Até ter sido colocado na embaixada em Luanda, em 1982, a minha experiência com africanos era muito escassa. Na minha terra, em Vila Real, havia um único negro, jogador de futebol. Na universidade tive vários colegas, negros e mulatos. (Já terão dado conta que não vou enveredar por um léxico politicamente correto). Eram oriundos de famílias das colónias com óbvias posses e, na sua relação com os restantes colegas, nunca detetetei a menor diferenciação ou discriminação. Alguns desses amigos ficaram-me, aliás, para sempre - em Cabo Verde, em S. Tomé, em Angola e em Moçambique.
Tive o privilégio de viver um ambiente, familiar e social, que, por completo, me imunizou de quaisquer pulsões racistas. Mas mentiria se dissesse que nunca na vida contei anedotas “de pretos” e graçolas congéneres. Claro que contei, como as contei sexistas e de género. Não sou nenhum anjo!
Como diplomata, chegado a Luanda, fiz, entretanto, vários outros bons amigos, muitos dos quais de cor. Alguns conservo-os até hoje e, dentre todos eles, há um, orgulhosamente negro, que permanece como um dos meus mais íntimos amigos, que tenho para a vida.
Cheguei a essa Angola num tempo tenso, quer na vida política interna, com guerra civil à volta, quer na relação com Portugal, que atravessava um dos seus piores períodos. Por um “milagre” que tem muito a ver com a cumplicidade de uma língua comum, mas igualmente de uma matriz comportamental com muitas proximidades, sendo um diplomata estrangeiro isso nunca me vedou minimamente o convívio com pessoas locais - negros, mulatos ou brancos. Devo aliás dizer, porque é pura verdade, que tive maiores dificuldades com alguns brancos angolanos, que pareciam pretender “fazer esquecer” a sua cor, do que com pessoas de outra cor, que viviam de forma descomplexada a independência do seu país. Às vezes, podia notar-se, aqui ou ali, a emergência de alguma arrogância, mas tudo era superável com diálogo e frontalidade respeitosa.
Com exceção do pessoal diplomático ou com estatuto equiparado, a generalidade dos funcionários da nossa embaixada em Luanda, nesse ano de 1982, era oriunda da administração ultramarina. O mesmo acontecia, aliás, nas restantes embaixadas nas antigas colónias.
Muita dessa gente sofrera o período de transição política, com guerra aberta nas ruas da capital do novo país. A maioria mandara a família para a “metrópole” e ficara para trás, a tentar ainda amealhar alguns tostões. Vivia, às vezes de forma precária, numa Luanda tensa, sem comércio, com “esquemas” para a sobrevivência, numa convivência complexa com o novo poder, muitas vezes titulado por pessoas com quem, menos de uma década antes, esses agora “expatriados” haviam partilhado uma diferente relação de forças. Era gente com sentimentos racistas? Muitos tinham amigos negros, mas em outros detetavam-se reações que relevavam de velhos vícios comportamentais.
Um dia, ao passar junto à sala de espera da embaixada, ouvi um diálogo entre um contínuo, homem já de uma certa idade, com décadas de Angola, e alguém que esperava por uma reunião e que terá inquirido sobre se o encontro ainda estava muito demorado. Foi isto que ouvi: “Ó menino! Tu vais esperar, está bem?” Voltei atrás, olhei de relance para dentro da sala e constatei que o “menino” a quem o contínuo se dirigira era um homem negro, de quarenta e tal anos, que se mantivera impávido.
Fui para o meu gabinete e mandei chamar o contínuo. Perguntei-lhe se conhecia a pessoa que estava na sala de espera. Disse-me que não, que era a primeira vez que a via, que ela estava à espera de ser recebido por outro funcionário. “Então o senhor não o conhece e trata-o por tu?”, perguntei. O contínuo sorriu, olhando para o jovem diplomata que eu era, recém-chegado de uma embaixada num país nórdico, “maçarico” nas questões africanas, e foi “pedagógico”: “Ó senhor doutor! Isto cá é assim! Eles estão habituados, já não estranham”.
Fiz uma cara séria e retorqui: “O senhor fica a saber que se me chega aos ouvidos que volta a tratar desta forma alguém - preto, mulato, branco ou às riscas - que venha à embaixada, participo imediatamente de si. E convém que se saiba que qualquer colega seu, que se comporte dessa maneira, terá uma participação idêntica”. O contínuo embatucou e saiu. Nem era mau homem, ao que vim a constatar nos tempos seguintes. Era, apenas, um produto de outros tempos.
Quando, nos anos que se sucederam, os administrativos, contínuos e porteiros da embaixada constataram que alguns dos amigos dos novo cônsul-geral, do novo ministro-conselheiro e de mim próprio afinal não eram só “caucasianos” (acho uma graça imensa à expressão, que, estou certo, à época ninguém ousava usar, com risco de ter uma gargalhada como reação!), devem ter aprendido alguma coisa. Podem não ter aceite, com sinceridade, o comportamento que lhes era imposto, mas lembro-me que as coisas, a partir dessa altura, melhoraram bastante.
Mas “old habits die hard”, como se viu em Moscavide.