sábado, junho 26, 2021

A diplomacia e a defesa da integridade do país

Vale a pena começar o que vos quero dizer dando algumas breves notas relativas ao modo como a nossa estrutura de representação oficial externa foi evoluindo. 

Durante muito tempo, e Portugal não foi exceção àquilo que se passava um pouco por todo o lado, a representação do Estado sediada no exterior era cometida a personalidades da confiança pessoal do titular da soberania. Às vezes, essas figuras eram colocadas numa capital específica, na qual dispunham de alguma eventual influência. Em outras vezes, pela adaptabilidade da suas qualificações ou rede de contactos, entravam em itinerância entre as escassas missões diplomáticas que o país possuía. Nunca parece ter havido, por essa altura, qualquer limite temporal para o exercício dessas funções desses enviados do soberano. 

No início, as elites nacionais relevantes para tal fim eram figuras da aristocracia, com redes de relações, familiares e outras, além de um nível de educação e cosmopolitismo necessário à frequência das cortes estrangeiras. Eram também dessa extração os plenipotenciários que transportavam a palavra do chefe do Estado para as conferências internacionais quando estas ocorriam.

Não sei se há dados que permitam avaliar se esse papel do enviados externos, escolhidos pelo titular da soberania, era pior ou melhor assumido, até porque o único juiz da qualidade dessas escolhas acabava por ser o próprio soberano, na ausência então de um qualquer outro modo de responsabilização pública.

Há também que registar a curiosidade, às vezes pouco conhecida, de, por muitos anos, serem os próprios representantes diplomáticos a suportarem o custeio financeiro das missões, o pagamento ao seu pessoal e as suas despesas correntes de funcionamento. A honra e o prestígio de representar o seu rei e o o seu país seriam, talvez, a necessária retribuição para esses gastos.

É muito interessante notar que, mesmo a partir do momento em que o poder pessoal dos reis, na gestão da coisa pública, se foi atenuando, com o fim do Antigo Regime e pela crescente intervenção da representação democrática na formação e alternância dos governos, o papel do enviado diplomático foi mantido, formalmente, vinculado ao titular da chefia do Estado.

A criação de um corpo profissional, de uma “carreira”, para sustentação funcional da máquina de representação externa do Estado, não significou, durante muito tempo, que a alguma dessas pessoas, desses funcionários, fosse cometida a responsabilidade máxima de titularidade diplomática num determinado posto. Mesmo quando - e lembremo-nos de Eça de Queiroz - começou a haver concursos para a admissão de “bacharéis” para o exercício de funções consulares ou outras, nunca, repito, nunca se colocou a hipótese dessas pessoas poderem vir a exercer o cargo de embaixador. Aos funcionários que eram recrutados para a máquina pública externa competiam funções que eram sempre inferiores às dos titulares diplomáticos de confiança pessoal do chefe de Estado, sempre obrigatoriamente seus superiores. Posso estar enganado, mas creio poder afirmar que, em Portugal, a personalidades oriundas da “carreira” só foram confiadas chefias de missões diplomáticas durante o Estado Novo.

Ainda antes, e com o advento da I República, as figuras da aristocracia que chefiavam embaixadas ou legações foram substituídas por personalidades republicanas, com algum prestígio político ou cultural. Com o rei afastado e os títulos nobiliárquicos abolidos, essa “revolução” teve algo de natural.

Embora a máquina diplomática pudesse já ter alguma profissionalização a níveis abaixo da chefia de missão, acabando isso por representar um laço de continuidade na representação do Estado junto de um determinado país, na prática, por essa época, a embaixada “era” o embaixador. Essa realidade prolongou-se por muitos anos e alguns de nós, que estivemos bastantes anos na carreira, ainda nos lembramos de que alguns postos, sobretudo unidades mais isoladas e menos visíveis, continuavam a ser estruturas quase “unipessoais”.

É também importante notar que as legações e embaixadas, as duas designações de então, eram muito poucas. Com escassas exceções, estavam maioritariamente situadas na Europa, com as mais importantes acreditadas junto das potências relevantes, em que a Santa Sé figurava como tal.

