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sábado, janeiro 23, 2021

Olrik por Védrine



Para parte da geração portuguesa que teve a infância ou juventude nos anos 50 do século passado (por alguma razão, custa-me sempre escrever a expressão "do século passado"), as aventuras de "Blake et Mortimer", da autoria de Edgar P. Jacobs, são, ainda hoje, uma recordação muito viva.

Figura importante da excelente escola belga de banda desenhada, de que Hergé é, sem a menor dúvida, o maior expoente, Jacobs abria-nos o mundo através de álbuns de uma fantástica qualidade e fruto de cuidado estudo, que agarravam a nossa imaginação e nos transportavam para cenários muito realistas, às vezes quase plausíveis.

Quando vivi em Londres, não resisti a reproduzir a pé os percursos do "Marca Amarela" e do Dr. Septimus. Ao entrar, um dia, no museu do Cairo, no Egito, a figura do Professor Grossgrabenstein (que só pode ter sido inspirada, "avant la lettre", no meu amigo Caetano da Cunha Reis) veio-me logo à memória - este último saído desses dois álbuns sem par que constituem "O Mistério da Grande Pirâmide". Até os Açores passaram pelas histórias de Jacobs, no "Enigma da Atlântida".

A trama jacobiana centra-se sempre numa dupla de amigos, um militar e um cientista, envolvidos na luta eterna, pelo lado do "bem", contra um inimigo permanente, Olrik, que encarna os vários males e que tem uma capacidade de sobrevivência que acaba por nos causar mesmo alguma admiração. As mulheres, confirmando uma misoginia muito própria de um certo período da banda desenhada europeia (mas não, curiosamente, dos "comics" americanos, sendo embora da mesma época), têm sempre um papel muito escasso nestas tramas, surgindo apenas com algum relevo nos álbuns desenhados pelos seguidores de Jacobs, já após a sua morte, em 1987.

A que propósito vem esta evocação? É que, há dias, dei conta de que tinha sido publicada uma “biografia” dessa “infamous” figura que é Olrik. E quem é que a escreve? O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Hubert Védrine e o seu filho Laurent, cineasta.

A Amazon fez-me hoje chegar o livro, num pacote de “takeaway” livresco que, às vezes, me dou ao luxo de consumir, nestes tempos de confinamento.

Hubert Védrine foi ministro dos Negócios Estrangeiros de França, durante o governo Jospin. Antes, havia sido íntimo colaborador de François Mitterrand, em torno de cuja figura fez um livro que considero essencial para melhor se perceber o antigo presidente - "Les Mondes de François Mitterrand".

É um homem sereno, que pensa a política externa com grande cuidado, sublinhando as vantagens de olhar os tempos em perspetiva, evitando juízos radicais ou moralistas, mas não caindo nunca num relativismo de "realpolitik".

Conheci-o bem quando, ao tempo em que ele era homólogo de Jaime Gama, nos cruzámos em dezenas de horas de reuniões, nos idos de 90, e, em especial, no processo de sucessão das presidências portuguesa e francesa, em 2000.

Foram tempos complexos, em que nem sempre estivemos de acordo, antes pelo contrário. Mas guardámos uma excelente relação pessoal, que prolongámos em encontros em Nova Iorque e, mais tarde, por várias vezes, em Paris. Falámos de muitas coisas, mas nunca calhou falarmos de Olrik...

Aproveito para contar um episódio passado com Védrine, há 21 anos, quase dia por dia, em Paris. 

Estávamos em finais de janeiro de 2000. Como secretário de Estado dos Assuntos Europeus, eu tinha ido a Paris, a convite do meu contraparte Pierre Moscovici, ministro-delegado para os Assuntos Europeus. Reuni com ele no Quai d’Orsay, onde almoçámos. Durante a refeição, chegou a indicação de que Hubert Védrine queria ver-me, no final da refeição.

Notei que Moscovici ficou intrigado. Védrine era o seu chefe, mas não era segredo para ninguém que as relações entre ambos eram muito difíceis. Imagino que, no momento, lhe tivesse passado pela cabeça que o ministro, que ele sabia que me conhecia pessoalmente muito bem, quisesse dizer-me algo à sua revelia, em particular. Porque sempre gostei de jogar com as cartas em cima da mesa, Lancei-lhe, de chofre: “Não queres vir comigo?” Hesitou, mas foi.

