantar, há muitos anos. Não faz parte da minha "família" política, não temos amigos comuns, não há nenhuma razão especial para eu estar aqui a escrever esta nota.

Ou melhor, há: é a raiva que sinto com o facto da justiça portuguesa, no vai-e-vem das suas sentenças contraditórias, da politização frequente dos seus procedimentos, na inimputabilidade dos atrasos dos seus magistrados e serviços, nos ter retirado (para sempre?) toda a confiança no sentido das suas decisões.

Num país decente, Carmona Rodrigues devia ser ressarcido, após a absolvição, do labéu que sobre si foi um dia lançado. Quem o acusou, indevidamente, deveria ser "condenado", pela comunicação social, por ter manchado o bom nome de um cidadão que, um dia, se dispôs a servir a causa pública.

Por cá, as coisas não são assim. "Não há fumo sem fogo", é a frase canalha, da mesa do café ou da esquina da intriga, que corroi as instituições e revela a mentalidade "Correio da Manhã" do país em que hoje nos transformámos.

Um abraço solidário a Carmona Rodrigues, pessoa que não conheço.

Se houver segunda volta...


Não há a menor dúvida de que, logo à noite, Marcelo Rebelo de Sousa será o candidato mais votado. Também é claro que a segunda escolha irá para Sampaio da Nóvoa.

A grande questão está em saber se o candidato mais votado não ultrapassa os 50%, caso em que teria de ir a uma segunda volta. Se isso vier a acontecer, as próximas duas semanas de campanha serão muito interessantes.

Para o governo, uma segunda volta seria positiva, porque reforçaria a unidade das formações de esquerda à volta de Sampaio da Nóvoa o que funcionaria como uma sinergia de reforço da aliança política que apoia o executivo.

Devo dizer que não sei se, mesmo nessas condições, Nóvoa teria hipóteses de colmatar o "gap", em termos de votos, que irá ter face a Marcelo. Como também não sei se o eleitorado que apoia Maria de Belém, que irá ter um mau resultado, se transferiria necessariamente para Nóvoa.

É curioso que, se acaso tudo se tivesse passado ao contrário, isto é, se acaso Maria de Belem estivesse em melhor posição do que Nóvoa, as coisas seriam muito diferentes: toda a esquerda votaria nela, numa hipotética segunda volta, sem a menor hesitação. Mas é hoje evidente que o eleitorado de esquerda se revê muito mais num candidato como Sampaio da Nóvoa do que em Maria de Belém e que parte dos votos que esta obtiver nunca iriam para o candidato da esquerda. Muitos poderiam mesmo ir para Rebelo de Sousa. E isso muda toda a equação.

Voltando ainda ao interesse de António Costa e do governo numa segunda volta, há um aspeto a ter em conta. Se acaso a bipolarização e a confrontação viesse a ultrapassar um certo limite de tensão, e se Sampaio da Nóvoa acabasse afinal por não ser eleito, o governo teria perante si um novo presidente que os partidos seus apoiantes tinham acabado de combater fortemente. Por essa razão, não acredito que António Costa, mesmo na hipótese de uma segunda volta, se envolva demasiado na campanha. É que seria imprudente quebrar as "pontes" com um possível presidente Rebelo de Sousa. Percebo que isto possa parecer cínico para alguns, mas é a realidade.

Para Marcelo Rebelo de Sousa, uma segunda volta, a acontecer, não deixaria de ter consequências políticas importantes. Contrariamente ao que ocorreu até agora, Marcelo necessitará da máquina da direita - ou, pelo menos, da máquina do PSD - para o ajudar a defrontar a mobilização que o conjunto dos partidos de esquerda farão em torno de Nóvoa. Ora isso funciona precisamente contra a "imagem" que, até agora, procurou criar: a de um candidato "transversal", que entra por algum eleitorado de esquerda através do fator "simpatia". A "despolitização" de Marcelo tem sido a chave do seu sucesso nas sondagens. Duas semanas de campanha com a máquina PSD ao lado transformarão necessariamente o candidato "mainstream" naquilo que ele, na realidade, é e tenta esconder: um político de direita. E isso tornará tudo muito mais verdadeiro.