Daí que a cultura diplomática prevalecente também fosse, essencialmente, europeia. Se repararmos bem, se há algo em que o mundo ainda não se “descolonizou” foi na liturgia diplomática, nesses “rituais de entendimento”, como bem os designou o embaixador José Paulouro das Neves , que eram e continuam a ser tributários da tradição diplomática e da prática protocolar criadas na Europa. Esse “esperanto” do relacionamento internacional, de origem europeia, não foi nunca seriamente contestado.

A diplomacia portuguesa, ao longo da sua história, apontou sempre para a necessidade de manter certas embaixadas junto dos “powers that be”, embora as representações consulares, para apoio ao comércio (nesse tempo, a importância do apoio à diáspora estava longe de ser reconhecida como um objetivo), fossem comuns em várias outras paragens. Só com a multiplicação de novos Estados, na segunda metade do século XX, fruto das descolonizações e da afirmação de novas nacionalidades decorrentes da fragmentação de anteriores unidades estatais, foi necessário acorrer a outras geografias para a defesa dos interesses nacionais.

É nesse período que se constata que a algumas personalidades que faziam parte das estruturas diplomáticas permanentes era dada, pela primeira vez, a possibilidade de virem a chefiar missões diplomáticas - de início, naturalmente, as de menor importância. Para as grandes embaixadas e legações, o modelo tradicional de escolha continuava a prevalecer.

Durante muitos anos, aquilo a que agora é vulgar chamar de “embaixadores políticos” foi a regra, os embaixadores “de carreira” eram a exceção. Foi durante o Estado Novo que esta relação começou a inverter-se, em que o poder político percebeu que já estava criada uma estrutura de representação externa do Estado de uma qualidade na qual podia fazer confiança. E, dessa forma, foi-se crescentemente dispensando a busca na sociedade civil, em geral na classe política, de outras personalidades para exercer essas funções.

Com a Revolução de Abril, terá havido, inicialmente, uma tentação de preencher a representação externa do Estado com gente “de confiança” da democracia. Há rumores de que, mesmo para níveis intermédios da carreira, houve quem pensasse fazer entrar figuras políticas, com o argumento de que, por anterior impossibilidade de acesso, a uma certa geração havia sido vedado o acesso à carreira. Por outro lado, vozes havia que entendiam que a diplomacia profissional estava de tal modo conluiada ideologicamente com o regime derrubado que era necessário “saneá-la” radicalmente. Nenhuma dessas ideias prosperou. Os “saneamentos” foram muito escassos, o novo regime rapidamente percebeu que, não obstante grande parte da carreira poder ser então tida como conservadora, ela poderia ser reconvertível para o serviço da democracia. E essa perspetiva não só vingou como se mostrou correta.

Constata-se que, ao longo deste quase meio século de vida em democracia, os diversos poderes políticos escolheram um total de 31 personalidades externas à carreira para a chefia de embaixadas. Com naturalidade, a entrada dessas figuras foi mais intensa nos anos imediatamente posteriores a 1974, passando, a partir de então, a significar uma percentagem cada vez menor no conjunto dos chefes de missão. Neste dia em que lhes falo, apenas uma missão multilateral portuguesa é titulada por alguém que não entrou por concurso para a carreira diplomática. 

Não quero fazer aqui um balanço, que seria algo delicado e polémico, sobre o valor acrescentado que aquele conjunto de figuras trouxe para a ação externa do Estado, bem como para o prestígio do país. Como profissional diplomático, orgulhosamente “de carreira”, nunca tive dificuldade de reconhecer, com a maior franqueza, que houve personalidades recrutadas fora do MNE cuja qualidade acabou por ter consequências muito positivas para o trabalho da nossa diplomacia. Outras, sem deslustrarem, não trouxeram uma contribuição que se possa dizer que não pudesse ser feita pelos profissionais da “casa”. Muito poucas - mesmo muito poucas, felizmente! - se revelaram-se nefastas ou perniciosas para a imagem e serviço do Estado que haviam sido chamadas a servir. Mas assumo a arbitrariedade deste meu juízo global, mesmo sem “naming names”. Um último apontamento sobre este tema: a algumas dessas figuras escolhidas fora da carreira foi, a certa altura, dada a possibilidade de integrarem o serviço diplomático corrente, circulando entre postos, numa total equiparação aos diplomatas “de carreira”.

