quarta-feira, dezembro 25, 2019

A bica da Consoada


Tinha fama de comunista, o que, no tempo da “outra senhora”, prenunciava vida problemática e sugeria cautelas na aproximação pessoal. O Lima afivelava, por regra, uma cara zangada com o mundo, que exibia à porta do café de que era proprietário, o Imperial, no fundo da rua Direita de Vila Real.

Na sociologia empírica que me habituei a fazer de cada um dos cafés da minha cidade natal, nunca consegui definir uma tipologia dos frequentadores do Imperial. As mesas pareciam-me sempre vazias e rumorava-se que isso se devia ao facto do Lima ter erupções de feitio que o levavam, algumas vezes, a fáceis atritos com a clientela.

Em contraste com este perfil iracundo, o Lima era um refinado artista. Na memória da cidade ficou a sua direção de uma “marcha luminosa” histórica, no início dos anos 60. Mas, mais do que isso, ficou a sua arte no desenho das passadeiras de flores que, por muito tempo, ornamentavam, numa data religiosa do ano, a rua onde eu vivia. Recordo bem a reverência com que as senhoras encarregadas da coleta das flores recebiam as instruções detalhadas do Lima, no tocante à cor desejável das pétalas, a serem colocadas nos vincos deixados no serrim pelos moldes de madeira, cuja execução ele próprio acompanhava num carpinteiro na rampa de S. Pedro.

Mas a glória maior do Lima era a noite de Consoada. Por muitos anos, o Imperial foi o único local aberto, nessa noite, na cidade, onde se podia tomar uma bica ou comprar tabaco. Nessas horas, o café regurgitava de clientes - só homens, claro - oriundos de todos os bairros. Ainda estou a ver ali o Lima, de sobretudo cinzento, ao fundo da sala, apreciando o movimento confortável da máquina registadora. O Imperial não tinha aquecimento, aquilo era um mar de samarras, debaixo de uma fumarada imensa. O balcão não tinha mãos a medir, com os Macieira 5 estrelas a encherem (mas só até à linha vermelha) uns balões de vidro já foscos do uso. Ironicamente, essa era a noite da seca vingança do Lima.

Vingança que passava a um estádio superior de perfídia quando se constatava que o Lima fechava as portas do café meia hora antes da missa do galo, ali ao lado, em S. Pedro. E isso obrigava quantos usavam o Imperial para queimar tempo, a terem de ficar na rua, a bater as botas e os dentes de frio, a menos que quisessem ir fazer companhia às beatas que sempre chegavam cedo, para marcar lugar antes da homilia do padre Abel. O Lima não devia ser herege, talvez nem sequer fosse comunista. Ele era, apenas, de uma cidade diferente.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ou doutro café?
Fernando Neves

Anónimo disse...

"Estádio superior de perfídia"

Era de Bragança.

Na minha outra juventude

Há muitos anos (no meu caso, 57 anos!), num Verão feliz, cheguei a Amesterdão, de mochila às costas. Aquilo era então uma espécie de "M...