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terça-feira, junho 21, 2011

A chamada

A reunião da Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses (ASDP), de que eu era vice-presidente, decorria já há mais de duas horas. Estávamos em outubro de 1995 e um novo governo entraria em funções dentro de semanas, após recentes eleições legislativas. Desde há muito que a ASDP andava às voltas com um projeto de um novo Estatuto para a carreira diplomática e queríamos aproveitar a existência de uma nova equipa ministerial para a convencer, logo no início, de algumas das nossas reivindicações. Sob a presidência de António Santana Carlos, a discussão ia longa e intensa. Caminhávamos artigo a artigo, com divisões entre nós, fruto do confronto de diversas sensibilidades. 

Desde meados dos anos 80 que eu tinha estado envolvido em grupos de trabalho que haviam desenhado vários projetos de "estatuto", uns mais ambiciosos do que outros. Muito mais do que reivindicações de natureza económica, pretendíamos regular com maior rigor o funcionamento da carreira, os processos de transferências e promoções, os direitos e deveres dos funcionários, acautelar uma imensidão de questões relativas à situação dos familiares, etc. À época, eu tinha ideias muito assentes sobre todos estes aspetos até porque, meses antes, tinha feito parte da equipa negocial que, sem sucesso, tentara um acordo com o governo que agora ia cessar funções.

A certo passo da discussão no seio da associação sindical, fiquei isolado. Num determinado artigo desse projeto, creio que o 28º, eu tinha uma posição completamente oposta à da generalidade dos meus colegas de direção. Expus os meus argumentos, mas, embora não convencido, fui vencido. E passámos à frente.

Íamos nós já na análise do "wording" de outros artigos quando o telefone tocou, numa mesa da sala de reuniões. A chamada era para mim. Atendi, verifiquei que não podia ter a conversa naquele ambiente de debate, tomei nota do número, pedi um telemóvel emprestado e saí, para ligar de outro local.

Minutos depois, regressei à reunião, que já tinha avançado pelo articulado adiante. Numa pausa, pedi ao António Santavna Carlos se poderia reabrir o debate sobre o artigo 28º. Houve um coro de protestos. Não apenas a vontade coletiva era esmagadora no sentido de consagrar a solução encontrada para aquele artigo como a minha tentativa de retomar uma questão fechada punha em causa a metodologia de trabalho acordada por todos, comigo incluído.

Com dificuldade, consegui adiantar uma explicação para a minha estranha atitude: "O problema, meu caros, é que a solução que vocês pretendem impor nesse artigo não creio que possa ser acolhida pelo novo governo".

A sala explodiu em perplexidade: "Essa agora!", "como é que sabes?", "ainda não iniciámos a discussão com eles!".

Aí, com um sorriso, deixei cair: "Sei isso porque acabo de ser convidado para fazer parte do novo governo, aceitei e nele vou defender a minha solução".

Era verdade. E, para quem se possa surpreender pela ousadia da revelação imediata do convite, esclareço que não estava a quebrar nenhuma promessa de silêncio, porque havia sido acordado que, naquele preciso momento, a indigitação seria revelada à imprensa. 

segunda-feira, junho 20, 2011

O senhor Ferreira

Quando o novo governo entrar hoje em funções não encontrará, à sua chegada à residência oficial do primeiro ministro, a figura discreta, educada e prestável que, durante décadas, fazia o primeiro acolhimento a todos os visitantes: o senhor Ferreira. 

O senhor Ferreira ocupava um pequeno espaço, à esquerda de quem entra na residência, acompanhado por um polícia, à paisana. Em tempos que por lá andei mais, era uma senhora. O senhor Ferreira conduzia os visitantes que não fossem conhecidos e não soubessem os cantos da casa à sala de espera, ao elevador ou à escadaria que acede ao primeiro andar - onde se situam os principais gabinetes e onde Marcelo Caetano criou uma sala onde reunia o conselho de ministros. Essa sala, que tinha uma mesa em forma de U fechado, foi, no tempo de António Guterres, mudada para a cave. Era nela que, muitas vezes, reunia o conselho de ministros, em alternativa ao edifício existente na rua Gomes Teixeira, perto dos Prazeres.

A figura do senhor Ferreira, que passei a conhecer melhor nos anos 90, sempre me fascinou. Soube um dia que tinha entrado ao serviço ao tempo de Salazar. Como se teria dado com a senhora Maria? Que histórias, se as quisesse e soubesse contar, o senhor Ferreira não teria, olhando o mundo político daquela portaria, desde os anos 60?! Mas o senhor Ferreira era um homem discreto, com a lealdade essencial que os servidores do Estado devem ter, para além dos regimes e governos que servem. Várias vezes "puxei por ele", tentando saber coisas desses tempos antigos, memórias esparsas que pudessem ajudar a desenhar um retrato dessa época. Salvo coisas vagas, nunca me contou rigorosamente nada.

Um dia, nuns minutos de conversa que pudemos ter, quem lhe contou uma história fui eu. Tinha-se passado em 1975, pouco antes do Natal. Terminava então um dos anos anos mais turbulentos da política portuguesa, em todo o século XX. A Revolução, iniciada em abril de 1974, tinha atravessado imensas peripécias - e imagino os tempos "épicos" que o senhor Ferreira não deve ter tido, à beira de vários ataques de nervos, naquela portaria de S. Bento, nesses tempos do PREC (o crismado "processo revolucionário em curso", para elucidação dos leitores mais novos), com fardas e barbas a entrar de roldão, com golpes e contra-golpes a prenunciarem-se e a pronunciarem-se pelo corredores e gabinetes, nas várias encarnações governativas do general Vasco Gonçalves.

Como disse, 1975 ia terminar. O movimento "retificativo" de 25 de Novembro já tivera lugar e o VI governo provisório, que vira a sua existência ameaçada desde a sua formação, em setembro, entrava finalmente nas suas primeiras semanas de verdadeira velocidade de cruzeiro, chefiado pelo almirante Pinheiro de Azevedo.