Quando entrámos no gabinete de Védrine, ainda nos não tínhamos sentado, este, sorrindo, disse-me: “Sabes que este é um momento quase histórico?”. Não percebi, mas ele explicou, com o esgar “mitterrandiano” que tinha: “Porque esta é uma das muito raras ocasiões em que o Pierre aqui veio, desde que ambos estamos no governo.” Moscovici riu, mas o riso foi bastante amarelo.

terça-feira, janeiro 18, 2011

Europa

É sempre estimulante ouvir falar Hubert Védrine, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, no governo de Lionel Jospin. A sua leitura da Europa e do mundo aparece marcada, nos dias de hoje, por uma dose de realismo que quase roça o cinismo (embora etimologicamente, cinismo esteja muito longe de querer dizer o que hoje aparenta: cínico seria alguém que teima em dizer não e em abalar o conformismo, o que cola melhor a Védrine).

Ontem à noite, num grupo de amigos, Védrine fez um elogio rasgado de Barack Obama, que considera uma personalidade extremamente inteligente e muito mais avançado do que a América contemporânea - o que, a seu ver, pode justificar muitas das dificuldades políticas que enfrenta e os obstáculos que vai ter de ultrapassar para ser reeleito. Obama terá interiorizado já que os EUA só poderão ambicionar a ter uma "liderança relativa" do mundo - um conceito redutor de poder que os atuais americanos estão ainda longe de poder aceitar.

Sobre as relações EUA-Europa, Védrine é de opinião que os europeus não perceberam a "agenda" sob a qual Obama foi eleito, que tem essencialmente a ver com a saída da crise social interna e, no plano global, com o dédalo estratégico em que a administração Bush envolveu o país, nomeadamente na zona do Golfo. Daí a "desilusão" provocada deste lado do Atlântico pela pouca importância dada por Obama à Europa, onde a não existência de problemas prementes conduz, naturalmente, à desaparição em Washington de uma desnecessária retórica de proximidade prioritária, de que nem sequer Londres já beneficia.

Muito curiosa foi a fórmula que Vérdrine utilizou para caricaturar o modo como os americanos olham para o processo integrador do "velho continente", onde dão preeminência quase absoluta ao reforço e estabilidade da NATO. A União Europeia, para os EUA, não sendo levada a sério como entidade política com identidade própria ("e há alguma razão para que devessem ter uma ideia diferente?") é vista como uma espécie "departamento económico da NATO", razão pela qual, aos olhos de Washington, não há nenhuma razão para que as fronteiras (europeias) de ambas não coincidam (daí a insistência na entrada da Turquia para a UE).

Mais do que poder dar ou não razão a Védrine quanto a esta visão americana, talvez nos devamos interrogar, cada vez mais, sobre se há uma real razão para que o outro lado do Atlântico nos olhe assim.

terça-feira, abril 14, 2009

Hubert Védrine

Hubert Védrine foi ministro dos Negócios Estrangeiros de França, durante o governo Jospin. Antes, havia sido íntimo colaborador de François Mitterrand, em torno de cuja figura fez um livro que considero essencial para melhor se perceber o antigo presidente - "Les Mondes de François Mitterrand".

É um homem sereno, que pensa a política externa com grande cuidado, sublinhando as vantagens de olhar os tempos em perspectiva, evitando juízos radicais ou moralistas, mas não caindo nunca num relativismo de "realpolitik".

Conheci-o bem quando, ao tempo em que ele era homólogo de Jaime Gama, nos cruzámos em dezenas de horas de reuniões, nos idos de 90, e, em especial, no processo de sucessão das presidências portuguesa e francesa, em 2000. Foram tempos complexos, em que nem sempre estivemos de acordo, antes pelo contrário. Mas guardámos uma excelente relação pessoal, que prolongámos em encontros em Nova Iorque.

Tivemos um almoço, há dias. Védrine, que há uns anos criou o termo "hiperpotência" para designar os EUA, tem hoje uma leitura expectante, mas não deslumbrada, de Obama, do novo estilo de liderança americana que alguém, por aqui, qualificou há dias de "modéstia tranquila". Tem também uma reflexão interessante sobre a inquietante não homologia entre a multipolaridade do G20 e o mundo multilateral. E incita a que observemos, com prioridade, a evolução da China e a hipótese de, a prazo, se vir a criar um irónico "G2" (EUA e China), com a Europa a ver navios...

quarta-feira, janeiro 06, 2010

Le temps des chimères



Recebi como oferta do pessoal da Embaixada, neste Natal, o excelente livro "Le Temps des Chimères", de Hubert Védrine, uma personalidade francesa de quem já aqui se falou.

