Uma leitora atenta deste blogue deixou, num comentário, a nota e a constatação de que, em Portugal, os socialistas haviam criado um ministério para a "reforma do Estado", sem, contudo, nunca a terem levado a cabo. Concedo que possa ser verdade.
Já agora, e se puxarmos pela memória, talvez devamos recordar que o primeiro membro de um governo que teve a seu cargo a "reforma administrativa" foi um (então) militante do CDS, Rui Pena, ministro do governo PS-CDS, nos idos de 70. A "reforma administrativa" tinha aliás uma tradição pré-25 de abril, com um famoso "secretariado", ainda dos tempos marcelistas.
Aproveito o mote para dizer que, em minha opinião, a "reforma do Estado" tem duas vertentes, que quase sempre surgem misturadas.
A primeira são as adaptações a introduzir no formato e funcionamento da Administração Pública, tarefa a que todos os governos se dedicam. Desde logo, para colocarem as estruturas em consonância com as novas leis orgânicas com que sempre se entretêm a balharar e dar de novo, bem como para despacharem algumas promessas que deixaram nos programas eleitorais. No bom sentido, recordo que ninguém como Maria Manuel Leitão Marques, membro de um governo socialista, foi tão longe em medidas para agilizar o Estado. Nunca vi isso seriamente contestado.
A segunda vertente prende-se com a questão das funções do Estado, que, por mais voltas que se lhe dê, é sempre uma questão que releva do modelo constitucional e do que dele decorre para o quadro de responsabilidades que competem ao Estado. É essa a origem dos conflitos com o Tribunal Constitucional. Ora a Constituição só pode ser alterada por um amplo consenso, movimento que, como é da lógica do desenho de todas as leis (e, por maioria de razão, da lei fundamental), deve ter menos a ver com uma pressão conjuntural de urgência e mais com uma análise serena e pactuada dquilo que a moderna sociedade portuguesa hoje deve exigir.
Permito-me agora dizer duas coisas talvez polémicas.
A primeira é que um repensar das funções do Estado não pode ser, necessariamente, sinónimo de redução do papel do Estado. "Reformar" não é reduzir e, por mais que isto possa surgir como sacrílego, não excluo liminarmente que, em alguns domínios, possa vir a constatar-se a necessidade de "mais Estado". Pense-se, por exemplo, na segurança pública e na proteção civil.
A segunda será talvez mais chocante para alguns, mas é o que sinceramente penso. Este governo tem uma maioria, conferida por uma indisputável lógica eleitoral. E, em democracia, isto é o essencial. Nessa qualidade, tem todo o direito de apresentar ao país as propostas que entender. Mas, se acaso tivesse um mínimo de sensibilidade, já deveria ter percebido que a evidente erosão da sua legitimidade política é menos conforme com projetos para cuja concretização necessitaria de maiorias que nem as mais fantasistas hipóteses lhe conferem. E quando essas propostas são de um ridículo quase pungente, então não se deve admirar que a gargalhada seja a resposta. A menos que o momento da apresentação do "guião" não tenha sido inocente e tivesse como objetivo ser uma mera cortiina polémica de fumo para fazer esquecer a brutalidade deste orçamento, hipótese que, curiosamente, não vi suficientemente explorada. Se assim é, de facto, qualquer papel serve.