Eu trabalhava então, destacado pelo MNE, no Gabinete Coordenador para a Cooperação, a primeira estrutura de ajuda pública ao desenvolvimento, criada após a Revolução, voltada para as relações com as colónias africanas recém-independentes. O projeto de um determinado diploma legislativo havia sido por nós preparado e havia urgência em que fosse entregue, em mão, ao então secretário de Estado responsável por aquela área, o comandante Cristóvão Moreira, que deveria entrar para a reunião do conselho de ministros, em S. Bento, dentro de minutos. Fui encarregado de levar o texto e de lhe transmitir oralmente algumas curtas informações complementares. 

Cheguei à residência num velho Mercedes preto. Os portões abriram-se de imediato e, sob continência dos polícias, o carro avançou até ao fundo da escadaria exterior, que dá acesso à entrada do edifício. Estranhei a facilidade com que a viatura foi admitida, sem qualquer pergunta, identificação ou controlo, mas tomei isso à conta de ser, provavelmente, uma matrícula conhecida. Na pequena área no alto da escadaria, o dr. Almeida Santos falava para televisões (perdão, para a televisão, porque então só havia uma...). Procurei alguém que me indicasse como é que eu poderia chamar o comandante Cristóvão Moreira. Foi-me dito para subir ao primeiro andar. Aí, repetida a pergunta, indicaram-me uma sala. Era o conselho de ministros. Estava prestes a iniciar-se a sua reunião, com o primeiro ministro Pinheiro de Azevedo já no topo da mesa, alguns membros do governo sentados, outros em conversas entre si ou com colaboradores. Descortinei o meu secretário de Estado, inconfundível na sua teimosa camisola de gola redonda, entreguei-lhe o documento, dei-lhe a mensagem e saí.

Ao abandonar o edifício, ainda aturdido pela incrível facilidade que tivera, no acesso desde a rua à sala do conselho de ministros, sem nunca mostrar a minha identificação e sem o mínimo controlo de segurança, perguntei quem era o responsável pela portaria. Foi-me então apresentado, pela primeira vez, o senhor Ferreira. Sorridente, muito agradável no trato, ouviu o comentário pelo qual eu lhe transmitia o meu espanto, respondendo assim: "O senhor doutor (presumiu que o era) tem toda a razão. É verdade, não há quase segurança nenhuma! Mas sabe o que é que acontece? Nunca houve um governo tão grande como este. Entre ministros, secretários e subsecretários de Estado são 84 pessoas! Fora os membros do conselho da Revolução! Todos têm chefes de gabinete, adjuntos e assessores que entram frequentemente por aqui dentro e, se lhes perguntamos quem são, ficam quase ofendidos por não os conhecermos. Por isso, temos alguma dificuldade em controlar estas coisas...". Percebi então melhor o embaraço do senhor Ferreira.

Contei-lhe esta história em 1995. Obviamente, não se lembrava da conversa que, vinte anos antes, tivera comigo. Mas recordava-se bem desses tempos complicados da política portuguesa, que atravessara, profissional e discretamente, na portaria de S. Bento. Reformou-se já há uns anos. Se ainda por lá estivesse, e a partir de hoje, ter-se-ia cruzado com o mais pequeno governo da história política portuguesa pós-25 de abril, por contraste com aquele imenso VI governo provisório.

Não sei se o senhor Ferreira ainda é vivo. Espero bem que sim e que possa receber o meu abraço. 

terça-feira, maio 24, 2011

Ainda Strauss-Kahn

Pode parecer excessiva a insistência sobre o caso de Dominique Strauss-Kahn. A verdade, porém, é que isso mais não corresponde do que à importância que o assunto assume aqui em França, onde é objeto de comentários por parte de qualquer cidadão, no exercício daquilo a que Jean-Luc Godard chamava o "direito à impressão". Dando também razão à ironia clássica de Oscar Wilde segundo a qual "só as pessoas superficiais é que não julgam pelas aparências".

Hoje deixo duas notas, muito diferentes, sobre Strauss-Kahn.

A primeira sobre o seu trabalho à frente do FMI. Relembro apenas o subtítulo do editorial do último "The Economist": "Whatever the man did, do not forsake his ideas: they are more important". Quero com isto dizer que é da maior relevância conseguir preservar, na liderança que lhe irá suceder, o espírito novo que Dominique Strauss-Kahn soube transmitir ao FMI, o modo como conseguiu modular a rigidez e a cegueira dos números, a insensibilidade social que marcou muitos dos "ajustamentos estruturais" liderados e impostos, no passado, por esta instituição de Bretton Woods. Os "developing countries" podem ter muitas reticências sobre a personalidade de Strauss-Kahn, mas é hoje uma evidência que não irão esquecer o modo como ele soube adaptar positivamente a filosofia de atuação da organização. Além disso, vale a pena também ter presente a forma como Strauss-Kahn soube impor o FMI no quadro do G20, como conseguiu reforçar substancialmente os meios financeiros ao seu dispor, contribuindo também para um mais justo posicionamento relativo dos países emergentes no processo decisório dentro do Fundo. O mandato de Strauss-Kahn dentro do FMI foi um imenso sucesso, agora contrastantemente sublinhado pela tragédia pessoal em que está envolvido.

Apenas uma vez, e por breves minutos, me recordo de ter falado com Strauss-Kahn, nos momentos que antecederam um almoço oferecido por Lionel Jospin a António Guterres, em Matignon, creio que em 1999. Nem faço ideia do que falámos. Durante esse almoço, teve lugar uma cena algo caricata. 

A certo momento do repasto (aliás, recordo, com excelentes vinhos), achei que deveria transmitir ao primeiro-ministro português uma informação, que me parecia poder ser-lhe útil na sequência da conversa. Eu estava à esquerda de Jospin, que tinha em frente António Guterres, o qual, por sua vez,  dava a direita a Dominique Strauss-Kahn. Gatafunhei umas notas nas costas de um menu, em que devo ter escrito qualquer coisa do estilo: "Seria importante lembrar a Jospin que..." ou "A França não pode esquecer que..." ou outros comentários do género. Era uma nota para ser lida apenas por António Guterres, porque, lembro-me, tinha elementos algo sensíveis na forma como estavam apresentados. Dobrei o menu e, a um empregado de mesa que passava, pedi que o entregasse ao primeiro-ministro português, do outro lado da mesa. O homem terá entendido menos bem o que eu disse, deu a volta à mesa e passou a minha nota a... Dominique Strauss-Kahn, que estava precisamente à minha frente. 