O volume reúne textos de natureza diversa, desde artigos a entrevistas e intervenções, do período entre 2003 e 2009. Nele, Védrine traça a sua visão sobre a situação internacional. com grande atenção à América, à crise europeia e a outros temas, entre os quais a "françafrique".

Ao lê-lo, fica-se com a nítida sensação de que este colaborador próximo de François Mitterrand e, mais tarde, ministro dos Negócios Estrangeiros de Lionel Jospin, é  hoje uma das mais lúcidas cabeças da política externa europeia.

Pena é que, até agora, a sua experiência e rigor não tenham sido aproveitados nesse contexto,  para além dos "think tanks" que usufruem do seu saber e por onde, em Paris, o vou encontrando.

quarta-feira, janeiro 27, 2010

Europa

O Tratado de Lisboa foi o pretexto, mas Hubert Védrine foi muito para além disso na excelente conferência que, ontem ao final da tarde, fez no centro cultural Gulbenkian, aqui em Paris.

Apresentado por Teresa Gouveia, que deu uma bela lição de como se deve fazer a introdução de um conferencista, o antigo MNE francês terá surpreendido pela franca lucidez do seu raciocínio, na abordagem da situação internacional, em geral, e da Europa, em particular.

Hubert Védrine atacou alguns mitos fundacionais da unidade europeia, revelou alguns dos logros em que o pensamento dominante no continente se deixou enredar por décadas e foi de um realismo muito frio quanto às possibilidades da Europa se afirmar como potência no cenário mundial. Por isso, e uma vez mais, volto a recomendar o seu mais recente livro, de que já falei aqui.

segunda-feira, junho 11, 2018

Retrato de grupo com alguém sentado




A fotografia de Trump, sentado, tendo à volta os restantes líderes do G7, é magnífica, porque revela muito daquilo que foi o ambiente naquela reunião. 

Num registo diferente, lembrou-me uma cena passada na madrugada final da longa negociação do Tratado de Nice, em dezembro de 2000. 

Tinhamos passado dezenas de horas a debater os votos e os deputados europeus atribuídos a cada país. Uma discussão dura e complicada, em que António Guterres lutou até obter tudo, repito, tudo quanto considerou indispensável para a defesa dos interesses portugueses. Nem todos saíram daquela negociação tão satisfeitos como nós.

De súbito, lá para as cinco da manhã, quando tudo parecia apontar para um acordo “a quinze”, o primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt, pediu a palavra, para grande desespero de Jacques Chirac, que presidia à sessão, ladeado por um impassível Lionel Jospin e pelo MNE francês, Hubert Védrine, quase vencido pelo sono. O chefe do governo belga propunha que os conselhos europeus passassem a ter lugar, mais regularmente, em Bruxelas. E sugeria uma reabertura de alguns pontos, para além do ali acordado, aquilo que um ano depois viria ser a “declaração de Læken”. Chirac resistiu mas o líder belga, visivelmente pressionado pelo seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Louis Michel, pediu uma suspensão da sessão. E foi para um “confessionário” (como no “argot” multilateral se designam os encontros restritos) com Chirac, com este acompanhado pelo indispensável secretário-geral adjunto do Conselho da UE, Pierre de Boissieu, o seu braço direito nesses dias negociais.

Minutos depois, vimos Chirac, fumegando de visível raiva, atravessar a sala, seguido de Verhofstadt. Com a sessão interrompida, os primeiros-ministros e os ministros tinham-se juntado em grupos. Um desses grupos formou-se à volta da delegação belga, discutindo os termos da proposta que obrigara àquela pausa. Eu estava por ali, discreto, para tentar perceber melhor o que os belgas realmente queriam. No centro desse grupo, sentado de costas para a mesa, estava o MNE Louis Michel. 

Chirac aproximou-se então e, confesso, quando vi a sua mão agitada no ar, pensei que ia bater em Michel, o único que estava sentado. (Daí a similitude com a fotografia do G7). “C’est vous! Vous êtes le coupable!”, gritou Chirac para Michel. Este tentou levantar-se, retorquindo qualquer coisa, mas o gigante Chirac, que parecia ainda maior perante a figura espalmada na cadeira à sua frente, não lhe dava espaço para recuperar a posição vertical. E a mão do presidente francês, com um dedo acusatório espetado, vogava já a centímetros da barba de um acossado Louis Michel. Chirac, na conversa com Verhofstadt, deve ter sabido que a exigência belga de última hora, que ameaçava a preciosa unanimidade que ele laboriosamente conseguira, era culpa do ministro dos Negócios Estrangeiros. 

