Eu estava de saída da Áustria e quase de partida para o Brasil. Num fim de tarde, creio que de setembro, de visita a Lisboa, sentei-me com o Nuno Brederode Santos na Mesa Dois do Procópio e lembrei que talvez pudéssemos juntar os "utentes" da tertúlia que há anos se reunia nessa mesa, somados a alguns erráticos visitantes que por ali às vezes aportavam, e organizar uma bela jantarada, lá para dezembro, antes do Natal.
O Nuno achou a ideia ótima, passando-me logo a bola da logística: "Tu tratas de fazer as convocatórias e do local, claro!", assegurou-se. Como eu era o tido como o "maníaco" dos restaurantes e vivia agarrado ao email, esse lado estava garantido.
E passámos à lista dos convocados. Comecei a alinhar os nomes mais óbvios, o Nuno foi-se lembrando de uma imensidão de gente que ele, com tribuna diária assegurada na "Dois", conhecia de ginjeira.
A lista foi crescendo nas semanas seguintes. Ela só era consensual entre mim o Nuno. Ele era o patrono da Mesa e o "vetting" essencial a ele pertencia. Por mim, propus a eliminação de três figuras que, passando episodicamente pela Mesa Dois, o faziam em geral já com um nível de toxicidade etílica que se tornava desagradável para os restantes convivas. Um deles era mesmo tido como uma figura "histórica" do Procópio. Na Mesa Dois bebia-se, não se ficava bêbado. O Nuno concordou comigo.
Posso agora revelar que, quando alguns outros nomes começaram a transpirar, foram levantadas, por certas pessoas do "núcleo duro" da Mesa, fortes objeções: ou eram "fachos", ou eram não eram republicanos, ou eram "bestialmente esquerdalhos", ou "berravam alto", ou eram "calados como ratos", ou eram "chatos". Na realidade, eram, muito simplesmente, pessoas com quem alguém "não ia à bola", por questiúnculas passadas. Eu e o Nuno tínhamos combinado que ninguém, além de nós, organizadores-mor do jantar, tinha direito de veto. Quem se sentisse mal com a presença de alguém, então nessa noite que ficasse a jantar sozinho em casa. Ninguém faltou. E cedo começaram mesmo a chegar-me as cunhas de alguns que não se sentiram lembrados.
A Alice Pinto Coelho, dona do Procópio, metida ao barulho da ideia desde o início, e que a acolheu com entusiasmo, decidiu fazer uma surpresa simpática aos presentes no repasto: a cada um, como prova maior de confiança e fidelidade, ela ofereceria uma chave de acesso ao bar. E assim veio a acontecer, apenas com o pormenor, quiçá despiciendo, de que nenhuma das chaves abria a porta...
Lembrei-me de organizar o evento no restaurante A Marítima de Xabregas. Reunia as condições cumulativas que, à época, eram consideradas essenciais: comportar as cerca de 80 pessoas estimadas, ser local com uma comida simpática, não ser caro, ter lugar para estacionar e, condição "sine qua non" para uma imensidão de gente, ali ser permitido fumar.
Com o António Dias, e comigo ainda em Viena a fechar o posto e as malas, nuns blogues que então alimentávamos, começamos a lançar a ideia, que dois jornais semanários vieram mesmo a tomar por séria, de que o jantar se destinava a aprovar um manifesto chamado "Documento de Xabregas". Fomos publicando extratos inventados desse manifesto de "regeneração política" que tinha como finalidade servir de contraponto a um texto que, meses antes, surgira entre a fina-flor do liberalismo económico lisboeta, o "Compromisso Portugal", lançado no convento do Beato. Ora Xabregas era logo ali ao lado... Xabregas ia responder ao Beato! Nasceu mesmo o blogue "Espírito de Xabregas", escrito vá-se lá saber por que mãos, que durou uns anos e muito nos divertiu.
Lembro que, por essa altura, se viviam os deliciosos dias do estertor do governo santanista, o tempo das trapalhadas diárias e especialmente noturnas, do sai-e-entra para São Bento, quer fosse para o divertido governo, quer fosse apenas para a residência do animado primeiro-ministro, felizmente então já quase "sortant".
Mas uma "sombra" estava ainda para surgir. A data que eu e o Nuno tínhamos escolhido para o repasto coincidia precisamente com uma imensa jantarada que ia ser feita pelo Partido Socialista, na velha FIL, em torno de José Sócrates, que por essa altura estava já a aquecer os motores para chegar a São Bento. Recordo-me de que o José Vera Jardim telefonou a alertar para a funesta coincidência de datas e para o que pudesse ser daí interpretado politicamente. Respondi-lhe que a esmagadora relevância daquilo que ia sair do "Documento de Xabregas" se sobrepunha à espuma dos dias que a jantarada "chucha" representava. O Sócrates que se amanhasse! O Zé riu-se.
E lá fomos todos, muitos, jantar a Xabregas, num dia que era de dezembro de 2004, mas cuja data exata não tenho presente. O momento foi tão divertido que acabaria por ser o primeiro dos de dez jantares quase anuais da Mesa Dois que acabaram por ter lugar. Em nove dos 12 anos seguintes, organizei idênticos encontros em vários locais que fui escolhendo: do Vírgula (duas vezes) à Ordem dos Engenheiros, do Jardim do Tabaco ("et pour cause") à Tasca do Papagaio, passando pelo Manel do Parque Mayer (duas vezes) e pelo Rota das Sedas.
O último foi em 2016 e, simbolicamente, decidi regressar à origem, à Marítima de Xabregas. Foi também o derradeiro em que o Nuno esteve presente, já com a saúde muito debilitada. Da cama do hospital em que estava então internado, o António Dias enviou-nos um divertido poema, que foi lido na sala pela Maria do Céu Guerra. Com a saída de cena do Nuno e com o fim da Mesa Dois do Procópio que ele encarnava e de que era a alma, já não se justificam mais jantares. Agora muito menos, sem termos a querida Alice connosco.
Porquê a foto que ilustra o texto?, perguntará o leitor. Nela figuram dois convivas improváveis, que retratei num dos jantares. Ambos também já desapareceram. Um é o Caetano da Cunha Reis, fundador da Juventude Centrista, homem orgulhosamente de direita. Outro é o Carlos Antunes, criador das Brigadas Revolucionárias e do PRP, para quem a esquerda era tudo. Ambos eram meus amigos e do Nuno Brederode Santos. Esta fotografia ilustra precisamente o que era o espírito da Mesa Dois do Procópio.
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