A conversa entre Jospin e Guterres ia animada e eu não tinha a menor possibilidade de a interromper, para dizer ao ministro da Economia e Finanças francês que a nota não lhe era dirigida, mas sim ao seu parceiro do lado. Embaraçado, gesticulei discretamente para chamar a atenção de Strauss-Kahn, o qual, no entanto, se dedicava a ler, com toda a atenção, aquilo que eu tinha escrito, em letras maiúsculas, desejavelmente "for the eyes only" do meu primeiro-ministro. O governante francês deve ter percebido o essencial do texto. Quando acabou a leitura, olhou para mim, esboçou um sorriso e passou o papel a António Guterres. Enfim, imprudências que se cometem...   

sexta-feira, maio 20, 2011

Schengen

E volto a lembrar o Luxemburgo, onde fica a pequena localidade de Schengen, que deu o nome ao acordo de que tanto se fala.

O acordo de Schengen, que prevê a livre circulação de pessoas num muito alargado espaço dentro da União Europeia, foi uma das mais emblemáticas conquistas do processo integrador do continente. Portugal revelou-se um dos países mais impulsionadores do início do projeto, através de Vitor Martins, o secretário de Estado dos Assuntos Europeus que me antecedeu, como sempre fiz questão de sublinhar. E a ele nos temos mantido fiéis, a partir de então.

Todos os países aderentes a Schengen tiveram, desde sempre, a consciência de que haveria alguns riscos associados à fixação desta zona de liberdade de movimentos. Muitas dessas preocupações, à época, ligavam-se à criminalidade interna. Recordo-me que, um dia, em Bruxelas, nos anos 90, quando alguém louvou publicamente, numa reunião, a maravilha que iriam ser as facilidades de deslocação de turistas da Bélgica para as belas cidades italianas, alguém ter comentado: "... e dos mafiosos da Sicília para cá!". Mas as grandes discussões iniciais em Schengen estavam centradas na questão do reforço das fronteiras externas, em especial dos aeroportos, pela consciência que se tinha de que a fragilidade revelada por qualquer dos países integrantes acabaria por se repercutir sobre a generalidade dos parceiros. E, diga-se, a peculiaridade da situação geográfica italiana, que hoje domina o debate, era, já então, o centro das atenções.

Durante seis meses, em 1997, Portugal presidiu ao acordo de Schengen. Organizámos então uma importante reunião de ministros em Lisboa, na qual, devo hoje confessar pela primeira vez, como alguns especialistas portugueses então lá presentes poderão testemunhar, só consegui fazer vingar um compromisso final... pela fome! Prolonguei a reunião por horas, com sucessivos "drafts", até conseguir o que pretendíamos. O almoço oferecido aos delegados, no CCB, só começou quase às 4 horas da tarde, com alguns a perderem aviões.. Nessa reunião foi longamente debatida a questão da calendarização do processo de adesão da Itália. O ministro italiano do Interior tão contente ficou com a fórmula que adoptámos que, no final, me pregou dois repenicados beijos na cara. Chama-se Giorgio Napolitano e é hoje presidente da República do seu país. Durante a presidência portuguesa da UE, em 2000, acabaria por ser graças a ele, como presidente da comissão institucional do Parlamento Europeu, que conseguimos o "avis" que permitiu o lançamento da negociação da Conferência Intergovernamental. A Europa faz-se também destas retribuições.

O compromisso de Lisboa consagrou também, entre outras conclusões, aspetos importantes da ligação de Schengen à zona nórdica de livre circulação, que inclui países não membros da União Europeia, como a Noruega e a Islândia, num período que era ainda distante do que viria a ser o grande alargamento da UE - que acabou por acarretar novas questões para o acordo. E fomos também nós quem lançou as bases para o lançamento do importante sistema de informações pessoais, sem o qual Schengen não poderia funcionar. Curiosamente, anos mais tarde, em 2007, voltaria a ser Portugal a estar no centro da melhoria desse mesmo sistema, durante a presidência portuguesa da UE, em 2007.

Hoje, o funcionamento de Schengen, um acordo agora plenamente integrado na UE (coisa que não era em 1997), é objeto de algumas fortes críticas, sob pressão dos novos problemas criados pelos fluxos migratórios externos e pela emergência de dificuldades sentidas em alguns países, onde mobiliza as agendas políticas internas, em temáticas ligadas à imigração e à criminalidade. Algumas salvaguardas, cumulativas às que já existem, podem, assim, vir a ser necessárias, numa eventual revisão do acordo. Tenho esperança, contudo, que elas não venham a colocar em causa o essencial do sistema. Porque Schengen, na sua essência, constitui uma das faces mais significativas da integração europeia.

quarta-feira, abril 20, 2011

Michel Barnier

No âmbito de um excecional conjunto de palestras sobre a Europa que o Centro Cultural Gulbenkian, em Paris, tem vindo a levar a cabo, uma sala cheia ouviu, na segunda-feira, o comissário europeu Michel Barnier falar do projeto europeu, na ótica das suas responsabilidades no quadro da regulação do Mercado Interno.

Barnier é uma figura com um interessante percurso governativo - em França, foi ministro adjunto dos Assuntos Europeus, da Agricultura e dos Negócios Estrangeiros. Tem uma grande experiência europeia, como deputado e comissário com diversas responsabilidades.