Gostava de voltar à questão da diplomacia que tínhamos, no final da ditadura. Quando, em 1975, entrei para o serviço diplomático, cerca de um ano decorrido desde a Revolução de Abril, tínhamos acabado de sair de um período extremamente complexo para a vida diplomática portuguesa. Todos sabemos que os tempos das duas guerras mundiais haviam sido muito exigentes para a nossa ação externa. Mas há que convir que, logo após a entrada de Portugal para a ONU, em 1955, o desafio criado pela tentativa de escapar à pressão internacional para forçar a descolonização dos territórios ultramarinos portugueses, num tempo em que as antigas potências coloniais rapidamente desapareciam pelo mundo, criou uma nova e não menos difícil trincheira diplomática. Portugal, um pouco por toda a parte, com apoios declinantes, passou a estar sob uma constante barreira de fogo político, em especial no plano multilateral, mas com incidências, mais ou menos sérias, em algumas dimensões bilaterais. Tudo havia começado com a questão da Índia portuguesa, logo seguida das situações dos domínios portugueses em África, em especial após o início, em 1961, das guerras coloniais.

Nesse muito difícil contexto, e sem trazer para aqui juízos de valor sobre a questão política que servia de pano de fundo, há que reconhecer que a diplomacia portuguesa se portou extraordinariamente bem. A nossa diplomacia fez exatamente aquilo que lhe era destinado fazer, que era levar à prática o mandato que o poder político lhe determinava. Não era à diplomacia que competia questionar a política externa do regime, podendo nós imaginar que, muitas vezes, alguns desses nossos antigos colegas se devam ter interrogado sobre se o que estava a ser feito era aquilo que melhor protegia o que interpretavam como sendo os interesses essenciais do país. Muitos, creio que a maioria, estariam sintonizados ideologicamente com a tarefa diplomática que eram levados a implementar. Outros, em bom número, eram apenas “civil servants” disciplinados. Alguns terão calado as suas dúvidas, porque os tempos políticos não ajudavam ao questionamento das orientações. Uns seriam mais competentes, outros menos. Na globalidade, o trabalho produzido, visto a esta distância, parece ter sido, em termos profissionais, de indiscutível qualidade. Não parece ter sido pela diplomacia que esse Portugal político foi derrotado na sua “guerra colonial”.

Esta dialética entre o exercício da função diplomática e as orientações da política externa leva-me ao ponto a que agora quero chegar: são os diplomatas “produtores” de política externa, nomeadamente num contexto democrático? Podem os profissionais ter como legítimo objetivo influenciar a ação externa do país, embora não tenham atrás de si a legitimidade própria dos atores políticos?

Sempre fui de opinião que os diplomatas não devem considerar-se a si próprios como meros “locutores de continuidade” de uma política externa que lhes é ditada. Entendo que os diplomatas podem e devem aportar, para a reflexão sobre a postura externa do Estado que servem, aquilo que é o fruto da sua experiência, como depositários que são da continuidade de uma cultura de ação política de que são executores, mas também cultores, ao longo dos vários ciclos políticos, na alternância que a democracia permite e promove. Devem, contudo, dar esse contributo dentro das paredes oficiais, cuidando em não serem fautores e potenciadores de divisões públicas.

Estão aqui nesta sala pessoas que representaram o Estado português durante muitos anos. Estou certo que todas elas reconhecem que, ao final de algumas décadas de representação do Estado, todos acabaram por criar uma espécie de feeling sobre o que é o interesse português, independentemente dos vários ciclos de governo.

Ao longo da minha vida de quase quatro décadas ao serviço da diplomacia, fui chefiado por 21 ministros dos Negócios Estrangeiros. Com escassíssimas exceções, nunca senti particular dificuldade em representar a “voz” do Estado, mesmo em ciclos políticos contrastantes. Em algumas circunstâncias, e não foram muitas, discordei da orientação decidida pelo governo de turno, em determinados assuntos. Calei essa discordância, porque entendi não ter o direito de, nesses momentos, tornar pública a minha divergência de opinião. Se então me apetecesse contestar as determinações oficiais, deveria ter saído da carreira e vocalizar a minha posição no exterior. Como essas determinações não foram ao ponto de ofender, no limite, a minha consciência e aquilo que era a minha leitura do interesse português, embora as entendesse flagrantemente erradas, calei-me. Uma delas, como adivinharão, foi a organização da Cimeira das Lajes, em 2003.