Mas, para que tudo isso aconteça, é preciso que haja uma segunda volta. Logo veremos.

França: a direita em papel


Coincidindo com a decisão da direita francesa de organizar, no final deste ano, umas eleições "primárias" para a escolha do seu candidado presidencial em 2017, surgiram a público vários livros assinados pelos potenciais contendores. O mais recente é o Nicolas Sarkozy, publicado nesta sexta-feira e que, a avaliar pelos comentários da imprensa, apresenta uma versão escrita da postura "j'ai changé!", com que o antigo presidente se apresentou não há muito tempo numa célebre entrevista à TF1.

Ninguém em França acredita que Sarkozy tenha mudado. Mas cai sempre bem dar um ar de humildade, de arrependimento, porque talvez seja esse o caminho para tentar atenuar a elevadíssima taxa de rejeição que as sondagens mostram a seu respeito. Sarkozy mudou entretanto o nome do partido UMP para "Les Republicans" (em França isto é vulgar acontecer à direita e ao centro, embora menos à esquerda), num "rellabeling" que também quer fazer presumir mudanças de rumo. Veremos em que medida terá sucesso nesta operação, perante um país que, em 2012, se revelou exausto da sua "hiperpresidência", da sua agressividade e com crescentes dúvidas sobre a sua distância face a certos "affaires". Agora, o "novo Sarkozy" quer sugerir-se como "protetor" dos franceses, procurando evitar que a sedução do "Front National" de Marine Le Pen se acentue. Resta saber se não acabará por reproduzir a agenda da extrema-direita, como muitas das suas atitudes recentes parecem indicar.

Sarkozy não está isolado nesta sua nova aventura editorial (em França, um político que não publica um "bouquin" todos os dois anos praticamente não existe). Desde logo, das cinzas da última eleição interna dentro da ex-UMP, "renasceu" Jean-François Copé, o "maire" de Meaux, uma figura muito controversa, que tenta um "comeback" com um livro "de ideias". Nas mesas das livrarias, vi também edições dos dois outros pretendentes ao Eliseu, os ex-PM François Fillon e Alain Juppé e o ex-ministro Bruno Le Maire. E anunciam-se publicações de mulheres que já foram "escudeiras" de Sarkozy e que agora se distanciaram, como Nathalie Kosciusko-Morizet, Nadine Morano e Valérie Pécresse. E outros aparecerão, pela certa.

Um amigo socialista francês comentava-me, há dias, que os próximos tempos da direita vão ser muito interessantes de seguir. E, maldoso, comentava: "Não sei se Valls ou Macron não se aventurarão a concorrer às 'primárias' da direita". Ora Manuel Valls e Emmanuel Macron são respetivamente primeiro-ministro e ministro das Finanças ... do atual governo socialista! Mas ambos têm uma posição política tão à direita que a anedota não deixa de ter algum sentido.

sábado, janeiro 23, 2016

A sobrinha


Caíram logo sobre mim, no final daquele jantar, há dias, em Paris, comemorativo da exposição (excelente, diga-se) de Julião Sarmento. Um após outro, com uma curiosidade gulosa, aqueles amigos declinaram, cada um a seu modo, a questão essencial: "então que tal foi a conversa com a sobrinha da Jane Fonda?"

Eu havia jantado ao lado de uma sobrinha da Jane Fonda?! Não sabia! 

O jantar tinha sido em mesas redondas, creio que com umas dez pessoas cada. Na minha mesa, à direita, ficou uma senhora nos seus "mid-forties". Havíamos falado de muita coisa, de termos coincidido em Angola durante três anos, nos idos de 80, quando ela era uma criança filha de um diplomata italiano (tinha na memória, como eu, o som das armas que, por noites seguidas, regularmente pontuavam o recolher obrigatório noturno). Contou-me do pai e das ideias, pouco comuns mas muito interessantes, que hoje cultiva, trocámos notas sobre livros (vários), ouvi-lhe um delicioso episódio passado com Isabel dos Santos, escutei-a sobre esse assunto fascinante (e, para mim, misterioso) que é a relação dos artistas com os curadores das suas exposições, relatou-me divertidas histórias sobre os galeristas e o seu mundo, deu-me notícias sobre uma certa Londres que me intriga e que ela conhece muito bem. Foi um jantar muito divertido, solto, bem disposto, ao lado de uma mulher elegante, risonha, inteligente e muito interessante ("não desfazendo" na companhia feminina do outro lado, que não vem para a história).