Na ocasião, entendi dever prestar o meu testemunho sobre um homem de quem sou amigo há mais de 15 anos, um europeu que acredita na Europa e que sempre teve, para com Portugal, uma atitude de grande simpatia e disponibilidade. Passámos centenas (não é exagero!) de horas a negociar os tratados de Amesterdão e de Nice, cruzámo-nos nas discussões do acordo de Schengen e muita coisa tratámos no âmbito da política regional europeia. Estive em Paris, por mais de uma vez, a seu convite, recebi-o em Portugal, em várias ocasiões, visitei-o em Bruxelas outras tantas. Michel Barnier é um homem de convicções, que joga com as cartas em cima da mesa, o que não é vulgar, nas lides bruxelenses. Por isso, como elogio, qualifiquei-o mesmo como uma "exceção europeia".

domingo, março 27, 2011

Mudar a hora

No final dos anos 90, eu vinha do norte de Portugal para Lisboa quando, num noticiário radiofónico, ouvi um "especialista" em assuntos europeus "catastrofar" sobre as supostas consequências de Portugal ter, nesse ano, decidido adotar um calendário diferente do de outros países europeus, para a mudança da sua hora legal. Para o "sábio" de extração universitária, consultado pelo telefone, a suposta (porque era apenas suposta) violação da diretiva comunitária iria acarretar consequências da maior gravidade para o futuro de Portugal na Europa, podendo mesmo vir a refletir-se no corte de "fundos comunitários". Com esta apelativa menção, estava feito o "sound bite": o jornalista mudou logo a peça nos noticiários seguintes, que passaram a abrir com "Portugal pode vir a ter menos fundos europeus, por erro do governo".

Como eu era o membro do governo responsável pelo setor, parei numa área de serviço e telefonei para a rádio, pedindo para dar a minha versão dos factos, que, aliás, era muito simples. Assim foi feito, pelo que a abertura da peça mudou para: "Governo e especialistas estão em desacordo sobre a aplicação da diretiva sobre a mudança da hora". Nada como uma boa polémica! Os "especialistas" continuavam a ser só um, mas agora já havia em cena uma entidade da qual, à partida, sempre se desconfia: o governo! Até que, farto de ouvir os dislates do "especialista", acabou por ir à antena o Francisco Saarsfield Cabral, com a autoridade jornalística de quem conhece bem estes assuntos, e lá pôs um ponto final no debate. Quando eu estava a chegar a Lisboa, já os noticiários tinham feito desaparecer o "escândalo" da hora europeia e davam relevo às filas da acesso a Lisboa, que começavam na 2ª ponte do Feijó (ainda não tínhamos inaugurado a ponte Vasco da Gama) e que já estavam a fazer perder tempo aos lisboetas. Lá se ia, assim, mais uma hora...

Recordo-me que o tema da hora portuguesa, e do seu alinhamento ou não com a hora do resto da Europa ocidental, tinha sido objeto de uma animada discussão em conselho de Ministros, em 1996, com a expressão de alguma divisão de opiniões. Esta é uma questão que tem diversas vertentes, económicas e sociais, as primeiras ligadas aos consumos de energia e à compatibilidade de funcionamento internacional de serviços, as segundas ligadas ao ciclo diário de luz solar e a respetiva compatibilidade com os ritmos biológicos das populações, com os horários de entrada das crianças nas escolas, com as consequências de tráfego com pouca luz, etc. Este não era, nem é ainda hoje, um tema consensual.

Mas sobre isto e outras curiosidades desse tema fascinante que é o tempo, aconselho que consultem o magnífico (e belo) blogue Estação Cronográfica, de Fernando Correia de Oliveira.

sábado, dezembro 11, 2010

Schussel


Ontem à noite, no hall da residência do embaixador austríaco em Paris, dei de frente com o antigo primeiro-ministro desse país, Wolfgang Schussel. Há mais de uma década que nos não víamos. Conversámos, embora de forma breve – eu estava quase de saída, ele ia a entrar -, sobre coisas comuns de “maratonas” europeias em que havíamos participado, por mais de cinco anos.

Wolfgand Schussel é um homem cordial e agradável, sendo embora um negociador firme e determinado.  Uma noite, durante a presidência austríaca da União, era ele ministro dos Negócios Estrangeiros, foi-me difícil preservar interesses portugueses num acordo europeu com a Suíça, que a Áustria teimava em querer fechar, um pouco à nossa custa. Usava então, por regra, um vistoso “papillon”, adereço que largou, vá-se lá saber porquê, quando assumiu a chefia do governo austríaco. E é a propósito dessa ascensão que vou lembrar uma pequena, mas julgo que divertida, história, se bem que ligada a um tempo bastante complexo.

No início do ano de 2000, e após umas eleições legislativas na Áustria, Schussel foi indigitado para formar governo. Decidiu então coligar-se com um partido tido como de extrema-direita, o FPO, dirigido por Jorg Heider. Essa decisão provocou uma celeuma por toda a Europa comunitária, porque, para muitos, funcionava como um perigoso precedente, ao colocar um grupo extremista à mesa democrática da União Europeia. Recordo que esse “branqueamento” preocupava, em particular, os dirigentes franceses e belgas, que viam nisso uma caução à possível subida interna, respetivamente, do Front National e do Vlaams Blok. Mal sabíamos nós, à época, o que estava aí para vir, nos anos seguintes, em matéria de radicalismo conservador em alguns governos europeus…

Portugal tinha acabado de assumir a presidência da União Europeia e, quase imediatamente, fomos chamados a titular a pressão sobre a Áustria, em nome dos restantes “catorze” países, os quais, com “nuances” entre si, não se reviam na opção austríaca. A coligação acabou por concretizar-se, mas o governo de Viena não deixou de ser mantido sob forte pressão dos seus pares. Um dia se contará, com mais pormenor, o que foi esse complexo período e o modo como ele acabou por condicionar todo o arranque da nossa presidência.

A história que agora aqui anoto passa-se em Paris, no palácio do Eliseu, no gabinete do presidente Jacques Chirac, já em Março de 2000, quando a nossa presidência estava a finalizar os preparativos para o Conselho Europeu de Lisboa.