Acho que deve fazer parte da nossa postura, como diplomatas, com coluna vertebral e com sentido do interesse público, ter a coragem de dizer sempre ao poder político aquilo que pensamos. Criámos um património de memória e de defesa do interesse do pais. Mas não temos o direito de o impor. Se o poder político entender não aceitar a nossa posição, devemos fazer aquilo que ele determine. É ele quem tem a legitimidade política, por mandato democrático, para nos dar as orientações. Não temos uma qualquer legitimidade que nos permita arrogarmo-nos a ser uma espécie de guardiões do templo. Felizmente, no Portugal democrático, os ciclos políticos não têm trazido mudanças radicais à nossa postura internacional - e isso, vale a pena dizer, facilita-nos bastante a vida.

Um dia, o meu amigo João Rosa Lã, ao tempo em que era embaixador na Haia, referiu-me que a Holanda tinha acabado de publicar um livro branco com uma reforma muito significativa da sua política externa. Pedi-lhe um exemplar, por curiosidade. Não tenho dificuldade em entender que as políticas públicas de um país possam ser objeto de revisão, mesmo que radical. Mas, devo confessar, faz-me uma certa impressão que uma política externa, um quadro de prioridades no terreno bilateral e multilateral, com expressão ao longo de muitos anos, possa ser objeto de uma redefinição drástica, que, de certa maneira, afeta aquilo que já é um certo património histórico do país. Os holandeses não entenderam assim e repensaram, por essa altura, a sua política externa, a sua hierarquia das prioridades, a começar pela rede diplomática e certas políticas que lhe estavam associadas. A verdade é que de um país que, um dia, decidiu promover, pelo mundo, uma mudança do nome pelo qual era conhecido, passando de Holanda a Países Baixos, tudo é possível… Acho, contudo que seria muito difícil para nós, em Portugal, como que “parar para obras” e decidir: «Ora vamos lá repensar a nossa política externa, para ver se o nosso relacionamento deve ser mudado, com este ou com aquele país, com esta ou aquela organização», anunciando isso por escrito! Mas cada um é como é!

Não sei se já se deram conta, mas creio que só há um único elemento que foi preservado na política externa portuguesa, da ditadura para a democracia: a relação transatlântica. Com essa exceção, nenhum daqueles que hoje são considerados os eixos da nossa ação externa - Europa, língua e lusofonia - existia antes do 25 de Abril: a relação com a Europa comunitária era muito incipiente, aquilo que hoje podemos qualificar como o pilar do mundo que fala português não se colocava, obviamente, do mesmo modo. Porém, a prioridade dada à NATO, às relações com o Reino Unido e os Estados Unidos, com as Lajes de permeio, já estava bem inscrita na nossa agenda externa.

Há dias, ao comentar isto, alguém me disse, com um ar muito natural: «É muito simples perceber a razão pela qual isso se passou assim. O 25 de Abril foi feito por militares e os militares portugueses são tributários de uma cultura NATO». Nesse instante, recordei-me do momento, algo bizarro, que havia sido a presença do general Vasco Gonçalves, como primeiro-ministro, numa cimeira da NATO, em Bruxelas. Evidentemente, nós sabíamos que, a Portugal, havia sido retirado o acesso aos códigos nucleares da organização. Mas a presença de tão idiossincrática figura naquela reunião, provava, se tal fosse imperativo, a importância basilar do relacionamento transatlântico, a preservação de um elemento fundamental da nossa postura geopolítica, resultante do lugar do mundo onde continuávamos e continuamos, com ou sem Revolução.

Somos um país antigo e somos um país, em regra, com uma atitude externa bastante previsível. O mundo sabe quem somos e como, em geral, nos comportamos, perante as coisas do mundo internacional. Não está na nossa natureza mudar, radicalmente, de postura externa. A nossa dimensão, aa nossas dependências, bem como a nossa fragilidade relativa não recomendam que isso se faça, com ligeireza.

Porém, refletir sobre a nossa política externa, questionar serenamente a sua evolução, olhá-la e adaptá-la de uma forma diacrónica, isto é, não pensarmos que “isto é assim e vai ficar sempre assim”, pode e deve fazer-se. Por exemplo, numa área que julgo conhecer bem, o relacionamento com a União Europeia, devemos refletir permanentemente sobre a adequação da nossa atitude a cada tempo, tanto mais que a União, ela própria, muda constantemente de natureza e é importante que meçamos o modo como nos devemos comportar face a essas mesmas mudanças.