Já não sei como as coisas acabaram, mas Chirac lá retomou a presidência da reunião, Michel não foi esbofeteado e nós pudémos, finalmente, fechar aquela interminável negociação.

Na foto, Trump não está a ser ameaçado de levar um par de estalos. Mas, estou certo, no grupo da foto haveria quem muito gostaria de lhos dar. Um grupo em que a única pessoa comum com a reunião de Nice é o presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker.

domingo, janeiro 03, 2021

O caso austríaco


Como prometido, deixo uma história da nossa presidência europeia de 2000.

Recordo-me do assunto ter sido abordado à margem do Conselho Europeu de Helsínquia, no termo de 1999. A hipótese dos conservadores austríacos poderem vir a fazer uma coligação com o partido de Jörg Haider, o FPÖ, com notórias marcas de extrema-direita e com inequívocas declarações filo-nazis por parte de alguns dos seus dirigentes, começava a ser falada.

Em janeiro de 2000, enquanto eu andava numa roda-viva, entre capitais europeias, para conseguir apoios para um alargamento da agenda da Conferência Intergovernamental, que iria rever o Tratado de Amesterdão, que nos permitisse obter do Parlamento Europeu o necessário “avis conforme” prévio ao arranque dos trabalhos, começou a gerar-se, entre os dirigentes políticos europeus, um profundo mal-estar em torno daquela opção austríaca. Franceses e belgas eram os mais vocais, muito por virtude dos seus próprios problemas internos, onde o exemplo da Áustria poderia “normalizar” a ascensão dos seus partidos de extrema-direita.

No dia 28 de janeiro, em Estocolmo, fui acordado com o anúncio da concretização da coligação. Apanhado no hall do hotel pelos jornalistas que me acompanhavam nesse périplo, fiz uma declaração cautelosa: “Estamos bastante preocupados, mas é muito importante olhar agora com cuidado o programa da nova coligação, a fim de verificar se infringe os compromissos austríacos subscritos no seu acesso à União”.

Viajei de Falcon, a caminho de Madrid, e quando pousámos na capital espanhola, ainda na pista, tinha uma chamada telefónica de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros.

Disse-me para, depois da reunião que eu iria ter com o meu homólogo espanhol, falar à imprensa, em nome da presidência portuguesa, tomando uma atitude bastante mais firme do que aquela que eu próprio assumira nessa manhã, que estava a ser lida, em certos meios europeus, como uma relativa contemporização da presidência portuguesa face ao anúncio austríaco.

“António Guterres quer que você assuma uma tomada de posição muito forte, de rejeição aberta da fórmula governamental austríaca”, disse Gama. Tinha de ser eu a fazê-lo, porque fora eu quem tinha sido “soft”, ainda nessa manhã. A verdade é que eu tinha dito o que disse apenas porque desconhecia até onde Lisboa estava disposta a ir. Em cerca de cinco anos e meio de governo, deve ter sido essa a única ocasião em que me foi pedido, por Guterres e Gama, para ter uma posição mais à esquerda...

Mal eu tinha acabado a conversa telefónica com Gama, o embaixador português em Madrid aproximou-se. Trazia um recado do meu colega espanhol, Ramón de Miguel, com quem eu iria reunir dentro em pouco: informava-me que, numa sala do Palácio de Santa Cruz, as Necessidades espanholas, me aguardava a nossa colega austríaca, a até ali secretária de Estado Benita Ferrero-Waldner, que tinha vindo secretamente a Madrid. Benita fora já anunciada como nova ministra dos Negócios Estrangeiros do novo governo de coligação. Assim, e ainda antes de encontrar o meu homólogo espanhol, eu teria de ter essa conversa.

Conhecia muito bem Benita Ferrero-Waldner. Tinha-a tido como hóspede oficial em Lisboa, tinha estado em Viena a seu convite, havíamos criado uma relação muito agradável, ao longo dos últimos anos. Recebeu-me com um imenso sorriso, começando por dizer que a minha declaração, nessa manhã, em Estocolmo, em nome da presidência portuguesa, fora muito bem acolhida pelo novo primeiro-ministro, Wolfgang Schüssel. Mal ela sabia que eu tinha acabado de receber instruções para endurecer esse discurso!

Nos minutos que se seguiram, Benita deve ter percebido que alguma coisa tinha entretanto mudado. Elenquei, com ar já mais pesado, as dificuldades crescentes que estavam a surgir, um pouco por toda a Europa e a necessidade que Lisboa estava a ter de federar uma posição “a catorze”, que seguramente não iria ser muito agradável para Viena. Imagino que, na conversa, possa ter prometido fazer o meu melhor, mas a minha margem de manobra era muito apertada.