(Por uma mera curiosidade, e para mostrar o que pode ser a “deliciosa” vida negocial europeia, gostava de registar que essa escala em Paris fez parte do seguinte percurso de três dias: na véspera, eu tinha saído de manhã cedo de Dublin, para juntar-me ao nosso primeiro-ministro, António Guterres, na Haia, para uma reunião, à tarde, com o seu homólogo holandês, Wim Kok. Daí, saímos de carro para Bruxelas, para um jantar de trabalho com o primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt. Ainda nessa noite, fomos, de Falcon, dormir a Paris. De manhã, acompanhei António Guterres a um encontro com o presidente Jacques Chirac, onde se passa a cena adiante relatada, e tivemos um almoço oferecido pelo primeiro-ministro Lionel Jospin. A “coabitação” obrigava a esse duplo encontro em França. Depois do repasto de trabalho, zarpámos para Roma, onde reunimos, durante cerca de uma hora, com o chefe do governo, Máximo d’Alema. Logo de seguida, partimos para Madrid, tendo um jantar na Moncloa, com o presidente do governo espanhol, José Maria Aznar. Chegámos a Lisboa, no estado físico que imaginam, cerca da uma hora da manhã. António Guterres, que tem uma imensa resistência, estava “desfeito”, o que não impediu que tivéssemos revisto cuidadosamente, durante os voos, com Maria João Rodrigues e outros acompanhantes, o avanço negocial produzido por cada contacto. À chegada do Falcon ao aeroporto de Figo Maduro, eu disse a Guterres que ainda ia “beber um copo” ao bar “Procópio”: “Você é doido! Não está cansado?”, atirou-me, surpreendido. Respondi-lhe: “Claro que estou, por isso é que preciso de descontrair um pouco…”. E lá fui passar uns minutos pela minha vetusta tertúlia lisboeta.)

Jacques Chirac havia sido dos mais acérrimos defensores do regime de retaliações contra o novo governo austríaco. Desde o fim de Janeiro de 2000, o presidente francês por várias vezes interpelara telefonicamente António Guterres, incentivando-o a radicalizar a atitude dos “quatorze” contra a solução governativa engendrada em Viena. Por isso, apelava a uma grande pressão sobre os austríacos e queria que ela se projetasse em todos os atos públicos em que eles estivessem presentes.

Não nos pareceu, por isso, estranho que, naquela manhã de Março de 2000, nos cadeirões dourados que revestiam a sua sala de visitas do Eliseu, Chirac quisesse saber pormenores do primeiro-ministro português quanto ao modo como este iria gerir a “coreografia” do próximo Conselho Europeu de Lisboa, em especial a inevitável presença do chanceler austríaco Wolfgang Schussel no evento.


António Guterres não desejava, manifestamente, entrar em pormenores, contando, para isso, com a consabida capacidade portuguesa de improviso para salvar as aparências e o acto solene correspondente. Mas Chirac insistia: “António (soava: Antòniô), tu vas pas nous créer l’embarras de nous trouver sur la même photo avec Schussel !?”, como se o primeiro-ministro austríaco não fosse, desde há anos, um dos seus mais antigos companheiros de imagem em todas as cimeiras europeias. Guterres teimava, inteligentemente, em mudar de conversa e derivava para as virtualidades da Estratégia de Lisboa, que pretendíamos ver aprovada no Conselho Europeu. Mas Jacques Chirac teimava e acabou por concluir que, desta vez, não queria a tradicional “foto de família”, que recorda este tipo de reuniões.

Foi então que, a contraciclo com a obstinação presidencial, uma voz surgiu: “Monsieur le Président, il y a une solution très facile: on le met dérrière vous au moment de la photo. Comme ça, il vas sûrement pas aparaître dans l’image”, sugerindo implicitamente a manifesta diferença de altura física entre Chirac e Schussel.

A frase era de um assessor do primeiro-ministro português. Por um momento, a sala bloqueou. Chirac, cara fechada, voltou-se para a zona de onde o comentário surgira e inquiriu, com o olhar, quanto à identidade do respetivo autor. Recordo-me que, nesse curto segundo, olhei para António Guterres, um tanto à procura implícita de instruções sobre como reagir. O primeiro-ministro português deu então uma gargalhada forte e Chirac afivelou um condescendente sorriso, acabando por legitimar a abafada vontade da onda coletiva de riso que se seguiu. O assessor português havia descoberto a fórmula mágica, se não para nos resolver definitivamente o problema, pelo menos para nos vermos livres dele para o resto da reunião com Jacques Chirac.

Para a pequena história, diga-se que as coisas acabariam por correr em Lisboa sem quaisquer sobressaltos, com Jacques Chirac e Wolfgang Schussel a surgirem na mesma fotografia, através de um hábil “truque”, bem lusitano, que consistiu em incluir o presidente mexicano, Ernesto Zedillo, convidado para a abertura da cimeira, a quem Jacques Chirac não faria a "desfeita" da sua ausência. Daí não veio qualquer mal ao mundo... e nem foi necessário aproveitar a sugestão hábil do assessor português.

sábado, outubro 23, 2010

Moratinos

Estávamos num jantar de trabalho, no Luxemburgo, no fim do primeiro dia de um Conselho de ministros Assuntos Gerais da União Europeia, em 1996.

Abel Matutes, ministro espanhol de "Exteriores", revelou-me que a Espanha tinha um candidato para o importante lugar que o Conselho Europeu iria criar, dentro de dois dias, de enviado especial da UE para o Médio Oriente. Tratava-se de garantir à Europa uma maior visibilidade política no processo de paz, à altura do apoio que a ele já prestava no domínio económico. Matutes hesitava, contudo, em avançar, desde já, com o seu nome, porque tinha indicações de que os britânicos se lhe oporiam, pelo interesse que se dizia poderem ter no cargo. Porém, não tendo aparecido outros candidatos, a imediata colocação em liça de um nome colocaria a Espanha na dianteira, com todos os eventuais futuros nomes já a surgir como seus "challengers". Estas eram as razões que fundamentavam a hesitação.

Matutes explicou-me também que a figura espanhola pensada para o cargo era o seu recém-nomeado embaixador em Tel-Aviv, Miguel Ángel Moratinos. Perguntou-me se acaso eu poderia vir a obter o apoio de Lisboa para o candidato espanhol. Expliquei-lhe que não precisava de consultar Lisboa e ele que podia contar, a 100% e desde logo, com o pleno apoio do governo português. (Esta é, na prática, uma regra não escrita nas relações luso-espanholas contemporâneas: apoiamos mutuamente os nossos candidatos, a menos que tenhamos interesses próprios a salvaguardar ou compromissos com terceiros a respeitar).