Por exemplo, acho que é da maior importância, sem grandes estados de alma, fazermos uma contínua reflexão sobre a nossa política de alianças dentro da União Europeia. E fazê-lo de maneira fria, como todos o fazem: umas vezes estamos com a Espanha nuns dossiês, em outros afastamo-nos, de outras vezes aproximamo-nos da Alemanha, outras da França. A defesa ótima dos nossos interesses a isso obriga e não surpreenderá ninguém que o façamos. Todos o fazem.

Um caso muito interessante, e pouco abordado entre nós, tem a ver com o relacionamento com o Reino Unido. Não quero especular muito sobre isto, mas diria, num caricatura que é um “understatement”, que Londres, por mais de dois séculos, sobredeterminou a nossa postura externa, em termos que chegaram a ser, na prática, de uma quase tutela.

Creio que em 1987, destacado para uma reunião comunitária sobre questões de desenvolvimento, a ter lugar no Luxemburgo, e perante uma agenda que teria aí uma dez pontos, recebi instruções sobre três ou quatro deles e, quanto aos outros, foi-me dito: «É seguir os ingleses». Devo dizer que, naquele instante, que nunca mais esqueci, como que gelei. Percebi que o “comodismo” diplomático podia ir ao ponto de dispensarmos ter posição própria, talvez por se considerar que os assuntos em causa não eram do nosso interesse direto, pelo que seria prudente seguir a linha de um país cujas posições, em regra, estavam próximas das nossas.

Os britânicos “raptaram”, durante muitos anos, parte significativa da capacidade decisória portuguesa na área externa, connosco a considerar, numa avaliação simplista, que, ”seguindo os ingleses”, tínhamos basicamente preservados os nossos interesses. Essa atitude representava aquilo que é, precisamente, o contrário daquilo que, mais tarde, aprendi que um país deve fazer na gestão da sua politica europeia: sair da preguiça da agenda egoísta e criar uma filosofia sobre a generalidade dos assuntos, numa coerência global de atitude.

Quando estive colocado na nossa embaixada em Londres, no início dos anos 90, dei-me conta de que comunhão dos nossos interesses com o Reino Unido era apenas, e cada vez mais, um mito. Lembro-me bem das dificuldades com a questão de Timor, em que o Reino Unido estava, quase por sistema, do outro lado da barricada. E, em muitos outros dossiês, salvo em temáticas de política externa e de segurança, em que a questão transatlântica viesse à baila, o nosso afastamento era cada vez mais significativo. Nos anos em que, depois de sair de Londres, tive responsabilidades política na área dos assuntos europeus, em tempos em que Portugal sublinhava bastante a sua postura integracionista, o Reino Unido passou a estar, crescentemente, bem distante das posições de Portugal.

E aqui regresso à questão dos interesses portugueses. Identificá-los, aculturá-los, preservá-los e promovê-los foi sempre uma das grandes preocupações que tive na minha vida diplomática, nela incluindo a passagem pela política.

Quando entrei para a diplomacia, posso agora revelá-lo, era um anti-europeu. E era-o por uma razão muito simples: vinha da esquerda e o setor da esquerda portuguesa de que eu então me sentia próximo não era, por natureza, europeísta. Porém, não sendo comunista, percebi, a certa altura, que a minha postura acabava por ser, nesse domínio, bastante similar à do PCP. E isso não só me incomodou como me levou a interrogar-me sobre a correção dessa minha posição.

O meu anti-europeísmo de então, vim a constatar, era uma reação epidérmica e algo primária, numa lógica simplista de que, no processo decisório europeu, nunca devíamos partilhar decisões. Devíamos, ferozmente, guardar para nós a capacidade de decidir em tudo quanto nos dissesse respeito. Os interesses portugueses eram sempre melhor defendidos do lado de cá do Caia. Para lá do Caia, os interesses eram outros, só por acaso coincidentes com os nossos. Era uma perspetiva totalmente errada: os nossos interesses são sempre melhor defendidos numa atitude pró-ativa, envolvendo os outros e envolvendo-nos nós mesmos naquilo que são os interesses dos outros. Com o tempo, vim a entender que o conceito de independência, e a capacidade de defender essa independência, têm uma expressão muito diferente no mundo atual. Se há conceitos que mudaram com o tempo, e que dependem muito das circunstâncias, esse são a independência e a soberania.