A minha colega mostrou-se desolada: tinha colocado toda a esperança na minha declaração e, agora, via-me a afastar-me dela. Lembro os seus olhos cheios de lágrimas, quando me dizia: “Francisco. Tu conheces-me a mim e ao Wolfgang, sabes que não somos fascistas!”

Saí dali para a reunião com Ramón de Miguel, que me parecia ter dito a Benita coisas um pouco mais simpáticas do que as que eu acabara de lhe dizer. Seguiu-se uma conferência de imprensa, na qual, na sequência das instruções recebidas, endureci fortemente o discurso. Os três jornalistas que comigo viajavam, e que desconheciam (e continuariam a desconhecer, até ao final da viagem) o meu encontro secreto com a recém-indigitada ministra austríaca, mostravam-se siderados com o meu novo tom.

Nos dias seguintes, o nosso governo, em Lisboa, viveu sob pressão forte de alguns dos seus pares. Chirac telefonou várias vezes a Guterres, Védrine a Jaime Gama e eu procurava fugir às pressões constantes do meu contraparte, Pierre Moscovici. Outros governos europeus subiram de tom contra Viena.

Guterres e o seu gabinete coordenaram habilmente a posição dos “catorze”, que culminou numa declaração conjunta. Escassos dias depois, coube-me defender, num debate muito intenso no Parlamento Europeu, dessa vez em Bruxelas, essa posição condenatória da Áustria. Jean-Marie Le Pen tomou-me, na ocasião, como alvo da sua violenta intervenção, tendo a minha resposta sido apoiada, entre outros, pelo centrista francês, François Bayrou, que se colocou abertamente a meu lado no debate. Um dia, em Paris, tive ocasião de agradecer pessoalmente a Bayrou esse apoio.

Guardei para sempre, nessa sessão, a pusilânime posição do presidente da Comissão, Romano Prodi, a querer estar “de bem com deus e com o diabo”. E não esqueci a solidariedade do comissário britânico Niel Kinnock, que atravessou o hemiciclo para me dar um abraço, dizendo que queria que eu soubesse que não se revia na atitude do presidente Prodi. Foi um dia difícil, que acabou numa animada entrevista, com Jeremy Paxton, no “Newsnight” da BBC TV.

Nos meses seguintes, a preocupação de Portugal, enquanto presidência europeia, foi tentar evitar que a nossa agenda de trabalhos pudesse ficar refém do problema austríaco. Tínhamos de garantir à Áustria o exercício pleno dos seus direitos como Estado membro, mas igualmente nos competia, em nome dos restantes “catorze”, objetivar uma forte e constante pressão política perante Viena.

Recordo o primeiro Conselho “Assuntos Gerais” em que Benita Ferrero-Waldner participou, em Bruxelas. Entrou na sala e, praticamente, com duas ou três exceções, ninguém a cumprimentou. E todos a conheciam bem do passado. Ostensivamente, levantei-me do meu lugar de representante de Portugal (Jaime Gama estava a presidir à sessão) e saudei-a. Gama fá-lo-ia, quando Benita passou por ele. Anos depois, num jantar privado, quando vivia em Viena, Benita, que veio a ser comissária europeia e muito nos ajudou a lançar a parceria estratégica com o Brasil, lembrou quanto esse nosso gesto a tinha sensibilizado.

Várias reuniões informais da nossa presidência viriam a ser perturbadas pelo ambiente hostil contra a Áustria. Acho que nos comportámos então com grande equilíbrio, como “honest brokers” que nos competia ser. Recordo ter ido a Bruxelas com António Guterres, para um encontro discreto com o primeiro-ministro Schüssel, na procura de soluções para acomodação do impasse. E ainda tenho na memória chamadas telefónicas recebidas de ministros portugueses, que viam colegas seus sairem da mesa, em reuniões informais que organizavam em Portugal, quando entrava o delegado austríaco, a perguntarem-me: “Olha lá! O que é que achas que eu faça?”. Foi muito instrutivo, pelo menos como experiência.

Depois, os franceses sucederam-nos e foi o que se viu: com o relatório de um “grupo de sábios”, meteram o assunto debaixo do tapete. É muito fácil delegar a coragem nos outros.

