segunda-feira, junho 21, 2021

Yolanda Brígida

Você era uma criança. Falava à televisão, ao lado dos seus pais, emigrados na Suíça. Perguntaram-lhe o que gostava mais de ver nos noticiários. Com o olhar vivo e inocente, disse: os desastres! Essa sua resposta ficou-me para sempre.

Tempos mais tarde, curso tirado, estagiária da notícia, salário de recibo verde, telefonou-me para Brasília a inquirir do nome de um português envolvido num acidente. Expliquei que a ética da minha profissão não me autorizava a quebrar o sigilo. Não esqueci a sua reação: "A ética?! Deixe-se disso! Vá! Diga-me lá! É que se eu não consigo essa informação, o meu chefe põe-me na rua!"

Um dia, num jornal com mais de cem anos, na "silly season", li uma peça sua sobre um senhor chamado Eça de Queirós. Explicava, pedagógica, que era "um escritor realista português do século XIX", do qual citava obras a esmo. Fui ver: o texto era da Wikipedia. Fazia bem em apoiar-se em fontes prestigiadas, nessa Britannica da geração dos "shots".

Veja-a agora muito por aí, Yolanda Brígida ou Cátia Vanessa ou qualquer outra coisa assim que a rica imaginação dos seus pais tenha gerado. De "corneto" na mão, nos "travellings" na peugada do advogado desconcertante, à coca da casa dos "pulseirados", a perguntar como se sente à mãe que perdeu o filho no mar alto, a entrevistar o primo da vizinha de um tipo que conheceu o criminoso.

Vi um dia a sua glória. Uma baliza tinha caído sobre a cabeça de uma criança. O dia era “seco” em eventos. Os três telejornais abriram com a notícia, era o "seu" desastre. E lá estava você em campo, baliza ao fundo, preparada para a partida. Ao longe, as "repórteres" dos outros canais, seus heterónimos, filmavam-se comicamente entre si, debitando “buchas” para as respetivas câmaras, à espera do requestado edil local, que você entrevistava e que se prestava ao papel de alterne entre pantalhas, a todas anunciando o clássico "rigoroso inquérito". Um "must"!

É que onde eu gosto verdadeiramente de a ver é nos diretos, à porta de um tribunal fechado há horas, na soleira de uma urgência com uma velhinha a revelar o cancelamento da consulta numa greve, no rescaldo de um incêndio a recolher a clássica declaração sobre a "mão criminosa” no sinistro. Adoro as redundâncias em que ecoa, quase palavra por palavra, o que o “pivot” acabou de dizer, não vá alguém ter entrado na sala só nesse instante. Exulto quando se dirige, impante, à vedeta em estúdio, que mal a conhece, com um íntimo: "Daqui é tudo, Judite!'.

Há dias, vi-a numa de excelência. António Costa tinha acabado de falar sobre o seu "sermão aos chineses", que em ano eleitoral substitui o "sermão aos peixes", do outro António, mas Vieira. Ele saía já de cena, tenso, e você, marota, ética Cofina, reguila qb, sem esperar resposta, só para gáudio da malta lá na redação, atirou-lhe à cara: "O país está melhor, António Costa?". Eu, no caso dele, sabia o que lhe tinha atirado à cara, a si.

(Deu-me hoje para lembrar aqui o artigo que publiquei no "Diário Económico" em 5.3.15)

1 comentário:

Joaquim B disse...

Grande texto.

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