Uma vez, nos anos 60, numa aula do então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, perguntei ao professor Adriano Moreira se, duas ou três décadas depois, ele via como possível que o Ultramar português se tornasse independente. A pergunta era delicada, mas o professor Adriano Moreira teve arte para lhe dar a volta: «Se o meu amigo me conseguir dizer, hoje e agora, qual será o conceito de independência daqui a 30 anos, terei o maior gosto em responder-lhe.» Era uma fuga à questão mas, de certo modo, era verdade.

O que é hoje, para um Estado como Portugal, ser independente? Éramos mais independentes, como Estado, quando éramos um país isolado, “orgulhosamente sós”, durante os últimos tempos do período colonial, em que vivíamos debaixo de uma pressão internacional fortíssima? Ou será que somos hoje mais independentes, mais capazes de influenciar o nosso futuro, quando conseguimos atuar, dentro e com a União Europeia, afirmando-nos em múltiplas dimensões multilaterais? Temos hoje uma maior capacidade internacional ou não? Não tenho dúvidas de que, mau grado novas dependências que entretanto possamos ter criado, a nossa posição no quadro internacional é bem mais confortável do que nesse tempo tenso. E que este novo quadro, se bem que mutante e exigente, é muito mais favorável para a defesa prática dos nossos interesses.

É para mim claro que todos os contextos em que haja dinâmicas que não possamos, autonomamente, controlar, são fautores de riscos - e a participação nas instituições europeias não está isenta de perigos. Um espaço de participação em modelo de partilha de soberania tem sempre dificuldades, agravado, no nosso caso, pela nossa dimensão, pela nossa fragilidade financeira e pelo poder institucional limitado que é o nosso. Talvez por isso continuo, às vezes, a ter algum tropismo soberanista - e tive-o muito claramente quando negociei dois tratados da União Europeia. Nunca consegui ser muito concessionista, nem nunca fui atraído pelas derivas do hiper-federalismo. E continuo a ser adepto, não apenas de reservas de competência nacional muito claras, em áreas de soberania, como na preservação de uma capacidade mínima de influência no processo decisório.

Por essa razão, tive sempre muitas dúvidas, em matéria de revisão instutucional de tratados, na questão da redução do poder de voto no Conselho, em cedências no número de deputados ao Parlamento Europeu, na importância de manter um Comissário. Tive sempre imensas dúvidas em fazer concessões em relação a isso. Tanto mais que sempre vi aqueles Estados que procuram “segurar as rédeas” da União muito interessados em reforçar o seu poder. Se eles, que são, por natureza e pelo seu poder económico e demográfico, muito poderosos vivem, em permanência, mobilizados para garantirem a preservação dessa força, por maioria de razão um Estado menos forte, com mais fragilidades, situado frequentemente fora do mainstream decisório prevalecente em Bruxelas, precisa de preservar alguma capacidade de controlo da sua posição.

Neste bosquejo pela nossa postura externa, como é que a diplomacia portuguesa se tem portado? Acho que se tem portado, basicamente, bem. Sempre? Nem sempre: temos, como é natural, alguns altos e baixos. Vou ser muito franco - e julgo que abro aqui “o livro” de uma forma que ninguém antes fez. Temos gente que trabalha muito bem, como também temos gente que trabalha menos bem. Temos gente que é capaz de defender, com afinco, os interesses nacionais e outra que, não operando contra o interesse nacional, o não cultiva com o afinco com que deveria fazê-lo. Mas, em termos gerais, considero que o país está bem representado e que há hoje uma maior responsabilização, uma maior transparência naquilo que cada um faz, pelo que a meritocracia me parece mais afinada. E isso é bom.

A Europa é disso um bom exemplo. Não teria sido possível a Portugal ter um presidente da Comissão Portuguesa se o nosso país não tivesse tido, ao longo dos anos, dentro da União Europeia, um comportamento altamente responsável, eficaz, com presidências rotativas muito bem executadas, com forte sentido de responsabilidade, com pessoal respeitado, com uma presença muito ativa. Não somos “os melhores do mundo”, mas tivemos sempre, no nosso seio, gente de muito boa qualidade, que ajuda a prestigiar, pelo mundo, o nome do país.

