segunda-feira, julho 26, 2010

Chamar um embaixador

Há dias, a nossa comunicação social comentou bastante o facto do embaixador de Israel em Portugal ter sido chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, por virtude de declarações públicas que havia proferido e que Lisboa considerou menos consentâneas com o seu estatuto.

"Chamar um embaixador" estrangeiro é um gesto excecional, que, na maioria dos casos, se pratica e anuncia publicamente quando se pretende manifestar o desagrado do governo face ao Estado que esse embaixador representa ou, o que também acontece, perante o comportamento, tido por inadequado, de um dos seus agentes diplomáticos - como foi agora o caso. Mas outras situações podem justificar o ato.

(Como curiosidade, vale a pena deixar aqui registada aquela que é uma prática tradicional das diplomacias: quando há uma coisa desagradável a dizer a um governo estrangeiro, utiliza-se para tal o embaixador desse país na nossa capital; quando a mensagem é agradável, usa-se o nosso embaixador acreditado nesse país. A lógica, óbvia, é preservar mais o nosso diplomata...)

Há uns anos, vi-me obrigado a ser protagonista de um caso similar.

O representante diplomático em Lisboa de um país candidato à entrada na União Europeia, no decurso de um jantar numa outra embaixada, perante muitos convidados portugueses e estrangeiros, afirmou, alto e bom som, que o governo português de então (ao qual eu pertencia) era de uma "refinada hipocrisia". Segundo o diplomata, Portugal andava a espalhar que era favorável ao alargamento da União quando, na realidade, toda a gente sabia que tinha imensas reservas a isso e que tudo iria fazer para boicotar a entrada de novos países na União.

Esta acusação era perfeitamente infundada, como o futuro veio a provar à saciedade. Portugal terá sido, dentre os países comunitários, um dos que mais favoreceu o alargamento, por entendê-lo como um importante passo estratégico para a ideia de Europa que cultivava. Só que, pelos vistos!, isso não era ainda percebido por alguns.

O meu chefe de gabinete e uma alta responsável do MNE estavam presentes nesse jantar e reagiram de imediato, defrontando-se então com a reiteração obstinada do embaixador, que insistiu mesmo noutros comentários negativos sobre o nosso suposto comportamento, tudo isto dito perante larga audiência. Algum estímulo etílico poderia ter contribuído para a prolixidade crítica do embaixador, mas a inimputabilidade alcoólica não faz parte dos privilégios e imunidades dos diplomatas.

Mandei chamar o diplomata, com caráter de urgência, ao meu gabinete, sem o informar do tema. Recebi-o, acompanhado do director-geral político-económico do MNE. Disse-lhe ter sabido das suas afirmações (cujo teor exato eu tinha entretanto confirmado), as quais não pretendia comentar nem era minha intenção discutir. Queria que soubesse que considerávamos que ele estava no pleníssimo direito de ter, sobre o governo português e as suas atitudes, todas as opiniões que muito bem entendesse. Da mesma forma, o governo português sentia-se no direito de, em face dessas declarações, que entendia da maior gravidade, delas vir retirar todas as consequências que considerava óbvias para as relações futuras entre Portugal e o seu país. 

Dito isto, levantei-me e, com um "Have a good day!", dirigi-me à porta, onde fiquei à espera do embaixador, de cara fechada. O nosso homem ainda ficou sentado por um segundo, depois levantou-se, gelado e branco, tartamudeando, nos breves passos até à saída, algumas desculpas, onde figurava a ausência de quaisquer intenções ofensivas no que dissera. Estendi-lhe a mão, sem mais uma palavra, e fi-lo sair do gabinete. O diretor-geral, que me acompanhava e a quem eu não tinha prevenido do "modus operandi" que iria seguir, estava siderado e, logo que ficámos sós, soltou uma impublicável interjeição, surpreendido com o que testemunhara.

Não me arrependi. Para a história: as relações entre Portugal e esse excelente país não foram, claro!, afetadas. Fui, entretanto, sabendo que o pobre do embaixador passou a desfazer-se em elogios a Portugal e à política do nosso governo, em tudo quanto eram ocasiões públicas e perante interlocutores ele sabia que poderiam vir a informar-nos.

Respeitar o governo perante o qual se está acreditado, comportar-se com contenção na apreciação pública das suas políticas ou das suas autoridades e, em especial, esforçar-se por interpretar corretamente as intenções do governo local é uma regra de ouro para qualquer profissional da diplomacia. Nas comunicações internas que enviamos às autoridades que representamos temos o direito e a obrigação de dizer tudo o que pensamos, por mais cáustico que isso possa ser; nas nossas tomadas de posição públicas, mesmo em ocasiões sociais, temos que ter toda a parcimónia e consideração devidos ao país que nos acolhe. Quem assim não proceder, e em função da gravidade do ato praticado, deve saber que as regras são claras: ou é subtilmente "isolado" e desprezado pelas autoridades do país onde está acreditado, ficando com a sua atividade limitada, ou recebe uma "rabecada" formal, mais ou menos publicitada, ou, no limite, é considerado "persona non grata" e terá de abandonar o posto. A escolha é sempre do diplomata.

