quarta-feira, junho 23, 2021

Manequim


Saí do edifício do FBI, em Washington, e comecei a caminhar, naquela que me pareceu ser a direção de onde tinha vindo. (Mas que diabo foi o homem fazer ao FBI?). Eu não tinha ido “bem” ao FBI. (Mau, mestre!) Tinha ido visitar o museu do FBI. (Ah!). Era o mês de dezembro de 1972. (Há quase 50 anos? Estava a fazer o quê, por ali?)

Tinha ido aos Estados Unidos incluído numa excursão do Auto Clube Médico Português. Tinha havido uns lugares por preencher e a agência de viagens tinha-me sugerido que aproveitasse o bom preço. Eram as minhas primeiras férias, ao fim de um ano de trabalho como bancário, prestes a ir para a tropa. A minha geração era mais dada a viagens pela Europa, mas, por essa altura, eu já tinha visitado vários países do continente algumas vezes, duas das quais à boleia. E, pronto!, decidi ir aos States - Nova Iorque, Washington e cataratas do Niagara. Uma das torres gémeas de Manhattan ainda estava a ser construída. Mal eu sabia que ia estar por lá no dia em que ambas iriam ser destruídas.

Voltemos a Washington. A cidade tem uma geografia fácil e, talvez fiado nisso, à saída do FBI, caminhei despreocupadamente por várias ruas. De repente, olhei para uma montra e reparei que todos os manequins eram negros. Nunca tinha visto um manequim negro, em louça ou madeira. Desde a minha infância, as mulheres representadas por esses porta-vestidos eram brancas, com uns cabelos penteados “à antiga”.

Achei curioso e pensei, cá para mim: deve ser para cativarem a clientela feminina negra. (Eu sabia que a capital federal tinha uma maioria de população negra). E continuei a andar. Talvez alertado pela montra, olhei com mais atenção à minha volta e constatei que eu era o único branco no horizonte. Algumas pessoas olhavam para mim, pareceu-me que com alguma curiosidade. As montras, com os mesmos modelos de manequins repetiam-se, sempre e só de mulheres.

Nunca tendo, até então, ido a África, com o cenário das ruas de cidades como Paris ou Londres então ainda muito distantes de terem a diversidade de que hoje as habita, aquele ambiente era uma experiência única para mim. Em Portugal, a descolonização, com a subsequente imigração oriunda das antigas colónias, só iria ter lugar alguns anos depois, pelo que o panorama humano do quotidiano era dominado pela população branca, como as imagens da época bem mostram.

Nessa manhã, em Washington, eu tinha entrado num bairro de população negra. Não me apercebi que a minha presença criasse a menor reação. (Anos mais tarde, no Harlem profundo, em Nova Iorque, numa área onde fora parar por alguma imprudência, o ambiente não iria ser tão “neutro” e seria mesmo algo hostil). Apenas detetei uns sorrisos divertidos, até porque devia estar a afivelar uma cara de algum embaraço. E, como mandam as regras da orientação, regressei por onde tinha caminhado, passando de novo ao lado do FBI. John Edgar Hoover já lá não estava. Morrera no mês de maio anterior.

Por que razão trago aqui este episódio, nestes tempos em que falar de temas raciais parece cada vez mais delicado? Por uma razão simples. Na passada semana, em Viena, fui ver as montras do Dorotheum, a fantástica casa de leilões que, nem que fosse para regalo dos olhos, ia muitas vezes visitar, quando vivi na cidade, entre 2002 e 2005. E, numa das vitrines, pertencente a um lote que irá à liça dentro de dias, estava um manequim antigo, com a cara de uma mulher negra. Ao olhar para a peça, regressei, por instantes, meio século atrás, a Washington.

Mas isto é tema para um post? Sei lá! Para mim foi.

8 comentários:

Luís Lavoura disse...

uma excursão do Auto Clube Médico Português. Tinha havido uns lugares por preencher e a agência de viagens tinha-me sugerido que aproveitasse o bom preço

Que proposta tão interessante e reveladora. Parece aqueles gajos que tinham umas vacinas a mais e sugeriram aos tipos da pastelaria que frequentavam que as injetassem. É a atitude familiar dos portugueses, a mesma atitude que dá azo às cunhas e à corrupção. Há uns lugares por preencher numa excursão de médicos, oferece-se ao nosso compincha bancário que vá. Este país, só visto.

(Não estou a criticar o Francisco por ter aceitado. Estou a criticar a agência de viagens por ter feito a oferta.)

Luís Lavoura disse...

Anos mais tarde, no Harlem profundo, em Nova Iorque, numa área onde fora parar por alguma imprudência, o ambiente não iria ser tão “neutro” e seria mesmo algo hostil

Eu passeei pelo Harlem em 1992, com umas amigas alemãs mais brancas do que eu. O ambiente não somente não foi nada hostil, como foi o melhor que encontrei em Nova Iorque. O Harlem ficou-me na memória como sendo a única parte de Nova Iorque com bom ambiente.

Francisco Seixas da Costa disse...

Excursão. O Luis Lavoura, na sua obsessiva contradição, não percebeu. A agência não fez nada de irregular nem excecional. Havia um grupo com número de pessoas acordado com o ACMP, o que permitiu que, numa falha, pelo mesmo preço, o lugar fosse utilizado por um cliente que surgiu na agência. O ACMP pôde usufruir do preço coletivo, o cliente acidental teve a vantagem de ter um preço mais baixo, a agência foi intermediária. Ninguém foi privilegiado, nenhuma regra foi quebrada. Que feitio o seu homem!

Francisco Seixas da Costa disse...

Harlem. O Luis Lavoura teve uma experiência. Eu tive a minha. Este post é sobre a minha.

Luís Lavoura disse...

Francisco, o post é sobre a sua experiência. O meu comentário é sobre a minha experiência. São experiências diferentes. Creio que uma vale tanto como a outra.

Flor disse...

Este post como tantos outros seus é muito interessante. "Recordar é viver"! É engraçado e isso acontece-me algumas vezes, que ao ver alguma coisa até sem grande importância faz com que a nossa memória avive recordações esquecidas mas afinal guardadas no fundo do "baú" ;)

Luís Lavoura disse...

Francisco, nenhuma regra foi quebrada pela agência de viagens, de facto, mas houve um privilegiado - o Francisco, que recebeu a oferta que muitos outros gostariam de ter recebido mas não receberam.
Não foi nada de ilegal, mas foi um favorecimento amiguista e familista, típico da forma de atuação portuguesa. Como eu disse no meu comentário, foi similar àquele tipo a quem sobraram umas vacinas e que resolveu oferecê-las ao pessoal da pastelaria que frequentava. Não fez nada de rigorosamente ilegal, claro. Mas fez algo que, com justiça, foi criticado.

Francisco Seixas da Costa disse...

Ó Luís Lavoura! Veja se percebe, sem que eu tenha de fazer um desenho, caramba! Passei por uma agência de viagens com uma montra onde surgiam viagens aos EUA. Não conhecia lá rigorosamente ninguém. Perguntei preços e condições. A pessoa que estava no balcão, que nunca me tinha visto “mais gordo”, perguntou: “Não quer, por acaso, aproveitar um lugar num grupo que ainda não fechámos, POR FALTA DE PESSOAS, do ACMP? É mais barato do que as viagens normais”. Só isto! O LL não mais com que se preocupar do que inventar um “outro lado” de tudo? Caramba! É demais!

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