Infelizmente, acho que não temos uma cultura, dentro da carreira diplomática, de permanente reflexão sobre o que são os interesses portugueses e a melhor maneira de os promover. Fica a ideia de que é por “osmose“ que vamos absorvendo o que interessa salvaguardar. Ora essas coisas têm que ser mais discutidas, refletidas, as pessoas têm que estar conscientes de que há uma matriz comportamental que representa os interesses do país. E deve haver maior accountability, consequências negativas para quem não leva as coisas com o indispensável rigor, efeitos positivos nas carreiras para quem é profissionalmente competente. E devemos todos estar conscientes da “linha” que nos compete defender, sem ambiguidades e, em especial, sem “achismos”. Recordo-me sempre de um raspanete que dei a um adido de embaixada a quem, um dia, escassas semanas depois de ele ter entrado no MNE, apanhei, ao telefone, em conversa com uma embaixada estrangeira em Lisboa, a dizer, com total irresponsabilidade, “Portugal pensa que…”

Há países que fazem isso muito bem. O Reino Unido, por exemplo. Vi fazerem isso agora, em tempo de Brexit, num dos seus momentos mais caóticos na sua presença internacional. A diplomacia britânica tem uma consistência e uma constância admiráveis, por mais abstrusa que seja a tarefa que lhe cumpra executar. E, ao contrário de outros países, nunca assisti, em conversas com colegas britânicos, à emissão de opiniões à margem da posição oficial do seu governo. E, acreditem, há muito que aprendi que este é o teste do algodão do profissionalismo.

Ontem, conversava com o antigo embaixador americano em Portugal, Alan Katz - que foi embaixador político, como são a maioria dos embaixadores americanos -, e perguntava-lhe: «Que ordens concretas recebeste, quando vieste para Lisboa?» Ele disse algo curiosíssimo, que eu não sabia: «As nossas ordens são-nos transmitidas pelo staff diplomático, que nos enquadra e que recebe as guidelines do Departamento de Estado. Temos uma linha geral, que representa os interesses americanos para cada país ou organização, mas, depois, é a máquina do Departamento de Estado que dá ao embaixador as guidelines concretas, conferindo desta forma uma coerência global da representação do Estado no país.»

Vamos ser francos: nós não temos, muitas vezes vezes, essa capacidade de coordenação, por forma a garantir uma coerência global de atitude, em todos os setores da máquina diplomática. E não assegurando essa coerência global, houve já pessoas que assumiram, e, alguns postos, atitudes menos responsáveis. Pode ter acontecido, aqui ou ali, um inquérito, mesmo um processo disciplinar, talvez uma transferência para outro local, mas há, entre nós, uma cultura demasiado permissiva e “compreensiva”, perante a incompetência ou a pontual irresponsabilidade. Digo isto com alguma pena: faz-nos falta uma cultura mais densa e exigente, que não ceda ao impressionismo e não se contente com resultados de qualidade média. É que, ao ceder ao facilitismo, estamos a ser injustos para com os outros, com a gente que se esforça, que trabalha muito e bem.

Um outro ponto que gostaria de referir é que a diplomacia dos dias de hoje não se reduz ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em algumas áreas que não são questões de pura política externa, há um trabalho no exterior que releva já muito da política interna. O caso mais óbvio é a União Europeia, mas há outros setores multilaterais onde isso é por demais evidente. Por isso, pergunto-me se não devíamos estar mais abertos, na carreira diplomática, a trabalhar e a discutir, mais aprofundadamente, com os outros ministérios. Eu sei que conjugação interdepartamental, às vezes, é difícil. A cultura das Necessidades não está muito aberta a isso.

Usamos, no MNE, uma expressão para tratar os outros ministérios, que diz tudo: consideramo-los os “ministérios sectoriais”... É uma espécie de afirmação, reconheço que algo sobranceira, de uma função de soberania, que se entende situada no centro da ação do Estado. Há, no MNE, um orgulho em poder garantir que, nas rotações governamentais democráticas, quando chega um novo ministro, ele é servido por dossiês, com pontos de situação, sobre todos os assuntos relevantes, elaborados com todo o rigor e neutralidade política, permitindo ao novo titular entrar nas matérias com garantido conhecimento de causa. Ao que se dizia, mas não sei se é verdade, apenas os Ministérios da Defesa e das Finanças davam idênticas garantias, havendo, em geral, uma maior politização nos restantes “ministérios sectoriais”…

No nosso caso, tenho a certeza absoluta de que assim se continua a proceder. Em várias mudanças de ciclo a que assisti, e em algumas em que estive envolvido, o novo ministro tem sempre perante si, se quiser, assegurado pelo quadro diplomático e técnico em funções, uma expressão escrita e fiel daquilo que são os interesses portugueses que foram decantados ao longo desse tempo e um bom retrato das questões sobre as quais terá de decidir.