E se eu tivesse sabido que ela era sobrinha de Jane Fonda? Por certo, estando em Paris, a conversa iria ter a Roger Vadim (e à imbatível série das mulheres que teve, de que a tia dela fora um mero episódio), provavelmente perguntar-lhe-ia coisas sobre o avô (ou teria uma relação por afinidade?), Henry Fonda (escondendo-lhe eu, por recato, o sentimento de o achar um ator muito sobrevalorizado, sempre com ar "enjoado"), pelo tio, Peter Fonda (passando a conversa pelo inevitável "Easy Ryder" e talvez por umas suas polémicas declarações, há semanas, em que chamou "f...-traitor" a Obama), e, como é óbvio, falaríamos da senhora sua tia, que admiro pela coragem na denúncia da guerra no Vietnam, famosa pelos músculos do "workout" e, claro, pela sua filmografia (que nunca me convenceu muito) - eu que bem a conheço desde o (hoje ridículo) "Barbarella". E, claro, viria à baila o ex-tio Ted Turner, o ricaço da CNN, um liberal (no bom sentido, isto é, no sentido americano) com ar de cowboy, que conheci pessoalmente em Nova Iorque, que havia dado um bilião de dólares à ONU, para um fundo em cuja gestão tive o gosto de participar, durante um ano. Já imagino mesmo o muito vulgar "name-dropping" em que cairíamos (ou melhor, em que eu teria a tentação de cair, confesso). Até porque, finalmente, seria preciso falar sobre quem era a mãe dela (irmã de Jane? de um marido?). 

Feitas bem as contas, ainda bem que eu não sabia de quem a minha companheira de mesa era sobrinha. A conversa acabou assim por ser bem mais interessante. E, para aqueles amigos, ficou-me no "currículo": "Com que então numa grande conversa com a sobrinha da Jane Fonda, ehin?!"

sexta-feira, janeiro 22, 2016

Muito lá de casa...

Há umas semanas, publiquei este artigo. Revisito-o agora porque, creio, dele fica evidente o nome de um candidato presidencial em quem não votarei...

Um dos candidatos que estas eleições presidenciais oferecem à escolha dos portugueses é uma figura que, durante anos, entrou na nossa casa com grande frequência. Não tocou à porta, mas esteve connosco na sala, conversando sobre tudo e sobre todos, de futebol a política, de “faits divers” às finanças, da justiça aos espetáculos, da lombada de livros às questões de saúde, etc, etc.

Sobre tudo tinha ideias, de tudo parecia que sabia um pouco, num modelo a que os italianos chamam de “tudólogo”. Diz coisas certas? Claro que sim, a par de outras que são tão discutíveis como as que qualquer um de nós costuma ter. Educado, inteligente, informado, às vezes um tanto “pela rama”, outras um pouco mais profundo, o tal candidato provou que quase nada do mundo lhe era alheio. Ou parecia ser. A sua melhor definição foi-me dada um dia por um amigo: “estou quase sempre de acordo com ele, exceto quando conheço bem os assuntos!”

No cenário de fundo da vida da esmagadora maioria dos portugueses adultos, o tal candidato é uma figura que nunca esteve distante. Os mais velhos lembram-no como jornalista, outros como político ou como jornalista político, muitos outros simplesmente como professor – e nós sabemos como ser “professor” sempre por cá funciona subliminarmente como um fator de prestígio para credibilizar o que se diz. A maioria dos contemporâneos recordá-lo-á como opinador, primeiro na rádio, depois nas televisões, nestas tendo vogado entre canais. No desporto, não é do Benfica nem do Sporting, antes pelo contrário, não sendo também do Porto. Todos o identificam com um partido mas também já o ouviram criticar, sem exceção, os líderes desse mesmo partido. Todos? Todos! Mesmo que ele próprio tenha também cumprido um dia essa função…

