Uma noite de 2002, em Nova Iorque, depois de um jantar que ofereci na residência do embaixador de Portugal na ONU, lugar que eu então exercia, Hedi Annabi, um dos convidados, disse-me que tinha de sair, ainda antes da hora do café. E explicou-me: "Moro longe, em "upstate" e, logo de manhã, tenho de estar no meu gabinete. Tenho de apanhar o comboio. É por isso que raramente consigo aceitar os teus convites para jantar".
Sendo em geral simpáticos, os salários que a ONU pagava aos seus funcionários, mesmo de nível superior, como era o caso, não davam para poder ter um bom apartamento em Manhattan, pelo que alguns preferiam ir viver na parte norte do estado de Nova Iorque, isto é, "upstate", como ali se diz.
Heddi Annabi era "Assistant Secretary General" no departamento de operações de paz, nessa altura com o tema de Timor-Leste sobre a mesa. Era voz corrente ser muito escutado por Kofi Annan. O meu "número dois", o ministro-conselheiro Nuno Brito, assinalara-me Annabi como uma das pessoas que era importante cultivar, desde o primeiro momento, na gigantesca máquina da ONU. E tinha razão. Foi talvez das primeiras pessoas que fui visitar, depois da minha chegada a Nova Iorque.
Era uma figura discreta, serena, sorridente, que logo notei muito organizada e meticulosa. Tinha humor, sabia ter ironia sem ser cínico, o que era uma prova de caráter. E era homem de uma só palavra, o que nem sempre é comum na vida multilateral - e noutras também, convenhamos. Criámos uma excelente relação pessoal, com consequências funcionais que se tornaram evidentes.
Quando saí de Nova Iorque, deixei de saber de Annabi. Aconteceu-me o mesmo com outros amigos diplomatas que fui deixando espalhados pelo passado, nacionais de países onde trabalhei ou outros estrangeiros que entretanto rodaram pelo mundo. Alguns, poucos, voltei a cruzar em outros postos, com outros fui trocando mensagens, mas, com a esmagadora maioria, fui perdendo contacto. Foi o caso de Annabi.
Até um dia de 2005. Tinham passado três anos desde que eu tinha saído de Nova Iorque. Acabara de chegar ao Brasil, como novo embaixador. Um dia, o meu colega Rui Macieira, então ministro-conselheiro na nossa missão na ONU, telefonou-me de Nova Iorque. Annabi contactara-o, pedindo que me transmitisse um convite de Koffi Annan para poder apresentar o meu nome como Representante Especial do Secretário-Geral da ONU para a Costa do Marfim. A resposta tinha de ser rápida.
O conceito de "zona de conforto" veio-me logo à cabeça. Sempre embirrei com o regular elogio que é costume fazer-se a quem sai "fora da sua zona de conforto". Ora a "zona de conforto", se a conquistamos, deve ser preservada. Olhei à minha volta e pensei: o Brasil era o penúltimo posto da minha carreira, antes de ter obrigatoriamente de abandonar o serviço externo. Tinha para mim que a vida me ia correr bem por ali. Por que diabo iria sair de Brasília? Ir viver em Abidjan, num país politicamente convulso, deixando a minha carreira, para ganhar uma linha curricular e, possivelmente, algum dinheiro mais? Nem ousei suscitar a hipótese à minha mulher! Fiquei muito grato a Annan e a Annabi, disse isso mesmo ao Rui Macieira e não pensei mais no assunto. (Soube, entretanto, que o lugar veio a ser ocupado pelo antigo representante permanente da Suécia na ONU, Pierre Schori, com quem eu coincidira em Nova Iorque e que já era um amigo antigo, de outras "guerras").
Desde então, passaram cinco anos e não tinha tido mais notícias de Hedi Annabi. Até hoje, quando soube que morreu no terramoto que assolou o Haiti, onde chefiava a missão da ONU naquele país.