É muito bom, na política externa, não haver descontinuidade. Os diplomatas portugueses sabem que, por regra, as grandes linhas de política externa não se alteram. A imagem do país sai prestigiada deste facto.

Vou contar uma história que se passou comigo. Em 2011, precisamente no dia da posse do dr. Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro, eu tinha marcada uma ida à Comissão dos Negócios Estrangeiros do parlamento francês, para fazer uma exposição sobre a política externa portuguesa. Umas dias antes, tendo em conta que em Portugal tinha havido um “terramoto” de natureza político-partidária, o presidente da comissão telefonou-me perguntando se eu não queria adiar, para poder ter tempo para olhar para o novo programa do governo. Tive então o desplante, e o prazer, de lhe poder dizer: «Não, por mim, não quero adiar. Irei, nesse dia, explicar à sua Comissão as linhas essenciais da nossa política externa, porque tenho a certeza absoluta de que o que eu irei ali dizer será confirmado pelo novo governo. Nós não mudamos de política externa, no que são os seis eixos essenciais, quando mudamos de governo». Já aconteceu foi mudar-se o embaixador. Mas essa, embora rara, é outra história…

A continuidade virtuosa na ação externa tem, contudo, algumas nuances. O meu último posto foi como embaixador em Paris. Fui para lá em 2009, em tempos de business as usual, em termos da vida do nosso país e, por isso, também da sua ação externa. Nos dois primeiros anos, assim foi. Criaram- se novos consulados honorários, procurei assegurar mais leitorados para as universidades, mais professores para o ensino do português para os filhos dos portugueses, maior eficácia em toda a máquina do Estado que me competia supervisionar. Um dia, em 2011, rebentou a crise financeira. Tudo mudou. Houve a troika, as restrições orçamentais. Os apoios tiveram que ser reduzidos, os salários cortados, menos pessoal, menos professores, enfim, uma onda restritiva, com efeitos negativos no funcionamento e na eficácia dos serviços. O embaixador era o mesmo. Com a mesma cara com que, antes, dava conta de várias iniciativas positivas e otimistas, que exigiam recursos de toda a natureza, tive que passar a “vender” políticas de sinal oposto, restritivas, perante caras indignadas de compatriotas nossos, que achavam que estavam a ser “ofendidos” pelo Estado. Este, confesso, foi um tempo muito complexo, que marcou a última metade do meu mandato em Paris.

Nessa altura, fui também chamado a assegurar, cumulativamente, a chefia da representação na Unesco, passando a ter uma dupla tarefa que era muito difícil de assegurar. Mas era o serviço do Estado. E o Estado era o mesmo. Quem o titulava era um governo diferente, mas com legitimidade democrática indiscutível para decidir essas drásticas mudanças. A nós, podendo recomendar algumas decisões, apenas nos competia fazer, tão bem quanto possível … às vezes, coisas radicalmente contrárias às que, no passado, também nos tinham competido. É assim a condição diplomática. Cada um de nós tem de ser, como se dizia de Thomas More, A man for all seasons. 

A diplomacia portuguesa, ao longo dos tempos, tem dado mostras de ser um corpo de grande lealdade ao serviço público, com profissionalismo, patriotismo e elevado sentido de Estado. A diplomacia não tem, necessariamente, de ser vista como um exercício de cinismo, por poder ser vista a levar à prática políticas de sinal diverso. Somos executores de um exercício de responsabilidade e de representação de interesses nacionais, devendo acompanhar aquilo que os ciclos políticos e a vontade que eles legitimamente expressam. Fazê-lo bem, com sentido patriótico, é a vocação da nossa profissão. No que me toca, considero ter sido um imenso privilégio poder desempenhá-la durante quase quatro décadas.

(Conferência proferida na Sociedade Histórica de Independência de Portugal, em 24.6.21)

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