Hoje, visto à distância, o caso austríaco é uma brincadeira de crianças, ao lado de Estados membros que, com escandalosas cumplicidades, quanto mais não seja pelo silêncio, infringem, aberta e impunemente, as regras europeias que se comprometeram a cumprir.

sexta-feira, julho 19, 2024

A Última Campanha


A primeira vez que ouvi falar na hipótese de Mário Soares voltar a concorrer a umas eleições presidenciais foi pela boca de José Medeiros Ferreira, na tertúlia que o seu cunhado e meu amigo Nuno Brederode Santos, animava na Mesa Dois do bar Procópio. A conversa terá sido no início de 2005, um ano antes do sufrágio.

O Zé Medeiros era um homem de ideias ousadas, mas aquela parecia-me francamente excessiva. Lembro-me de ter colocado muitas dúvidas sobre a possibilidade de Mário Soares poder estar interessado em meter-se nessa nova aventura. O Nuno, confrontado com ela, foi dizendo, prudente, que "com o Soares, nunca se sabe...".

Talvez eu tivesse a obrigação de não ficar surpreendido com os acessos de vontade de Soares de regressar à política ativa, depois dos dois mandatos cumpridos em Belém. Anos antes, eu tinha sido confrontado com a sua inesperada disponibilidade para concorrer ao Parlamento Europeu. Aliás, tinha-me mesmo cabido a missão, de se provou impossível, de tentar "enquadrá-lo" na linha europeia do governo. Mais tarde, já depois de Soares eleito, fui também encarregado de fazer discretamente, junto fe instâncias europeias, o "damage controle" das consequências de uma sua inopinada, e falhada, tentativa de ser eleito presidente daquela instituição, rompendo imprudentemente com equilíbrios europeus consagrados. Mas isso são outras histórias.

Nesse ano de 2005, logo após essa conversa no Procópio, parti como embaixador para o Brasil. Um dia, Mário Soares telefonou a convidar-me a acompanhá-lo e a intervir num colóquio organizado no Recife, em que ia ser recordada a aventura do assalto ao paquete Santa Maria, que, em 1961, ali tinha aportado, capitaneado por Henrique Galvão, no mais ousado desafio que a oposição democrática fizera a Salazar.

Por todas as razões, mas acima de tudo pelo imenso respeito que tinha por Mário Soares, desloquei-me de Brasília ao Recife para o evento. Fui buscá-lo ao aeroporto do Recife e, na conversa até ao hotel onde ambos nos hospedávamos, contou-me que, na véspera, tinha tido um longo encontro com o primeiro-ministro José Sócrates, na residência oficial de São Bento. Não referiu o objeto desse encontro, mas o modo deliberadamente vago como mencionou o assunto intrigou-me. Confesso que, naquele momento, eu estava longe de ligar aquilo à candidatura presidencial. Mas, na realidade, esse tinha sido o motivo da conversa.

(Soares disse-me que, enquanto esperava para ser recebido por Sócrates, tinha surgido na sala um empregado da residência oficial, a oferecer-lhe um café. Era uma cara dele conhecida: já ali trabalhava quando Soares fora primeiro-ministro. Ficaram por uns minutos à conversa. Curioso, Soares perguntou-lhe se era verdade o que corria, à boca pequena, sobre a "agitação" das noites na residência oficial, ao tempo do anterior titular do cargo. "Contou-me umas histórias deliciosas", disse-me Soares. Mas, discreto, não entrou em pormenores sobre tais revelações.)

Tempos mais tarde, iria surgir a público o anúncio da recandidatura de Mário Soares à presidência da República. Do outro lado do espetro político, viria a aparecer Cavaco Silva, há muito pressentido como candidato, depois da clamorosa derrota que Jorge Sampaio lhe tinha infligido quase uma década antes. Mais tarde, emergiu Manuel Alegre, ficando o campo socialista dramaticamente dividido.

O PS oficial apoiou Soares. À minha medida, também o fiz, integrando a sua comissão de honra, embora, muitas vezes, no passado, tivesse estado bem distante do "soarismo". Entendi, contudo, não dever furtar-me a estar, naquele momento, ao lado da última luta de uma pessoa cujo nome se confundia com o nosso regime democrático. As possibilidades de sucesso da candidatura de Soares pareceram-me sempre muito escassas, mas para mim isso era o que menos importava.

Soares foi copiosamente derrotado nessa eleição, com Cavaco Silva a ser eleito logo à primeira volta e Manuel Alegre a obter um resultado bem mais simpático. Seria, aliás, a única derrota de Mário Soares, em eleições livres em Portugal. Na memória política portuguesa, essa campanha não deixou grande marca.