9 comentários:

Anónimo disse...

Este texto deveria ser distribuido por todos os embaixadores portugueses no mundo.Como já se diz nas Necessidades, o "blog do Seixas" devia passar a manual obrigatório.

CSC

Anónimo disse...

Há outra situação, paralela mas oposta: chamar o (seu) Embaixador para consultas.
Aí o MNE faz deslocar a Lisboa o seu Embaixador numa qualquer capital, publicitando o facto; é a forma de mostrar o seu desagrado, firme mas moderado, com o Governo do país em causa.

patricio branco disse...

Esta história mais parece um auto elogio do Embaixador, devido ao tom vitorioso em que está escrito e a se pôr no centro da situação.
Preferia exemplos ilustrativos mais neutros, com terceiros, e de certo há vários na diplomacia portuguesa e de outros países para ilustrar esta prática de chamar embaixadores aos ministérios dos negócios estrangeiros dos paises onde estão acreditados, alguns deles históricos.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Patrício Branco: Eu conto as minhas histórias; cada um que conte as suas. Mas, já agora!, não me parece haver nada de particularmente "vitorioso" naquilo que fiz. A esta distância temporal, e não estando arrependido com o modelo de ação que adotei, não excluo que um outro tipo de intervenção pudesse ter sido seguida. Mas, volto a dizer, não houve nenhuma "vitória".

domingos disse...

É preciso um certo cuidado com essa receita da "chamada" de um embaixador. Para começar há países e países. No caso citado o tal embaixador devia ser tonto, mas muitas vezes eles agem por instruções expressas do seu Governo, seja para criar "capital de queixa" - os diplomatas sabem do que falo - seja para sabotar alguma negociação ou diligência em curso. Outras vezes, e até poderia ser o caso citado, é uma hábil manobra para chegar à fala com alguém altamente colocado. Cada caso é um caso.

patricio branco disse...

Caro Francisco Seixas Costa. Obrigado pelo seu comentário ao meu comentário. Esclareço que não puz nem ponho em dúvida a oportunidade e eficácia da sua actuação em relação ao tal diplomata estrangeiro que não tinha contenção na lingua.
Era outra a perspectiva do meu comentário. De novo, obrigado e a minha estima.

Jose Martins disse...

Senhor Embaixador,
Contar histórias é muito bonito e eu gosto de contar as minhas e as com paladar a diplomacia melhor ainda.
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Como um simples que cheguei a ser na missão e dado por um embaixador: "o senhor aqui é um não existe!"
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Claro que não era mesmo nada, mas um simples dactilógrafo, na altura. Porém atento a tudo que se passava em meu redor, porque depois do embaixador era eu o único elo de ligação a ele.
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Numa altura e porque não o deveria ter feito, facilitou a sua viatura a dois políticos (pouco conhecidos) que lutavam pela independência de um território, para estar presente numa conferência de imprensa, junto ao aeroporto.
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A polícia, local, fisgava os dois há uns cinco dias, não para os prender, mas colocá-los fora do país.
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Eu seguia à frente, do carro do embaixador, no meu velho bate-latas Volvo de 25 anos, para ensinar o local da conferência.
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O certo seria que ao outro dia, aparecia chapada na primeira página do "New York Times" o Mercedes da missão.
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O MNE do país onde estava acreditado o nosso representante, solicitou sua presença para lhe dar a explicação da razão porque tinha facilitado o seu carro, aos indesejáveis políticos.

Fiquei a saber, porque dactilografei o telegrama para as Necessidades onde num parágrafo designava: "Senhor Embaixador não volte a fazer isso porque as relações de quase quinhentos anos entre os dois países poder-se-ão deteriorar".
Saudações de Banguecoque
José Martins

diogo disse...

vai-me desculpar a opinião , mas sendo eu um bronco não posso deixar de comentar .
o sr. criou , com a rabecada , um lambe botas , desejoso não de fazer o seu papel ou dizer umas verdades , mas sim no desejo de manter o empreguito pago a peso de ouro e com regalias do arco da velha .
pena que as pessoas não tenham o direito de dizer umas verdades sem serem postas no seu lugarzinho pelos poderosos ( leia-se dinheiro )

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Diogo: desculpe lá! Equivocou-se. O que ele disse não foram verdades, foram puras mentiras.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...