Animado com a minha reação, e após discretas aproximações positivas a mais dois colegas, Matutes acabou por lançar para a mesa a proposta do nome de Moratinos. Como era de esperar, o britânico David Davies, "minister for Europe", pediu mais tempo para refletir. Para grande satisfação de Matutes, fui o primeiro a "sair à carga", argumentando que o desenvolvimento rápido da situação na região impunha que a Europa mostrasse, de imediato, uma "cara" no processo de paz que tomava então formas crescentemente positivas e que Portugal propunha formalmente que, daquele jantar, saísse já uma aprovação "de princípio" do nome espanhol (que elogiei sem sequer conhecer...). Por uma daquelas dinâmicas que, às vezes, ocorre neste tipo de encontros, e um tanto pelo efeito surpresa provocado pela proposta de Matutes, acabou por gerar-se um sentimento alargado de apoio ao candidato espanhol. O nome de Moratinos foi anunciado formalmente, logo nessa noite, como a proposta unânime dos chefes da diplomacia ao Conselho Europeu (isto é, aos primeiros-ministros). David Davies, à saída do jantar, estava agastado comigo e com a "pressão ibérica" que eu tinha ajudado a transformar em decisão...

Miguel Ángel ("Curro", para os amigos) Moratinos permaneceu no cargo de enviado especial da UE para o Médio Oriente de 1996 a 2003, tendo sempre mantido conosco um excelente relacionamento, nomeadamente durante a nossa presidência da UE, em 2000. Com um trato pessoal de grande afabilidade, que esconde uma forte determinação, Moratinos ajudou a credibilizar a voz europeia num processo onde, por uma culpa que não é sua, a Europa tem sempre e apenas o "óscar" para o "melhor ator secundário".

(Para a "petite histoire", posso revelar que, num jantar idêntico ao de 1996, que teve lugar na Grécia em Junho de 2003, os chefes da diplomacia europeia abordaram a questão da substituição de Moratinos, o qual pretendia abandonar o cargo de representante especial da UE para o Médio Oriente. Um único nome foi então discutido e a aprovação dos ministros em torno dele ficou praticamente garantida. O nome era... o meu! Porém, o governo português de então não havia tido nem o cuidado nem a elegância de me consultar previamente, tendo optado por "testar" a aceitabilidade do meu nome sem querer saber da minha eventual disponibilidade, contando que eu aceitaria o facto consumado. Por essa e por outras razões, recusei a possibilidade de indigitação. O Conselho Europeu ficou então sem um candidato que nunca o fora e Moratinos acabou, muito contra a sua vontade, por ter de prolongar-se por mais alguns meses nas funções. Esta historieta surgiu em vária imprensa da época, como, por exemplo, aqui. Na altura, sobre o assunto, escrevi isto.)

Moratinos seria chamado, anos mais tarde, a dirigir a diplomacia do seu país. O seu relacionamento com Portugal manteve-se excelente. Saiu anteontem do governo espanhol, numa remodelação surpresa efetuada pelo presidente Zapatero. 

A diplomacia espanhola e a diplomacia portuguesa têm, nos dias que correm,  fortes pontos de contacto e de convergência. Isso deve-se muito a homens como "Curro" Moratinos.

sábado, setembro 18, 2010

"To go native"

Uma das fraquezas da vida diplomática é a possibilidade de alguém se deixar seduzir de tal modo pelo país ou pelo governo junto do qual atua que passa, de forma mais um menos acrítica, a tomar como suas as respetivas posições, muitas vezes em contraponto às próprias orientações do Estado que representa. 

"To go native" (ou, em tradução livre, ficar igual aos locais) é uma forma de mimetismo diplomático que pode arruinar a função e tornar irrelevante, quando não contraproducente, a ação do diplomata. Esta atitude pode comparar-se a uma outra, de sinal contrário, igualmente nefasta: a rejeição e diabolização das instituições e das figuras do país onde se atua, conduzindo a uma sistemática crítica negativa das suas políticas e tomadas de posição.

Conheço muitos casos de diplomatas que "went native", subscrevendo, com regular entusiasmo, tudo quanto emane do governo junto do qual estão a atuar, relevando a sabedoria das suas políticas, a argúcia dos seus dirigentes e a sistemática razão que lhes assiste. A maioria das vezes, isso não tem a menor das importâncias, para além do facto de desvalorizar o trabalho de informação que deve ser efetuado pelo posto. 

Um problema surge, porém, se e quando há algum conflito de interesses entre o governo que esse diplomata representa e o Estado junto do qual está acreditado. Por real convicção ou por tropismo comodista, já vi casos de colegas apostados em tentar que as nossas autoridades mudem de posição, que Lisboa siga no sentido dos interesses... dos outros. Às vezes, o argumentário acaba por ser tão criativo que não pode deixar de ter-se alguma admiração profissional por quem, do outro lado, os conseguiu convencer...

Que fique bem claro que não estou aqui a falar de "traição" ou sequer de deslealdade, coisa com que, felizmente, nunca na minha vida profissional deparei em nenhum colega - o que, aliás, seria muito estranho, num corpo diplomático, como o português, onde o patriotismo é uma marca bem reconhecida. Trata-se apenas da emergência sincera de uma convicção de que a posição do nosso país está errada e de que certa é a daquele em cuja capital vive. Ora a vida diplomática é o contrário disso: é a necessidade de fazermos passar mensagens favoráveis aos interesses que as autoridades do nosso país entendem dever promover como sendo os nossos, mesmo que não tenham "pitada" de razão. Como dizem os americanos - e todos os diplomatas devem ter como lema -, "my country, right or wrong".

Muitas histórias poderia contar para ilustrar este tipo de atitude, mas, a este propósito e num sentido algo diverso, vem-me à memória a relutância que um dia notei, de um representante português junto de uma organização internacional, em obstaculizar a entrada da Indonésia num determinado comité. Tratava-se de uma instância onde a unanimidade era requerida e, por essa razão, Portugal poderia aí objetivar a sua política de então, que era criar dificuldades ao país cujo isolamento tentávamos garantir, como indireta pressão para contrariar a sua atitude no caso timorense. O argumentário técnico para justificar a nossa rejeição à pretensão de Jacarta era nulo, pelo que se imagina o embaraço do diplomata português junto dos seus colegas, ao ser-lhe pedido para explicar o inexplicável. Mas ele era pago para isso...