Há semanas, na Feira do Livro, a um preço quase simbólico, deparei com um volume assinado pelo jornalista (que falta nos faz ler o meu homónimo de sigla FSC, com regularidade!) Filipe Santos Costa, precisamente intitulado "A Última Campanha". Bem escrito, num tom ritmado, o livro é como que o "script" de um filme da campanha, com algumas revelações que nos ajudam a perceber melhor "os mundos de Mário Soares" (e aqui recupero o título de um livro de Hubert Védrine, "Les Mondes de François Mitterrand").

Estava eu longe de pensar que, quase duas décadas depois, iria passar umas horas a ler, com interesse, sobre a última e menos saliente aventura política de Mário Soares. 

segunda-feira, novembro 23, 2020

A Índia e a Europa


Foi há 21 anos, na Finlândia, no final de novembro de 1999.

Eu tinha chegado a Helsínquia, desfeito de cansaço, ido de Seattle, no extremo noroeste dos Estados Unidos, onde tinha chefiado, por alguns dias, a delegação portuguesa à frustrada - e famosa, pelos imensos conflitos de rua - reunião da Organização Mundial de Comércio.

Cabia-me representar Portugal na “troika”, presidida pela presidência finlandesa, que ia ter uma reunião de “diálogo político” com a Índia, em nome da União Europeia.

Semanas antes, numa conversa com Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, tínhamos comentado a anomalia que era a União Europeia ter estabelecido “parcerias estratégicas” com os EUA, Canadá, Rússia, China e Japão, sem que isso acontecesse com a Índia e o Brasil. Essas “parcerias” são o estádio mais elevado de relação política entre as duas partes, colocando quem as titula no topo das prioridades das relações externas da União.

Já na sala da reunião, no ministério finlandês dos Negócios Estrangeiros, tendo ao meu lado Chris Patten, o comissário para as Relações Exteriores da UE, fomos avisados de que a MNE finlandesa Tarja Halonen tinha ficado retida no parlamento, por algum tempo mais. O diretor político finlandês transmitiu-me o pedido da ministra para que, até à sua chegada, eu iniciasse os trabalhos e chefiasse a ”troika”. Assim fiz.

Apoiado nas “speaking notes” preparadas pelo secretariado-geral do Conselho, que disciplina um pouco o nosso intravável improviso, lá avancei pela agenda da reunião. Num dos pontos, o ministro dos Negócios Estrangeiros indiano, que chefiava a respetiva delegação, referiu quanto a Índia lamentava não dispor ainda de um quadro de diálogo mais estruturado com a UE, como aquele que uma “parceria estratégica” poderia proporcionar.

Veio-me então à ideia a conversa com Jaime Gama. Discretamente, perguntei a Chris Patten, sentado à minha direita, o que é que a Comissão acharia se a presidência portuguesa, que teria início dentro de escassas semanas, lançasse o processo de uma “parceria estratégica” entre a UE e a Índia. Patten garantiu-me que, por parte da Comissão, essa seria uma ideia muito bem vinda. Na resposta ao ministro indiano, assumindo por instantes o “chapéu” de futura presidência, anunciei que, se concordassem, Portugal iria testar junto dos parceiros essa possibilidade. Os indianos ficaram encantados!

Menos encantados terão ficado os finlandeses, que terão visto, no anúncio da nossa iniciativa, uma implícita desvalorização do “diálogo político” (um nível inferior de interlocução) que ali se tinham proposto desenvolver. A cara do diretor político finlandês assim o denunciava.

Minutos depois, Tarja Halonen assumiu a chefia da “troika”. No intervalo para o almoço, informada do ocorrido, disse que teria preferido que eu a tivesse consultado antes de tomar a iniciativa. Expliquei que reagira ao comentário do ministro indiano. E aproveitou para sublinhar que, semanas antes, no Dubai, eu tinha também aproveitado uma reunião por ela presidida, com países do Golfo, para propor a realização, em Bruxelas, sob nossa futura presidência, de uma reunião com a UE com o Conselho de Cooperação do Golfo. Ela não deixava de ter alguma razão...

Mas a questão da Índia não ficava por ali. Para o assunto poder ter “pernas para andar”, era preciso obter um acordo unânime dos parceiros. E, para isso, era necessário Jaime Gama usar todo o seu peso político, desde logo, junto dos “key players” dentro da UE - o Reino Unido, a França e a Alemanha.

Telefonei a Gama, ainda de Helsínquia, dando-lhe conta do que tinha feito. Concordou, em absoluto. Disse-lhe que, agora, se tornava necessário ele conseguir “segurar” a questão, logo na semana seguinte, na reunião do Conselho de Ministros “Assuntos Gerais” (como, à época, essas reuniões se chamavam).