Para muitos dos portugueses, esse candidato sugere a intimidade que temos com um primo distante, daqueles que irrompe nos casamentos ou nos batizados. Não o conhecemos bem, mas é insinuante, simpático e dialogante. Conta anedotas, é espirituoso, desenha uma presença agradável, sai-se com tiradas inteligentes, às vezes iconoclastas, as mais das vezes jogando no “mainstream” do senso comum. Algumas mulheres acham-lhe piada, alguns homens apreciam-no como divertido e eternamente bem humorado. Todos o tratamos pelo primeiro nome, claro. É muito lá de casa…

Há uma década, quando Cavaco Silva foi candidato a presidente, recordo-me do modo complacente como alguns, mesmo nele não votando, encararam com resignada aceitação a sua eleição, não obstante ser “do outro lado”. Dizia-se que era um homem “rigoroso”, “austero”, uma figura "em quem se podia confiar”. Depois, foi eleito e saiu-nos na rifa o que temos visto!

Imaginem agora que outro alguém, também “do outro lado”, mas a quem ninguém se atreverá a colar os qualificativos sossegantes que ingenuamente concedíamos ao presidente cessante, volta a ocupar Belém! Ah! “Mas este tem muito mais graça, é divertido! Vai ser um tempo interessante!” Pois, pois! Esperem pelas crises, pelos dias em que as coisas não estejam a correr bem! Depois não me venham dizer que não avisei!    

O risco


Na República em que vivemos, mesmo contando os momentos de reeleição dos quatro anteriores presidentes (Eanes, Soares, Sampaio e Cavaco), nenhuma outra campanha terá contribuído mais fortemente para criar um sentimento de irrelevância da função presidencial. 

O desinteresse que se instalou na opinião pública em torno da escolha do chefe do Estado tem vários responsáveis e o principal chama-se Cavaco Silva. Foi-o pela forma como se comportou no exercício do cargo (as sucessivas sondagens são inequívocas), em particular neste segundo mandato e, muito em especial, pela sua catastrófica gestão da agenda política em 2015. 

Parte da responsabilidade cabe contudo às principais forças políticas. Habituámo-nos ao discurso de que esta eleição é unipessoal, que os partidos políticos surgem apenas como coadjuvantes da vontade dos candidatos. Mas todos sabemos que as coisas, sendo formalmente assim, na prática são diferentes. O envolvimento das forças políticas organizadas é essencial para garantir a mobilização popular que transforma a escolha de uma pessoa e na sua legitimação política pelo sufrágio. E os partidos notaram-se pela sua ausência.

A sucessão temporal entre as eleições legislativas e a campanha presidencial, cumulada com a circunstância da solução governativa ter assumido contornos atípicos, criou uma conjuntura bizarra, a que os partidos não souberam dar a volta. Isso acabou por instalar na opinião pública um alheamento que se somou também à ideia de que estávamos a escolher apenas, perdoe-se-me a simplicidade, “o sucessor de Cavaco”. E isso, percebe-se, não era a coisa mais estimulante do mundo.

Os figurantes não ajudaram? Convenhamos que a direita não tinha muito melhor para apresentar. Na esquerda socialista, as figuras com melhores condições cedo se colocaram fora da contenda e as que apareceram a jogo desempenharam o papel que as circunstâncias permitiram. Nas restante forças políticas com expressão, as escolhas foram “honorables”. E os “espontâneos” e os “cromos” são, hoje como sempre, apenas isso mesmo.

A função presidencial não sai elevada desta campanha. Ironicamente, a responsabilidade de quem vier a ser eleito será grande, porque lhe vai competir – se souber e puder – retomar a importância da instituição Presidência da República no quadro interinstitucional. Se o não conseguir fazer, o risco é claro: é a possibilidade de, no seio das principais forças políticas, vir a gerar-se um consenso no sentido de rever a Constituição, por forma a reforçar o pendor cada vez mais parlamentar do regime, passando o Presidente a ser eleito na Assembleia da República, como acontece, por exemplo, na Alemanha ou na Itália. Ou na Grécia.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...