Depois de ter suscitado por escrito, ou em contacto com os serviços do MNE, todas as sua possíveis objeções às nossas instruções, o embaixador pediu para me falar - estava eu então em funções de natureza política. Pelo telefone, explicou-me a sua dificuldade: "Eu não tenho argumentos para me opor à admissão da Indonésia. Os meus colegas acham ridícula a minha posição e isto é quase um vexame!". Reparei que o homem estava, de facto, numa posição difícil. Perguntei-lhe: "Mas você acha que nós não temos razão?". Ao que me respondeu, um tanto aflito: "Bom, nós temos as nossas razões, só que eu as não posso dizer abertamente, porque eles nunca as aceitariam".

Nesse passo da conversa, não vi outra solução: "Meu caro, nesse caso, 'go native' e diga aos seus colegas que, por si, até concordaria com eles e deixaria entrar a Indonésia. Mas que, 'lá de Lisboa', as ordens são imperativas e que você, como profissional que é, as não pode contrariar. Eles perceberão". E ele assim fez. E julgo que os colegas perceberam.

sexta-feira, agosto 20, 2010

Ciganos

Na segunda metade dos anos 90, Pedro Bacelar de Vasconcelos era Governador Civil de Braga e, nessa qualidade, protagonizou a defesa de uma comunidade cigana que estava a ser diabolizada, na sua totalidade, por virtude de crimes cometidos por alguns dos seus integrantes. Tratou-se de um caso muito mediático em que a atuação de Bacelar de Vasconcelos foi fortemente criticada por alguns setores, não tendo então sido apoiado pelos dirigentes locais do seu próprio partido.

Uns tempos mais tarde, Portugal teve de designar um representante para o Observatório Europeu para o Racismo e Xenofobia, com sede em Viena. Não hesitei, contra muitos ventos e claramente contra todas as marés prevalecentes, em designar Pedro Bacelar de Vasconcelos para esse lugar - onde, como era de esperar, fez um excelente trabalho.

Ele ajudar-me-ia, mais tarde, durante a presidência portuguesa das instituições europeias, em 2000, a dar corpo à ideia de organizar em Lisboa, em articulação com o comissário europeu Gunther Werhaugen, uma jornada de reflexão sobre a condição das populações ciganas - uma iniciativa até então inédita nos programas das presidências comunitárias, no quadro do debate sobre os problemas das minorias no futuro alargamento.

Lembrei-me ontem disto ao ver notícias sobre a situação dos ciganos romenos em França. Este é um tema complexo. As culpas nunca estão só de um lado e não vale a pena esconder que há questões de segurança pública que, por vezes, têm de ser ponderadas. Mas vale a pena atentar no facto de que, como dizia ontem, no "Diário de Notícias", Pedro Bacelar de Vasconcelos, "houve retrocesso na opinião pública em relação aos ciganos". Em Portugal e na Europa em geral. Os ciganos sofrem, como outras minorias, de uma subida exponencial da intolerância no continente europeu e da busca, por parte dos seus governos, de alguns bodes espiatórios para procurarem mostrar que não estão indiferentes às legítimas inquietações sociais das suas populações.

É triste constatar que esta Europa que temos, tão atenta ao financiamento dos aspetos materiais da sua modernidade, se revela incapaz de pôr em prática algumas políticas públicas eficazes, especificamente dedicadas à promoção social das suas minorias. É que, no fundo, e salvo alguns preconceitos que não nos devem merecer o menor dos respeitos, tudo isto se reconduz a meras questões de desenvolvimento.

segunda-feira, julho 26, 2010

Chamar um embaixador

Há dias, a nossa comunicação social comentou bastante o facto do embaixador de Israel em Portugal ter sido chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, por virtude de declarações públicas que havia proferido e que Lisboa considerou menos consentâneas com o seu estatuto.

"Chamar um embaixador" estrangeiro é um gesto excecional, que, na maioria dos casos, se pratica e anuncia publicamente quando se pretende manifestar o desagrado do governo face ao Estado que esse embaixador representa ou, o que também acontece, perante o comportamento, tido por inadequado, de um dos seus agentes diplomáticos - como foi agora o caso. Mas outras situações podem justificar o ato.

(Como curiosidade, vale a pena deixar aqui registada aquela que é uma prática tradicional das diplomacias: quando há uma coisa desagradável a dizer a um governo estrangeiro, utiliza-se para tal o embaixador desse país na nossa capital; quando a mensagem é agradável, usa-se o nosso embaixador acreditado nesse país. A lógica, óbvia, é preservar mais o nosso diplomata...)

Há uns anos, vi-me obrigado a ser protagonista de um caso similar.

O representante diplomático em Lisboa de um país candidato à entrada na União Europeia, no decurso de um jantar numa outra embaixada, perante muitos convidados portugueses e estrangeiros, afirmou, alto e bom som, que o governo português de então (ao qual eu pertencia) era de uma "refinada hipocrisia". Segundo o diplomata, Portugal andava a espalhar que era favorável ao alargamento da União quando, na realidade, toda a gente sabia que tinha imensas reservas a isso e que tudo iria fazer para boicotar a entrada de novos países na União.

Esta acusação era perfeitamente infundada, como o futuro veio a provar à saciedade. Portugal terá sido, dentre os países comunitários, um dos que mais favoreceu o alargamento, por entendê-lo como um importante passo estratégico para a ideia de Europa que cultivava. Só que, pelos vistos!, isso não era ainda percebido por alguns.

O meu chefe de gabinete e uma alta responsável do MNE estavam presentes nesse jantar e reagiram de imediato, defrontando-se então com a reiteração obstinada do embaixador, que insistiu mesmo noutros comentários negativos sobre o nosso suposto comportamento, tudo isto dito perante larga audiência. Algum estímulo etílico poderia ter contribuído para a prolixidade crítica do embaixador, mas a inimputabilidade alcoólica não faz parte dos privilégios e imunidades dos diplomatas.