Mas nem tudo ia correr como eu pensava. “Não vou poder ir a Bruxelas a esse Conselho. Você é que vai chefiar a delegação portuguesa”, disse-me Gama. Era a noite face ao dia. Gama tinha, com os seus colegas, uma relação de intimidade e confiança, agregada a um peso político, que não se comparava com a minha, que lidava, em regra, com os secretários de Estado, ao meu nível, num “campeonato” diferente.

Mas lá fui a Bruxelas.

Comecei por abordar Robin Cook, o ministro britânico, que, como eu previa, foi muito aberto. Sempre era um membro da Commonwealth a ter o estatuto de “parceiro estratégico”. E disse-me que Patten já tinha falado com ele do assunto. O profissionalismo da diplomacia britânica era uma evidência.

O francês Hubert Védrine, dos três ministros aquele com quem eu tinha uma melhor relação pessoal, foi mais cauteloso. Não tinha qualquer objeção de fundo, mas o “Quai” tinha de apreciar o assunto, à luz dos vários equilíbrios envolvidos.

Restava Joschka Fischer, o “verde” MNE alemão. A corrente nunca passou entre nós, desde o início. Foi “dismissive”, vago, pouco interessado, colocou algumas objeções, inventadas no momento. Aqui iríamos ter um problema, pela certa.

Regressei a Lisboa, chamei o embaixador indiano em Portugal e disse-lhe que seria essencial que, na sua capital, fosse feita, com caráter de urgência, uma forte pressão junto dos embaixadores francês e alemão, para facilitarem a aceitação da proposta portuguesa, que dentro de dias seria formalmente apresentada. Aconselhei-o mesmo a que, se possível, também fosse desencadeada, ainda em Nova Delhi, uma ação de sensibilização juntos dos restantes embaixadores europeus.

Assim poderá ter acontecido, ao observar o modo fácil como, nas semanas seguintes, o assunto evoluiu no quadro institucional de Bruxelas. Graças à iniciativa portuguesa, a “parceria estratégica” UE-Índia ficou consagrada para todo o sempre. (Anos de depois, em 2007, uma nossa iniciativa idêntica viria a fixar a parceria UE-Brasil).

Lembrei-me hoje disto, ao ver anunciado que o encontro da “parceria estratégica” entre a União e a Índia será um dos pontos altos da próxima presidência portuguesa, no primeiro semestre de 2021.

quarta-feira, janeiro 27, 2010

Europa (2)

Há pouco mais de uma década, no exercício de outras funções, declarei publicamente que o Governo português de então se não revia na perspetiva de uma Europa federal. Essa declaração não fora feita de ânimo leve: refletia uma orientação definida por quem tinha então autoridade política para o fazer e, com ela, queria marcar o sentido das nossas propostas para a revisão do tratado da União Europeia, que estava em curso.

Essa minha tomada de posição valeu-me ser zurzido então por alguma imprensa, que destacou o que considerou ser a nossa falta de "ambição" (palavra que, no jargão europeu, é sinónimo de entusiasmo pelas ideias federalistas) e ter colado Portugal a uma perspectiva "recuada" do projeto europeu.

Perante essa forte reação mediática às minhas palavras, um político português, com responsabilidades superiores às que eu então titulava, disse-me para eu me não preocupar muito e desenvolveu uma irónica teoria: alguns desiludidos com o fim dos "amanhãs que cantam" tinham acabado por encontrar no federalismo europeu um corpo doutrinário de substituição para o internacionalismo proletário, que no passado defendiam...

Lembrei-me ontem dessa leitura das coisas quando, à saída da conferência de Hubert Védrine, de onde transpareceu uma imagem algo desencantada do projeto europeu, alguém lançou, também com uma grande ironia e muita graça: "Tiraram-nos o socialismo, agora tiram-nos a Europa..."

segunda-feira, setembro 12, 2011

Presenças

Colóquio, esta manhã, na prestigiosa e prestigiada École Nationale d'Administration (ENA), sobre o "triângulo de Weimar". Oradores anunciados, entre outros: Alexandre Kwasniewski, antigo presidente polaco; Hans-Dietrich Genscher, antigo MNE alemão; Tadeusz Mazowiecki, antigo PM polaco, Hubert Védrine, antigo MNE francês, Hanna Suchoka, antiga PM polaca. Nenhum destes oradores apareceu.

Onde é que eu já vi isto?

Poder é isto...

Na 4ª feira, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal que desde há quatro anos faço no Jornal Económico com o jornalista António F...