Mandei chamar o diplomata, com caráter de urgência, ao meu gabinete, sem o informar do tema. Recebi-o, acompanhado do director-geral político-económico do MNE. Disse-lhe ter sabido das suas afirmações (cujo teor exato eu tinha entretanto confirmado), as quais não pretendia comentar nem era minha intenção discutir. Queria que soubesse que considerávamos que ele estava no pleníssimo direito de ter, sobre o governo português e as suas atitudes, todas as opiniões que muito bem entendesse. Da mesma forma, o governo português sentia-se no direito de, em face dessas declarações, que entendia da maior gravidade, delas vir retirar todas as consequências que considerava óbvias para as relações futuras entre Portugal e o seu país. 

Dito isto, levantei-me e, com um "Have a good day!", dirigi-me à porta, onde fiquei à espera do embaixador, de cara fechada. O nosso homem ainda ficou sentado por um segundo, depois levantou-se, gelado e branco, tartamudeando, nos breves passos até à saída, algumas desculpas, onde figurava a ausência de quaisquer intenções ofensivas no que dissera. Estendi-lhe a mão, sem mais uma palavra, e fi-lo sair do gabinete. O diretor-geral, que me acompanhava e a quem eu não tinha prevenido do "modus operandi" que iria seguir, estava siderado e, logo que ficámos sós, soltou uma impublicável interjeição, surpreendido com o que testemunhara.

Não me arrependi. Para a história: as relações entre Portugal e esse excelente país não foram, claro!, afetadas. Fui, entretanto, sabendo que o pobre do embaixador passou a desfazer-se em elogios a Portugal e à política do nosso governo, em tudo quanto eram ocasiões públicas e perante interlocutores ele sabia que poderiam vir a informar-nos.

Respeitar o governo perante o qual se está acreditado, comportar-se com contenção na apreciação pública das suas políticas ou das suas autoridades e, em especial, esforçar-se por interpretar corretamente as intenções do governo local é uma regra de ouro para qualquer profissional da diplomacia. Nas comunicações internas que enviamos às autoridades que representamos temos o direito e a obrigação de dizer tudo o que pensamos, por mais cáustico que isso possa ser; nas nossas tomadas de posição públicas, mesmo em ocasiões sociais, temos que ter toda a parcimónia e consideração devidos ao país que nos acolhe. Quem assim não proceder, e em função da gravidade do ato praticado, deve saber que as regras são claras: ou é subtilmente "isolado" e desprezado pelas autoridades do país onde está acreditado, ficando com a sua atividade limitada, ou recebe uma "rabecada" formal, mais ou menos publicitada, ou, no limite, é considerado "persona non grata" e terá de abandonar o posto. A escolha é sempre do diplomata.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Klaus

O presidente da República Checa, Vaclav Klaus, um eurocéptico que mantém o Tratado de Lisboa como refém, é uma personalidade polémica, com que muitos não concordam, mas cuja coragem e frontalidade ninguém pode contestar. Agora, num gesto que está a embaraçar de novo os círculos europeus, quer colocar uma adenda ao Tratado, como condição imperativa para o assinar. Posso estar enganado, mas acho que acabará por fazê-lo.

Klaus é uma figura histórica importante do período subsequente à queda do muro de Berlim. Com o então líder eslovaco, Vladimir Meciar, é considerado um dos "culpados" pela divisão da antiga Checoslováquia, uma decisão à época muito discutida, mas que hoje parece já consensual.

A acompanhar o primeiro-ministro António Guterres, estive no seu gabinete de presidente do parlamento checo, em 1999. As suas reticências sobre o curso do processo europeu eram muito evidentes e, já à época, abertamente contrastantes com as ideias do então presidente da República, Vaclav Havel, com quem também tínhamos falado. Desde sempre, a República Checa viveu nessa polarização face ao processo integrador, muito por motivo da posição crítica de Vaclav Klaus.

Klaus veio a Lisboa, algures no primeiro semestre de 2000, a título privado, no âmbito de um "think tank" conservador que dá pelo nome de "Le Cercle", que tem como representante em Portugal - o que não será uma surpresa para ninguém! - o meu amigo Jaime Nogueira Pinto. Um jantar do grupo no "Ritz", que reunia umas centenas de membros, oriundos de vários países, tinha como convidado Jaime Gama, ao tempo ministro dos Negócios Estrangeiros, que nele deveria falar sobre a presidência portuguesa da União Europeia, então em curso. À última hora, fui escalado para substituir o ministro na tarefa e, confesso, estava longe de presumir no que me ia meter.

O tempo político estava então dominado pela chamada "questão austríaca", uma espécie de quarentena que os restantes 14 membros da União tinham decidido impor a Viena, como "punição" pela entrada no respectivo governo de um partido de extrema-direita, acusado de propósitos racistas e de simpatias pelo passado nazi. O governo português titulava essa posição de rejeição por parte dos "quatorze" e, por essa razão, era o alvo favorito das fortes críticas que se faziam sentir em meios conservadores europeus. Noutra ocasião, já aqui referi o que ouvi de Jean-Marie Le Pen, no Parlamento Europeu, por virtude dessa mesma atitude.

Apresentado no final do jantar pelo antigo ministro das Finanças britânico, Norman Lamont, a minha prestação correu com normalidade, até que chegou o tempo das perguntas. Sem surpresas, elas foram quase exclusivamente centradas no tema austríaco. E foi Vaclav Klaus quem tomou a liderança do ataque à posição portuguesa e dos parceiros europeus que nós representávamos. Durante bastante tempo, envolvemo-nos num aceso debate de razões cruzadas, sob o olhar deliciado, mas nada simpático para os meus argumentos, de um auditório que oscilava entre um forte conservadorismo e um reaccionarismo quase primário. Vaclav Klaus acabou por ser a "estrela" da noite, acolitado por outras figuras que aproveitaram para, por meu intermédio, "malhar" na Europa que se mostrava crítica da Áustria.

Quando a sessão terminou, confesso que fiquei aliviado. Mas ainda não perdoei totalmente ao Jaime Gama e ao Jaime Nogueira Pinto o "assado" em que me meteram...

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...